digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.
quinta-feira, dezembro 28, 2006
O alto
Há sempre uma esperança no cimo de qualquer montanha. Por isso se fixam olhos nele. Do alto escorrem rios e ribeiras. No topo julga-se estar mais perto do céu. Há sempre uma esperança indefinível ao alcance do gesto.
Se olhar para cima pouco me importa. A vertigem só acontece ao olhar para baixo. Nunca ninguém invejou os lagartos, só se sonha com asas.
Se pudesse entregava-me em vida e largava-me, deixava-me ir, inteiro e todo para o alto. Seguia para o topo por um elevador invisível. A gravidade não deixa que faça a minha oferenda.
Sonho
Neve sagrada
Nevou em Jerusalém. Nevava em Auschwitz. A dor dos eleitos de Deus. A dor na sua carne. A dor pungente de quem finge esquecer a sua memória. A dor causada pelos eleitos de Deus.
Reza-se em voz baixa na língua que se quiser. Reza-se a quem se quiser. Rezar também dói, em Jerusalém.
Se nevou em Jerusalém deve ter nevado em Belém. A distância é a da dor, dor maior, entre a Natividade e o Sepulcro. Nevou em Jerusalém. Nevava em Auschwitz. A dor pungente de quem finge esquecer a sua memória. Não há povos eleitos.
Neve manchada de vermelho. Em Jerusalém, três palavras para Deus e um só sangue. Sangue humano. Não há povos eleitos, há um só homem. Ódio na terra do amor. Nevou.
Nota: Não foi a primeira vez que nevou em Jerusalém. Foi a primeira vez que nevou este Inverno. Terá nevado no Natal de Cristo?
O verbo querer
Queria-te tanto e perdi-te... nas voltas da cabeça, reviravoltas do coração e sentimentos do fígado.
Nas tuas mãos e nas minhas corria um ribeiro, filho de águas muitas e algumas lágrimas. Já tínhamos idade para saber pronunciar beijo e abraço e silenciar os momentos que são de quietude. Os lençóis que amarrotámos tiveram o nosso odor e foram felizes connosco. Inundámos leitos com o nosso ribeiro frágil.
Por que secam os ribeiros? Porque morre a paixão ou uma nova surge. Por que secam os ribeiros? Porque morre o amor ou um novo nasce. Os bípedes esquecem-se sempre do verbo querer, apesar do conjugarem constantemente... insistentemente...
O ribeiro desviou-se, secou! Não por amor! Não por paixão! Por querer! O que diz o corpo? O que dizem os olhos? Como diz a voz? O que diz a boca? Palavras descoladas da imagem.
O ribeiro nunca será rio, porque a natureza não quis que desaguasse no mar, num lago ou num estuário maior. Morreu seco e sem glória, a meio caminho numa campina. Por querer! Simples! Não é capricho, é vontade, e que mal tem isso? É lícito! É a vontade que comanda a vida.
Por que se há-de ter quem se ama e se quer? Que se queira apenas uma amizade para haja um sentimento infantil e impoluto, um passado apagado e sem mácula, sem pecado nem remorso, sem dor e sem esperanças. Os amores mortos são sempre os mais belos, porque não têm tempo para desiludir. Os amores novos, pequeninos e pretéritos são margaridas por desfolhar: «ama-me? não me ama?».
Rejeitar um amor por querer não é tontice, é poesia. É jogar ao ar uma nuvem multicores de flores. É uma Primavera de odores contraditórios, festivos e tristes. É brincar a vida, é ser uma criança muito linda. É sorriso e festa, é despreocupação. Não importa se magoa, só importa que é belo!
terça-feira, dezembro 26, 2006
Euforial sexual
Tenho o sangue a ferver de dor e despeito. A minha loucura pede corredores frios revestidos de azulejos brancos e com janelas translúcidas. A vida bela não me diz nada.Tenho uma violência e um calor que me apertam o pescoço, que me fazem desejar. Quero amar, quero festejar, quero possuir, quero matar, quero tudo quanto seja rubro e tenha o odor do sangue.Estou louco e na vaga lucidez que me resta peço que me levem para longe de mim e do que me faz feliz. O céu não me importa, só o sexo, a pólvora e o mando. Estou eufórico comigo. Sou a festa dentro de mim. Preciso de tudo e de ser o centro. Não oiço já as vozes dentro da cabeça, só me oiço a mim e digo-me sempre a mesma loucura irada e tesuda. Precido que me descansem.
segunda-feira, dezembro 25, 2006
Infelicidade
quinta-feira, dezembro 21, 2006
Calafrios, bichinho-mau
Não recordo datas, não sei de números... deixo a cabala para quem ama coisas ou para quem não quer coisa nenhuma. Não sei do olhar nem da boca, nem quero saber se nos beijámos... lembro-me apenas. Foi numa noite vaga.
Uma vaga que sucedeu a outra que precedeu outras e antecedeu infinitas. Foi numa noite vaga. Não sei do olhar. Sei das palavras e dos corpos. Não sei se nos beijámos, mas fizemos amor.
Bichinho-mau, causas-me calafrios e saudades. Saboreio feliz a ausência e volto nostálgico ao escuro da praia onde fomos uma noite alguma coisa de definível. Causas-me calafrios.
quarta-feira, dezembro 20, 2006
Dias imperfeitos
Os dias imperfeitos, longas horas de ansiedade. Horas de luz de tédio e silêncio. Ausências e memórias vazias. Desencontro de palavras nos livros. Olhares desesperados dentro dos quartos. Olhares desesperados nas ruas. Insónia de medo. Indiferença à temperatura e à fome. Solidão. Dias imperfeitos. Dias sem noite. Dias sem sono. Dias de insónia.
Paternidade
Nota: Este texto é parte dum outro maior que aqui se encontrava e que foi retirado. Esse outro texto versava a temática do aborto e tomava uma posição clara. Contudo, ponderei e prefiri que o Infotocopiável permança excluído da polémica que a matéria contém.
terça-feira, dezembro 19, 2006
As horas
As horas diferentes. Temos as vidas em opostos e ninguém cai do seu hemisfério. Não vivo sem a minha luz. Onde guardas a penumbra? Para onde corres com a sombra? Não te fazes diferente de mim. Acendo com medo da outra vida, torpor de morte.
