digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

quinta-feira, abril 25, 2024

A besta da ditadura contra todas as flores

 

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Cinquenta anos de liberdade. Obrigado a quem lutou por ela e a tornou viva.

Cinquenta anos de liberdade

 

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A besta da ditadura contra todas as flores
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Serve de registo a duas datas. Uma é íntima e outra portuguesa. Ficam as minhas palavras de gratidão e de soberania. Se chegarei a ser polémico? Digam os juízes. Tomo a liberdade de ter liberdade.

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O meu pai faria hoje cem anos. Em casa não havia aniversário, a festa era a da alegria da liberdade. A data nasce dele e nele se encerra, por ser, provavelmente, quem mais me moldou.

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O Manuel Jorge disse sempre claramente que o melhor dia da sua vida foi o 25 de Abril de 1974, calhou-lhe no momento dos seus 50 anos. Mais do que o nascimento dalgum dos três filhos. A sua genuinidade, demasiadas vezes inoportuna, dava-lhe justificação das palavras e perdão dos outros.

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A minha memória do 25 de Abril, acontecido quando tinha quatro anos, não é a da data da revolução que veio a impor a democracia. É um ramalhete de momentos irmãos desse dia histórico. Sei que são lembranças, total ou parcialmente, equívocas e desacertadas no tempo, mas tenho-as.

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Guardo duas memórias – obviamente forjadas pela imaginação por só me narrarem – de manifestação de amor paterno, que não era dado a ternuras nem manifestações verbais de carinho. A primeira delas é a do sismo de 28 de Fevereiro de 1969, em que não era nascido, e outra é a do 25 de Abril de 1974, quando certamente estive mais interessado em brincar com os carrinhos.

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O meu pai, sentindo o prédio a oscilar, foi buscar a minha irmã e o meu irmão, de catorze e nove anos, e fez um ninho na cama. Nesse tempo era viúvo e esse gesto enche-me de ternura, especialmente por causa do meu mano. Dizia:

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– Se fosse para morrer, morreríamos juntos.

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O meu pai era frontal, amigo do seu amigo e de ideais mas não era temerário. Ensinou-me que ter medo não é vergonha e não respeitar o perigo é irresponsabilidade. No 25 de Abril o país estava agarrado aos rádios e em alvoroço nas ruas. Segurou os meus manos, de 19 e 14 anos, e não os deixou ir para os festejos. Prudência alimentada pelas décadas de repressão política.

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A minha colecção de momentos do 25 de Abril tem certamente confusões, lapsos e invenções. Lembro-me duma vez, já de noite, em que houve um tarantantã qualquer e o meu pai saiu de casa com uma pistola. Foi numa data importante do processo.

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Não sei se saiu. Não sei se levou uma pistola. Não sei se tinha pistola. Não sei se era noite. Não sei se aconteceu. Na minha cabeça foi real e senti um grande orgulho no meu pai, como se fosse um herói.

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No 11 de Março de 1975 – data que cito sem qualquer rigor, por crença – ouvi tiros e lembro-me da minha mãe estar muito ralada. Não percebia nada do que se tinha passado, estava a acontecer ou poderia suceder, mas dalgum modo senti o frenesim dos grandes momentos.

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A saudade é um sentimento – na verdade um ramalhete de sentires – que frequentemente é irracional. Como sentir com apreço momentos terríveis, cuja razão se deve à idade que se tinha à época a que se reporta. É aí que se enraíza a nostalgia.

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Não tenho inveja das gerações anteriores nem posteriores à minha. Não daria nada para viver a euforia do 25 de Abril. Não cultivo as minhas datas e muito menos sou nostálgico dum tempo que não vivi. Isto não significa desinteresse nem desvalorizo a luta pela liberdade.

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Por não ser nostálgico é que me enfado com o passado e me irritam as repetições. Reviro os olhos cada vez que oiço o «Grândola, vila morena», porque cansado da linda música e generosos versos, e não uso cravo vermelho no peito – sabe quem sabe e tem rigor que a flor das ruas era de todas as suas cores, não apenas a rubra – nem doutra coloração. Nem rosas, orquídeas, lírios, jarros, gladíolos nem outra nem de papel.

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O 25 de Abril não é essa canção nem a doce e perfumada roda recortada. É um conceito e um conjunto de acontecimentos. Não me tomem por ingrato, só não aceito liturgias e rezas da tradição. Sou consciente e agradecido, mas não estive nesse momento, passado que não é meu.

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Valorizo o significado do 25 de Abril e respondo com desprezo aos salazarentos. Aliás, só entendo a raiva ao 25 de Abril daqueles que perderam alguma coisa com a chegada da liberdade. Os outros nostálgicos são ou ignorantes ou imbecis. O inculto, se tiver génio de curiosidade e boa-vontade, ilustra-se, lavando-se com estatísticas. O outro é bruto e tacanho como o Estado Novo.

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Tenho pena de ter deitado fora uma pintura minha de quando tinha quatro ou cinco anos, ainda frequentava no jardim-infantil. No papel de cenário pintei uma pessoa, uma metralhadora da sua altura e outra coisa que não tinha nada a ver – teria no entender da criança.

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Na escola pintei helicópteros a despejarem cravos e metralhadoras com cravos, como todos os miúdos. As flores a tombarem do céu era um momento real e obrigatório em nós, certo como o amor materno.

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Ando há mais dum mês a escrever este