A noite é uma antevisão do sono. O sono uma premonição da morte. Medo do escuro. Deus está no alto. As estrelas alcançam-se com as mãos, mas não o céu. De noite, no céu temos um firmamento na Terra feito do medo.
Dá-me luz. Quero ver. Queres ver-me. Sinto frio se não vir. Tenho medo de adormecer. Tenho medo de estar. O céu é tão grande e tão perturbador sem a luz cá de baixo. Contra-luz. Nega-se Deus com uma lanterna. Fica invisível o céu. Só na luz se existe. Na escuridão morre-se e na morte não há nada.
Não há morte. A morte não existe. Mas na luz teme-se a escuridão. Na luz julga-se a morte como escuridão e vazio. Uma incerteza inquietante. Dá-me luz e viverei. Vive-se sempre... até na morte.
As horas diferentes da vida. O medo do escuro. Dá-me luz, quero viver. Quero negar Deus não vendo a imensidão da sua obra. Lá de cima vê-se o nosso céu, espelho do nosso medo. Dá-me luz.
Fios
Cada parte de mim liga-se a ti na pele e fica a promessa de se juntarem as duas carnes. Os dois esqueletos encaixam-se e até bailam e abraçam quando a vontade é de amor.
Não sei onde começo e acabas. A minha dor condiz com a tua e a tua alegria é minha. As almas felizes reconhecem-se na densidade. As duas almas conhecem-se de sempre, ainda antes dos corpos se verem e experimentarem. Cada parte de mim liga-se a ti por fios finos de amor.
Pré-Natal
segunda-feira, dezembro 18, 2006
Teima
Cultivo a tua ausência, semeio a austeridade, rego a indiferença e ainda assim colho a tua sombra e oiço-te os passos. Esvoaças em redor da cabeça e faço-me desmaiar para ter sossego.
Esta vida tem um sentido absurdo. Não há vermelho na minha vida. Por que tem de insistir o amor em bater-me à porta?
Deitados ao relento
O princípio do som. A palavra sem eco. As ervas rasteiras amassadas pelos dois corpos em amor, cansados e prontos.
No fim dos dias, a esperança por morrer e sem anúncio de ida. O beijo, o abraço, a cama, a memória, a cumplicidade e o tempo.
Indolência e nostalgia, miradouros do futuro. Vento imprevisível, em roda de direcções cardeais, como os corpos deitados. As mãos abraçadas, prolongamento da relação. O amor por vir na relação acabada. No fim dos dias, o princípio das coisas.
sábado, dezembro 16, 2006
Caos e fealdade
sexta-feira, dezembro 15, 2006
Alemanha
Nota: Imagem de Frederico I, o Barbarossa - Imperador do Sacro Império Romano Germânico
quinta-feira, dezembro 14, 2006
Brevidade
Enamorei-me mal te vi e despedi-me refeito no virar da página. Seduzes-me quando entras pela casa a dentro e esqueço-te quando entra outra... novo anúncio.Amo-te na brevidade dos dias e pela infinita beleza da juventude. Desconheço-te o nome e as fantasias. Entras e vais. Bastas-te. Enamoro-me sempre.
quarta-feira, dezembro 13, 2006
Transe
Sou imparável. Dentro de mim há uma multidão. Sou feito de milhões de esferas de borracha elástica. Sou febril! Sou febril! Transe infinito. Loucura viajante. Uma vida sem regra nem passado. Não tenho regra nem memória. Só tenho ritmo e uma multidão de esferas de borracha elástica dentro de mim. Pulo, porque em mim tudo salta. Danço, porque a dança é inata. Transe. Não é questionável. Não é possível deter a dança. É uma dança infinita. Sou feito de ritmo.
Nota: DAF (Deutsch Amerikanische Freundschaft) - Der Mussolini. Não sei se alguém que viveu a década de 80 conseguiu passá-la sem se passar a dançar este imparável tema, que além do mais é uma paródia à geração sem direito à história.
Alegrias dos meus olhos
A beleza dos teus olhos trouxe-me tanta tristeza. A alegria dos nossos dias causou-me loucuras na cabeça.
A sedução é o momento mais bonito da vida... E pelas mulheres, não sou homem duma só mulher! A minha grande loucura!Canto a infelicidade da minha vida e continuo a fugir de quem me procura. Não procuro ninguém, já me basta a minha loucura.
Todas as belezas de todos os olhos e todos os sorrisos deram-me a loucura, a alegria dos dias e a nostalgia das noites.
Amor descascado
Sacrifício
O gesto ensaiado faz parte do meu trabalho. Faz parte da sedução. Eu diante das máquinas sou um maestro diante da orquestra.
Segredo palavras e frases longas aos ouvidos misteriosos das engrenagens. Só os iniciados podem saber o que pode questionar outro iniciado. Nenhum sábio questiona outro sábio. Nenhum erudito presencia a sessão doutro erudito. Segredo conhecimentos obscuros aos ouvidos da maquinaria e interpreto as respostas perante uma assembleia crédula.
A minha assistência acredita-me e louva-me, porque presencia os meus milagres com as máquinas. Sou um maestro. As rodas-dentadas obedecem-me. A electrónica ajoelha-se diante de mim. Não há zingarelho que ofereça resistência ao meu saber. Sou prodigioso.
O gesto ensaiado não faz parte. Passa a fazer quando entra a sedução.
terça-feira, dezembro 12, 2006
O banho das vestais
O meu gesto não conhece a luz, só a beleza a necessita. Vivo na obscuridade e desejo absolutamente o impossível. O harém é o paraíso vedado aos homens.
De mim partem beijos que nunca chegam e chegam beijos que nunca partem. A minha fantasia é de claro e escuro, uma revelação secreta, quase mística. Espreito a casa das flores verdadeiras. As noites de insónia visitam-me quando espreito.
sábado, dezembro 09, 2006
Amor assente
Um sopro feliz na vida é quanto se pede. Tempero de lararanja e azeitona para os dias, com a sede matada com água e vinho. Que haja pão!
O que se pede à vida?
Por mim basta-me um olhar e corro. Gosto de correr. Gosto do vento.
Tenho no olhar uma ligação e em meu redor esvoaçam rumores de margaridas e outras flores ainda em botão. Dizem-me que anda no ar.
Um sopro de vida na vida, e ala que as horas passam e já o mundo vai avançado.
sexta-feira, dezembro 08, 2006
Amor de luz
O meu amor é quase a minha vida, na sua ausência estou cego. A depressão! Na sua ausência estou só.
No meu abraço só cabe uma pessoa. Amo uma só mulher. Não sou o seu espelho, sou rocha. Pedaço solto da rocha-mãe.
A criação do mundo foi uma onda. Água espalhada. O rebentar da terra. O céu em rubor. Não muito diferente de quando fazemos amor. Ela delicada e eu tão grande. Ela luz e eu todo opaco.
A síntese das coisas pequenas que espaço ocupa? O mundo todo ou quase insignificância. Um traço. A vida, uma brevidade. Amo o meu amor em absoluto. A síntese das coisas pequenas é uma intensidade.
quinta-feira, dezembro 07, 2006
Fuga
Não tenho sombra. Sou só movimento. Estou feito de cinzentos e os meus lábios silenciam palavras que já disse doutras formas. Não acordo quando quero e suo com dias quentes ainda que a chuva bata grossa do lado de fora do vidro.
Não tenho olfacto. Sou só pedra. Frio e insensível ao odor das flores. Não distingo o lilás das violetas e piso-as sem querer. Se as tivesse nas mãos vê-las-ia e cuidaria como jóias da natureza. Neste meu frio consigo voar. Sou tão pesado. Tão frio. Sei voar.
Faço-me de água e sal. Não sou a chapa de ferro que corta o mar. Não sei navegar, sou só movimento, não pensamento. Não sou um navio fantasma, mas ainda onda fria. Sou corrosão e talvez nevoeiro.
Sonho sempre. Muitas vezes! Muitas vezes a cores. Muitas cores e também cinzento.
Amor imperfeito
quarta-feira, dezembro 06, 2006
Neste tempo
As minhas faces ruborizam-se quando entro no escritório, por calor e por vergonha. Pelo calor do exagero do medo do frio e pela vergonha da distância da natureza. Quando há frio, há frio e pronto: batem-se as mãos e festeja-se, aplaude-se. O calor arrepende, é a fonte da preguiça e da desilusão. O frio arrebita e o calor é a cama. Sim, apetece o calor no frio. Mas na vida fora dela, depois da casa, o que se pode fazer com calores? Também há vida depois da manhã e da infância! Não percebo como se pode viver de aquecedor ligado.
Sou do hemisfério Norte, duma ponta Atlântica, da mais ocidental terra Europa, não o sou por acidente. Gosto do frio como outros gostarão do quente e dos trópicos. Aqui nem há frio... e o frio é psicológico, um estado de alma. Nem me importava de viver num frigorífico desde que tivesse janelas e vistas.
Gosto do vento; de muito vento. Gosto de muito vento pelas costas, mais de a três quartos de frente e mais ainda de o enfrentar. Derrotar o frio é uma vitória gloriosa, uma alegria radiosa como o primeiro Sol depois da trovoada. Que mal tem a chuva? São belos os dias de cinzento-chumbo e o horizonte emparedado de chuva. É de felicidade o passeio na invernia. Não sou um navio fantasma, sou um habitante do Inverno.
Sem o frio não há os sabores do Inverno nem os pretextos para os intermináveis serões. O gotejar permanente e cheio das enchurradas são a música das conversas da família, sentada à mesa ou à volta do lume, entretida com o sabor do pão, do presunto, dos enchidos, do vinho e do café. O Inverno realça o calor do sangue e faz magia com os enfeites das chamas nas lareiras.
Se Deus quiser este ano volta a nevar em Lisboa... que pena não acontecer mais vezes. Um dia destes vou convidar uns amigos e fazer glühwein... para recriar alguns encantos da Europa germânica no macio Inverno mediterrânico. É bom celebrar a amizade e o frio é um convite ao abraço.
segunda-feira, dezembro 04, 2006
O quatro
O aborrecimento do quadrado é a imposição do correcto, a ditadura da esquadria. Quando se coloca um quadrado descentrado a outro quadrado projecta-se um triângulo, o princípio da desigualdade e da irritação.
Apaixonei-me pelo quadrado pelo acerto do quatro. Gosto do quatro por ser um número justo, superior à conta perfeita de Deus. Quatro é um número irmão, onde cada lado enfrenta nos olhos o outro e dá os ombros a outros dois, que abraça de igual forma.
Desapaixonei-me do quadrado quando percebi que os seus ângulos são de noventa graus, em tudo diferentes do quatro. Não há divisão perfeita do noventa, mas um número manco, sinistro e indistinto.
O quadrado continua perfeito, mas já não me iludo. Hoje tanto me faz e talvez prefira mesmo os triângulos por serem menos difíceis, mais humanos, assumidamente individuais e com os lados na conta que Deus fez.
quinta-feira, novembro 30, 2006
terça-feira, novembro 28, 2006
A chuva lá de fora é uma festa
Não me peças poesia quando estou a jantar, porque são duas coisas impossíveis de juntar. É como se te pedisse para cantares enquanto degolas e depenas as galinhas.
Hoje chove e há felicidade saltitona no ar. Por isso peço com o meu melhor sorriso e a voz mais mansa para não voltares a pedires poesias nem prosas nem sussuros eróticos quando tenho uma faca na mão e tento descolar a carne do osso.
A minha felicidade passa tanto pelo teu silêncio como pelo odor dos limões na cozinha. Não vivo sem te espreitar a despir quando me julgas ainda na sala nem sem fumar às escondidas. Não sou feliz sem todo o dilúvio de agora nem a perspectiva primaveril dum qualquer amanhã.
Tenho-te perdida entre as minhas mãos. Estás perdida em mim tanto quanto eu não sei o que fazer contigo. Chove lá fora e isso é o que importa. Há uma festa lá fora. Só não vê as cores alegres da estação quem não percebe a vida a saltitar de e para as poças.
Por mim vivia dentro de água e beijava-te sempre. Por favor, guarda algum silêncio quando estivermos a jantar e nunca me peças poesias nem para te explicar um arco em ogiva...
Sol na cara
Aconteceu há mais dum mês, mas aconteceu. Aconteceu que me esqueci. Acontece que nunca me esqueço ou que não gosto de me esquecer de quem gosto, mas aconteceu. Não me lembro se estávamos zangados, porque nunca me lembro das zangas quando já estão esquecidas. Talvez tenha sido por isso que me esqueci. Tanto faz. Mas acontece que me esqueci e não te dei o beijo devido pelo aniversário.
Há um mês e uns dias fizeste anos. Nesse mesmo dia começou uma rádio de bombar a emitir numa localidadezinha e algures nevou pela primeira vez este Outono. Nesse mesmo dia houve gente feliz, houve corridas de motas e acidentes. Aconteceu no teu dia de anos. Uma banda de putos, chamada Sun, tocou ao vivo numa livraria. Não há alguém que te conhece por Sun? Iluminaste muitas horas da minha vida e ainda assim esqueci-me de te cumprimentar há coisa de um mês. Aconteceu. Desculpa-me.
segunda-feira, novembro 27, 2006
Avis rara
A poesia não se encontra só por se procurar, mas só a tem quem sabe nela tropeçar na rua, no campo ou no espaço. A sensibilidade toda não vive se não derem por ela e a alimentarem; e a métrica e a rima, acertadas ou desajustadas, tanto fazem se não forem lavradas. Um número é enamorável se assim se quiser, tal como o sólido e a projecção geométrica, mas nada se pode contra a cegueira.
Queria ter outros olhos e umas mãos finas para saber colher da vida os rios que a atravessam. Não tenho mapa nem ideia para onde possa ir. Tampouco sei para onde quero ir. Todos dizem só quererem ser felizes, mas não sei o que é a felicidade para a desejar.
Por tudo isto comecei, agora, por querer coisas vagamente simples, mas ambiciosas: uma ave rara, para a ouvir cantar e me espantar com as cores das suas plumas. Encontrei mulheres lindas e outras que não o sendo são enamoráveis, porém nem um pássaro vi. Talvez me falte a vista da alma ou não tenha jeito para caçador de aves raras e não saiba distinguir-lhes os cantares. Não há liberdade nos meus quereres ou será o mundo mais livre quando não se tem o todo desejado? Só sei que não vi aves raras!
domingo, novembro 26, 2006
Afinal estás vivo!
Lembro-me como se fosse hoje aquela tarde de conversa que tivemos na Brasileira. Tu estavas em casa e eu não era nascido. Mandaste-me educadamente calar e eu virei-me para outro lado qualquer, ainda longe de poder sonhar. Talvez já sonhasse, mas não sonhava em que um dia sonharia contigo e muito menos no dia da tua morte.
Afinal o que importa é estares vivo! Afinal não se morre! Vais continuar a pintar e a dizer a tua poesia com a mesma cruel acutilância dos poetas maiores. Gosto da tua verdade. Gostei de ti na primeira vez que te vi, naquela vez na Brasileira do Chiado, ainda estava eu por nascer.
Afinal o que importa é não se morrer... E agora, lá fora, ri de tudo!
Nota: Este texto é dedicado a Mário de Cesariny.
Cartas de veneno
Prometeste amá-los e quase os mataste de esforço e perfídia. Prometeste amá-los e quase os mataste com as tuas mãos férreas aquecidas, quase em brasa. Prometeste amá-los e quase os mataste com o veneno que querias trouxessem para mim.
Por mim podes escrever todas as cartas com todo o veneno. Podes mete-las nos sobrescritos e enviá-las a quem quiseres e por quem quiseres. Vou abri-las e vou lê-las para conhecer melhor o estado da tua loucura. Depois vou guardá-las e enviar-te um beijo. Um beijo de irmão ou de pai.
Vá, descansa. Descansa de ti, estás cansado de ti e da loucura em que te mergulhaste. Descansa do frenesim insano e paranóico que espreita atrás de todas as cortinas. Volta a sorrir, depois de descansares. Não escrevas mais cartas com veneno nem as mandes por passarinhos... têm coração frágil e já têm muitas penas.
sexta-feira, novembro 24, 2006
O que quero ter
Há amores imperfeitos que me vêm à memória quando tenho diante dos olhos uma obra deste artista. E já vi muitas e tenho muitos amores imperfeitos.
A minha casa é grande e nela cabem muitos quadros, mas infelizmente ainda não tenho parede para um do Pedro Proença. Talvez venha a ter um quando fôr grande e continuar a querer ser pequenino.
Já sou grande e divirto-me com as artes deste artista, viajo com ele e penso muito. Tem excesso quanto baste no traço e ponderação na cor.
Porque não tenho paredes onde pendurar um quadro do Pedro Proença, comprei um livro. Já me fazia falta à alma, à cabeça e ao gozo. Um dia hei-de ter uma parede livre e descomplicar-me para ter.
quarta-feira, novembro 22, 2006
A pomba
Lembro-me duma manhã, ainda quase madrugada, e dum caminho feito em quase silêncio. Havia nós nos estômagos e apertos nas gargantas, os olhos estavam cheios de água com muita vontade de transbordar e as vozes abafaram-se antes que se exaltassem. Não havia frio nem calor, mas cólicas de alma. Uma vontade de liberdade, de desafogo. Um medo de morte.
O caminho fez-se de olhos postos no cimo, muito acima dos altares, e os lábios a dizer juras de paixões vermelhas e roxas.
A chegada de espera de todas as horas, num tempo sem significado. Um significado maior que o tempo. Um gesto maior do que os homens.
Em silêncio largou-se uma pomba ao céu para que voasse tão alto quanto pudesse e voltou-se ao dia anterior à antevéspera, quando ainda não te conhecia. Desde essa antevéspera que uma pomba voa.
Já não tenho nada, voou tudo nessa manhã. Desse dia não resta nem o passado, tudo me foi levado. Hoje não tenho nada, tudo me é negado. Hoje não tenho nada.
domingo, novembro 19, 2006
Dorme serenemente no mar
As nossas cabeças têm mares dentro que se alvoroçam e serenam. Há momentos, por vezes longos, tão sossegados onde um vale verde parece substituir-se ao pequeno oceano pessoal. Ilusão passageira. É toda essa água que nos une e afasta.
O meu corpo deseja, enquanto tu dormes serenamente no mar. Fazes-te à vida já estou eu chão e sem brisa ou corrente. Não é por vacilarem os lábios que não se dão beijos, mas porque as nossas cabeças têm mares dentro, que inundam e ensopam os sentimentos e os desejos.
O meu corpo quer navegar-te como sempre fez. Quero que o teu no meu mergulhe e colha vida. Não sei se basta esperar e quanto basta o tempo para que uma Lua cheia nova acerte os nossos mares, para as nossas cabeças poderem pender para o sítio apropriado ao beijar. Até esse momento incerto, dorme serenamente no teu mar.
sexta-feira, novembro 17, 2006
O amor que lhe tenho
O grande segredo da minha namorada é a essência do feminino, embora use cabelo à rapazinho. Pode usá-lo à vontade, porque toda ela é mulher, mesmo com o seu peito pequenino, do tamanho de duas meias laranjas da Baía.
O beijo mais austero deu-mo ela; também o mais doce e o sensual. Não há beijo que não saiba dar e nunca repete tal gesto de carinho nem confunde sentimentos ou mente por compaixão.
Gosto de fazer amor com ela, porque é toda amor, prosa, carne e poesia. Consigo ir-lhe fundo e senti-la por dentro até me desapertar, senti-la desabrida a florir.
Gosto-lhe o cabelo curto em revolução e os olhos a revirarem-se em sintonia com o sorriso e o arfar. Contudo, fico bem tranquilo a ouvi-la falar ou a dizer-lhe coisas de pouco ou muito interesse. Quando estou sozinho do que me lembro é do caminhar suave e dos dedos a alongarem o fumo dos cigarros, porque quando anda ou fuma não estou. Gosto e quero o meu amor pelo que é e não por ser a moldura do meu retrato.
Voar sem trapézio
Por mim, se tivesse coragem, também voava sem trapézio. Faço-o quando digo que amo a mulher das minhas insatisfações; caio muito depois de lho dizer e sinto bem quando acabo de mergulhar. Insisto sempre em recuperar, em subir, em lançar-me de novo na frase de amor. Ainda e sempre o mesmo sentimento e a perdição descontrolada, o beijo desamparado. Só esse é o meu vôo sem trapézio.
Se pudesse e tivesse coragem voava mesmo dum penhasco e pelo caminho apanhava uma estrela; faria umas cabriolas no vazio, a meio caminho, se a mulher das minhas insónias estivesse a ver, porque assim de mim se enamoraria e se me aquietariam os sentimentos. Depois voaria com ela sem trapézio e sem rede, porque o amor só o é quando livre e sem condições. Por enquanto vou sonhando com nebulosas de Orion.
quinta-feira, novembro 16, 2006
Relojoaria
O tempo é uma faixa elástica, tão comprido quanto se queira, tão largo quanto se pretenda. Todo quanto se imagine, quanto se deixe e permita. O limite está na imaginação, na dor e na felicidade. Mas sabe-se que é infinito. Mas sabe-se que a vida é finita. Toda a vida finda. Sabe-se que temos muitas vidas. Temos muitas vidas numa vida e temos muitas vidas além da vida. Quanto vale o tempo? Quanto dura?
Sentei-me durante meia hora da minha vida. Fiz ponto-cruz. Fiz amor com pessoas ausentes. Fiz as pazes e evoquei ódios. Encolhi os ombros. Quase chorei. Fiz arte. Disse poesia. Foi tudo em meia hora da minha vida. Numa meia hora, como uma meia laranja, que foi doce e ácida, colorida e breve. Não sei se tive muitas meias horas assim na minha vida. Daquela lembro-me, porque lhe prestei atenção. Dediquei-a a mim e aos amores perdidos, às meias horas que duraram as minhas relações depois da avaria do meu relógio-mestre.
Não sei se o meu relógio-mestre é um amor ou uma pessoa ou um momento ou o orgulho ou o amor-próprio ou uma promessa a dois ou uma ilusão. Mas sei que desde que se avariou todos os meus amores duram apenas meia hora. Meia hora de intensidade. Meia hora de montanha russa. Meia hora de esplendor. Meia hora de orgia. Meia hora de orgasmos. Uns segundos longos de lágrimas. Uns minutos infindáveis de desilusão.
Estou na praia dos vazios entre a maré alta e a maré baixa, à espera duma Lua cheia ou nova. Não quero os mesmos êxtases, mas um quadro azul de firmamento além de toda a eternidade, onde as meias horas não acabem e passem a horas e os beijos perdurem, para que os lábios permaneçam húmidos. Não faço pedidos além do tempo. Quero apenas que as meias horas perdurem.
terça-feira, novembro 14, 2006
A gaiola
O amor não é livre. O amor prende. O amor liberta. O amor contradiz. O amor desmente.
Não sei da rapariga dos meus encantos. Não pergunto por ela, porque a quero livre. Não a solto, porque a quero viva. Estará ela tão presa quanto eu? Possivelmente está com os olhos fincados no seu amor, guardado numa gaiola, donde não o pode soltar. Possivelmente estou guardado numa gaiola donde não posso sair para que não me devorem.
Rondo a jaula como um gato vigiaria se lá dentro estivesse um pássaro. Desejo e quero a carne e o sangue, a satisfação precária do sexo. Quero o ar da respiração, o acordar e o último suspiro. Temo o amor. Não sei viver com um bicho tão frágil nas mãos. Tudo nas minhas mãos se parte. Tudo de mim se aparte. Aparto-me da felicidade e fico. Deixo-me preso do lado de fora da gaiola.
Letras e sudoku
E de letrinha em letrinha percorremos o alfabeto, escrevemos amizade, cama e jantar. No fim da linha encontrámos o «z», de zebra e zulu, no léxico incomum. Chegou ao fim o enigma da sopa de letras. Finou o amor? Depois vieram os números. Ela sentou-se numa pedra a desfazer enigmas de sudoku e eu a olhar para ela com o mesmo espanto de quando a vi pela primeira vez. Faço silêncio e saboreio o momento.
Lembranças
Serei um peixe. Estarei saudoso do mar e cioso do espaço livre. O cheiro é uma evocação da condição antiga. O cheiro a lembrança do sofrimento de quando me tiraram da água.
A água é o líquido do útero! A água é a Terra-Mãe! A água é a vida! Não sou um ponto da reticência posta depois duma exclamativa acertada acerca da vida, mas o tropor de morte e asfixiado dum peixe fora da água. Não do sal, mas do universo, do azul e de tudo e do todo dentro do banho. A minha memória de mar guarda-se no cheiro traumatizado dum peixe aflito por viver.
segunda-feira, novembro 13, 2006
O bolo
Bem intencionado guardei-me num forno e cresci. Saí homem feito. Depois cobri-me de claras em castelo perpetuadas com açúcar, sem me besuntar. Fiquei bonito.
Estou decepcionante. Tenho saudades de quando ainda não existia e olhava para mim como um vazio no fundo da grande tigela. Agora apetece-me volver ou esconder a cara na forma ou na malga, regressar ao fundo ou ao ventre da mãe.
quarta-feira, novembro 08, 2006
São pessoas!
Conheço gente que os julga superiores aos humanos comuns e ditos normais, e atribui aos gatos funções místicas e espirituais na Terra. Reconheço que não acredito e soltei, incrédulo, uma gargalhada quando me contaram tal crença. Contudo, sei da humanidade dos gatos e da animalidade das pessoas.
Um cão é quase pessoa, mas não a chega a ser, porque é servil ao seu dono e tentará obedecer e satisfazer e fazer o que lhe ordenam. Os cães são deliciosos e podem até ser bons amigos dos gatos, desde que tenham inteligência de perceber, ou lhes expliquem, que os felix silvestris são pessoas quadrúpedes.
Um gato é muito diferente dum cão. Com um felino conversa-se e discute-se, diverge-se. Os gatos são artistas. Os gatos têm personalidade... Os cães também, mas não têm vontade independente da do dono quando este está presente. Todos os dias converso com as três gatas cá de casa e elas respondem-me... quando querem.
terça-feira, novembro 07, 2006
O meu futuro
No incómodo roçarei com elas em superfícies ásperas e agrestes, mas só a pele e a carne, nunca as unhas, para que cresçam louçãs e se encaracolem. Se tenho o futuro escrito nas mãos, que seja em carne viva. Se está escrito na pele, que se torne ilegível.
Não há dor que não se aguente ou indisposição que não se disfarce nem extravagância que não se orgulhem os tolos e os diletantes. Penso deixar de cortar as unhas e de fazer a barba e tornar-me no mais arrogante indigente de Lisboa, quiçá do país ou de qualquer outra fronteira. Estarei despudoradamente sem futuro para ler nas mãos, só carne para infectar ou morder.
segunda-feira, novembro 06, 2006
Os meus dias
- Estou vivo!
À noite, ao deitar, emborco três e exclamo:
- Tenho de continuar vivo!
Por vezes durante as horas intermédias vai mais um ou dois ou três ou só meio. Aí nem noto, limito-me a sobreviver ou a viver sem notar.
A minha vida baliza-se entre comprimidos, para poder ser normalzinho, para não espumar da boca, para não espancar ninguém, para não dizer impropérios nem ordinarices, para não andar triste, para não andar feliz. Engulo normalidade compactada.
Para mim estar vivo significa cumprir o ritual dos comprimidos, pois doutra forma deixaria de viver ou correria o sério risco de deixar de estar. A minha vida ora é uma espiral ora uma elipse ora uma recta de aceleração ora uma curva apertada de travagem, percursos perigosos para se sobreviver, quanto mais para se viver. Dizem os médicos que a minha vida é perigosa. Por isso, tiram-ma dando-me comprimidos.
Os meus dias são banais quando não são de tédio, no mínimo são desinteressantes. Noto que passam quando esvazio mais um receptáculo de comprimido. Digo:
- Mais um! Mais um dia. Mais um comprimido. Ainda ontem comecei esta lamela e já está no fim, passaram-se, então, dez dias. Daqui a nada, um mês. Não tarda e é Natal.
Os meus dias são banais quando não são de tédio, no mínimo são desinteressantes. Dizem os médicos que a minha vida é perigosa. Por isso, tiram-ma dando-me comprimidos. A minha vida baliza-se entre comprimidos, para poder ser normalzinho. No entanto, não gosto, mas deixo. Até um dia em que me farte e os deixe de tomar.
Sedução
Há a magia do vinho e espirais a subir pelo ar, escadas floridas de perfume impronunciável, indizível. As mãos não tremem, se tivessem consciência suariam de desnorte. Todo o corpo é satélite da vontade do outro corpo.
Olhos e boca um só desejo. Um só calor. A dança. A dança de sempre. A música deixa de ouvir-se e há coreografia improvisada e certa, marcada pelo querer de dois, vincada pela natureza.
Muitos passos dados e voltas, sorrisos e olhares. Volteios e calores de sempre, palpitações de vida e momentos de quase acção, indecisão, decisão implícita. Beijo.
Nota: Há muito para ouvir e dançar aqui mesmo ao lado.
domingo, novembro 05, 2006
Adolescência
Tenho saudades do Verão! A falta que sinto não é do calor nem do Sol nem dos corpos, mas da liberdade. A liberdade do Verão é desenfreada!
Bem sei que tudo o que é desenfreado é opressivo. Sei! Nada é perfeito neste azul. Sinto falta dos dias de indolência, das tardes de calma, da despreocupação sem horizonte. O Verão é uma adolescência, sem as dependências da infância nem as responsabilidades da idade maior.
Tenho saudades de quando o Verão era o ano todo e dançava noite fora todas as noites e levantava-me quando o sono terminava. A vida acabou-me com o estio e agora sou adulto. Não sei a minha idade, mas devo ser crescido o suficiente para não ter Verão.
Quero dançar até as pernas se movimentarem ritmadas por si e o coração ter a mesma batida escutada pelas orelhas, suar frenético em transe feliz. Feliz porque é Verão e amanhã só significa outro dia e nada mais.
Se tiver alguém perto de mim, melhor. No Verão nunca se está sozinho e estar só não é viver a solidão. Quero dançar na praia, na pista, no campo, no carro, em casa, em toda a parte... levar a vida a dançar e a sorrir. O Verão é a liberdade, a adolescência da vida.
Nota: Este texto é dedicado a Julho e Agosto.
Prantos
Vieram os pratos e tremo, se bem que me alegre ver as ruas como rios e lamente não serem perpétuos para os atravessar de barco.
Tenho medo e enervo-me por ver gente aflita com a água transbordante. Só queria rios nas ruas e barcos em vez de eléctricos e automóveis. Gostava de mergulhar da varanda.
Chegou o tempo do Vinho do Porto e está ainda para vir o da lareira. Chove e embaciam-se as vidraças, sinal de que é quase Natal.
Que posso pedrir este ano pelo Natal? Já tenho tudo e nada mais, com sinceridade, posso exigir... Gostava de ruas de águas e rios fixos nas margens para não haver gente com lágrimas por causa das águas.
sábado, novembro 04, 2006
Uma vez na vida
Dei por mim a pensar o que faço com três gatos em casa (três, logo três). O que penso eu dos gatos? Eu que sempre preferi cães e nunca liguei a gatos!... Dei por mim a pensar com um cachimbo na boca e um copo na mão. Estranhezas na noite e nenhuma resposta.
O que faço eu com três gatos em casa? Naquele momento percebi que não os percebo e que ando iludido quando penso o contrário. Uma vez nos últimos anos fiquei lúcido, mas também calvo e pálido com o horror da descoberta: e agora?! O que fazer?
Naquele momento de gravidade zero no meu pensamento lembrei-me da violência como recurso, no desamor aos animais e àqueles a quem se ama, no conforto da posterior reconciliação e no remorso, na solução impossível e na confiança irremediavelmente quebrada. Pensei mas não fiz. Afinal não enlouqueci. Uma vez na vida, pensei.
Inconformado, acabei por acender o cachimbo inúmeras vezes até o fumar por completo e o deixar, bebi o copo e esqueci-me dos pensamentos. Nada conclui sobre os gatos e não sei por que vivo com três em casa, nem sei o que me encantou neles, sei apenas o quanto aprecio a sua companhia. Uma vez na vida pensei, não estive louco.
sexta-feira, novembro 03, 2006
Medo do Inferno
Digo-te que tenho medo. Medo das feições das criaturas perdidas na escuridão. Não há pior medo do que aquele que não vemos e não deixamos de ver, apenas pressentido e vislumbrado. Tenho medo das sombras e dos seus cheiros pestilentos, das suas texturas desconhecidas e humidades.
Espero não coinhecer a luz do Inferno, mas deve ser muito mais escura do que a duma trovoada. Talvez como a duma lua nova no campo. Apenas a suficiente para perceber os corpos dos seres e dos outros, mas já tarde demais, quando não fôr possível evitar os hálitos.
Digo-te que tenho medo do hálito das bocas de quem vive no Inferno, porque lá só haverá imundice e porqueiras para comer e nada de limpo para se lavar o rosto. Tenho repugnância das mãos e certamente haverá uma luz a iluminá-las. Será pouca luz, mas certeira, a certa para se perceber o negrum nas unhas tornadas garras dos enfermos e moribundos andrajosos, de todos os habitantes fétidos do Inferno.
Tenho medo de ir para o Inferno. Digo-te que tenho muito medo do cheiro.
quinta-feira, novembro 02, 2006
A culpa
Não sei o dia da minha morte nem onde está a minha campa. Hoje reconheço o crime. Não sei se posso chorar. Não sei se tenho o direito de chorar. Quando me vejo tão novo - porque era pouco mais do que uma criança, era um homem - não me reconheço nem percebo como fui capaz de fazer aquilo que tenho vergonha de confessar. Tanta vergonha que é quase um orgulho rejeitar o passado sinistro. Não posso ser eu a mesma pessoa. A culpa perfura-me como uma broca fina, como uma broca grossa, como uma broca quente, como uma doença amarela, como um vómito muito verde. Não sei se mereço poder chorar. Não sei onde tenho campa, ainda bem que não sei dela, porque assim estou a salvo caso tenha uma recaída. Como posso dizer se estou curado se um dia estive doente com um mal tão grande? Tenho medo de mim. Tenho medo dos meus irmãos. Tenho medo da forma como me olhas. Tenho culpa e remorsos. Felizmente não sei quem fui.
Hora zero
Não quero saber o que andámos a fazer durante o dia. Já é noite e nesta casa ninguém consegue dormir. Todos temos alguma coisa a esconder. Juro desconhecer toda a verdade. Não sabia de ti até te ver e falar-te, e da tua vida nunca fui além daquele recanto antes que me mostrasses as intimidades. Por mim, não imaginavas toda a realidade. Sabemos que sabiamos muita coisa. Sabemos o quanto queremos esquecer e ocultar. O silêncio é a nossa cruz, a factura da cumplicidade ou da cobardia. Contudo não sabiamos tudo e nunca quisemos saber. Agora somos arrependidos do que não fizemos e prisioneiros do que dizemos não saber. É o momento zero do dia e nesta casa não se dorme. Já não sei quem és ou o que fizeste. Por favor não me olhes para as mãos, não sabia o que fazia, não sabia de tudo, vi-me obrigado a muita coisa, só te quis fazer feliz, tive de fazer pela vida, não fiz nada, tenho de passar por isto, não sei de ti nem do vizinho. Por favor, não faças perguntas. Não estou bem aqui, vou para lá, para aquele quarto onde estou outros, e espero compreensão e olhares disfarçados. Não faço perguntas. |
terça-feira, outubro 31, 2006
Duro
Sou duro de olhos quentes, arrebatador. Seco! Hoje já não há crime assim. Só eu sei segurar numa pistola com classe e beijar como um patife.Guardo o tempo num armário relicário e não tenho medo. Não escondo o medo, não o tenho. Talvez haja uma sombra no amor, o que me dá força e me torna duro. Sou aditivo com as mulheres. Sou implacável. Sou ambicioso e cru. Só não digo que sou feliz.
NOTA: O NOVO BLOGGER A APAGOU O VÍDEO E AINDA NÃO PERMITE COLOCAR VÍDEOS. A ANIMAÇÃO VOLTARÁ ASSIM QUE POSSÍVEL.
segunda-feira, outubro 30, 2006
Desamor
Não me ames. Não quero o teu amor. Quero o teu corpo e nada mais. Serás um estorvo na manhã seguinte. Já não estarei para te ver, terei partido. Abomino acordar e ver a minha paixão momentânea. Amo-te por instantes. Bebo-te com vinho tinto e quero-te. Quero-te a carne. Depois parto. Deixo-te no leito. Gosto de saber da tua infedelidade, da tua traição a quem amas de verdade. Gosto do meu poder. O meu sexo não é grande, é mágico. Emana encanto como um isco. Não o sei definir. Por isso encanto-me e não preciso de espelhos, basta-me a sombra. Por favor, larga-me e não te apaixones por mim.
Nota: Por o Blogger me ter apagado (?!) o vídeo e o texto vi-me forçado a colocar uma segunda versão. Para não perder os comentários, está abaixo o antigo artigo, embora vazio, e os respectivos comentários.
sábado, outubro 28, 2006
Cyborg
Se vejo fosquices é porque tenho uma visão digital encalacrada. Só um cyborg tem uma visão digital. Nunca desconfiei de mim. Não sei se me devo abater. Não sei se é possível abater-me. Não sei se me posso abater.
É estranho ver com quadradinhos à frente. Se não fôr um cybor devo ter ingerido veneno ou álcool ou é a mesma coisa ou gostava que fosse a mesma coisa. Porém, não bebi. Estas visões digital e afectada provam que existem e que existo, sendo eu um deles. Não sei, por isso, se sou mortal ou perecível. Vou-me quando me acabarem as baterias, sendo que, com elas, vão todas as minhas histórias de infância e canções de embalar.
Se eu fôr um cyborg tenho tudo a perder, menos a vida, é claro! Não sei bem se me importo, só não queria ter a distorção digital tenho agora. Nisto tudo, não sei onde pôr a memória nem o amor. Onde me posso arrumar?
sexta-feira, outubro 27, 2006
Luxúria
Ando febril contigo. Sonho-te acordado e a dormir, desde que te vi, embora nem te conheça. Embora não te conheça sei do teu corpo, vi-o muitas vezes, menos do que o desejei. És pecado e tenho o pecado todo. Não me importa se te gastas em noites e eu se vivo os dias, quero atirar-me para o teu fundo e ir contigo até onde fôr o fim. És vício e sem ti não passo, ainda que seja eu um desconhecido. Vi-te nua e nem espreitei. Estás nua quase sempre, e eu sempre sedento de te ver mais nua, como se fosse possível estar-se mais nua. Não te amo, mas quero-te. Preciso-te. Não vivo bem sem ti. Desgastas-me e gosto de me gastar em ti.
O carniceiro e a minha carne num talho
Não sei se gosto de estar vivo ou se a vida vai por mim e estou habituado a estar e respiro, porque os meus órgãos assim mo orbrigam. Contudo, tenho um corpo e ele vibra com os prazeres dos corpos. Gosta de comida, de sexo e do toque.
O meu corpo aprecia tanto o toque que, se pudesse, até poderia doá-lo à ciência ainda em vida, para que fosse dissecado, mexido e analisado, mesmo que retalhado.
Sei que muito provavelmente sou mortal e um dia farei um trato com um notário, um padre exorcista e um carniceiro. Ao primeiro entregarei o meu testamento e aos outros tarefas: Porque ando cansado da vida e tenho incerteza da morte, tentarei ir. Pedirei ao talhante que me retanche e conserve. Saberá o prior, nos seus exorcismos, quando do meu regresso, porque não acredito na morte e teimo na vida. Quando estiverem certos da minha volta, sentem-me a uma mesa e sirvam-me a minha carne da vida anterior. Sei que não demorarei em voltar e, no frio, tudo se conserva por muito tempo. Que sabor terei? Não me comerei todo, e todo eu estarei à venda para gáudio dos curiosos e lucro do carniceiro, padre e notário. É um trato que um dia hei-de fazer.
Fantasmas vermelhos
Sei que gosto muito de Guilbert & George. Sei que ando a escrever sobre as relações humanas e a pairar na arte. Dou por mim a olhar para várias imagens desta dupla sem saber qual escolher... sem saber o que dizer... sem saber, tampouco, o que sentir. Não sei se é superficial, se é apenas uma película, um brilho ou se é um espelho, um cubo de gelatina, uma ferida com espessura.
A amizade, o trabalho a dois, a arte e a homossexualidade que papel têm? Como se conjugam? Que triangulações fazem, que tintas mesclam? Que preconceitos accionam nos homens tolerantes? Acabo por escolher uma imagem polida. Polida? Nâo! Inofensiva. Escolho uma imagem pudica. Uma imagem sem nus, sem pénis, sem intimidades, com poucos desafios à minha integridade e heterossexualidade. É uma imagem vermelha, como uma anedota, com dois diabretes felizes, nada mais. O desafio está contextualizado dentro de mim.
O ciclo do pobre monge
A minha castidade é voluntária, mas só acontece porque ma impuseram. Por mim continuaria originalmente a pecar. A minha fé é feita de claras em castelo, que no descuido do pasteleiro e volta a perder a armação e a alvura. Assim são os meus votos e promessas. Sou um fraco monge.
Os meus amores são absolutos e quasi incondicionais. Depois morrem-se nas mãos, à minha vista, comigo à cabeceira do seu leito de morte e sem perceber o fenómeno do seu finado. Os amores em mim não medram. Por isso torno-me monge.
Mas nem o amor do Divino me prende por completo e completa é só a minha leviandade, que me leva a trocá-lo pela paixão das carnes das mulheres. Enamoro-me e logo se vai a castidade e volatiliza-se a poeira de santidade que, por ventura, poderia ter-se depositado em mim.
Dispo o hábito e meto-me na cama com a desejada, até o amor ser totalmente consumido. Na cinza não renasce uma Fénix e sobrevém apenas tristeza, incompreensão, lágrimas e partidas. Visto novamente o hábito e, envergonhado, cubro a cabeça com o capuz para que nem o espelho veja o meu rosto. Quando me refaço das dores mostro a cara, é quando volto a encantar e a enamorar. Não há emenda nem penitência.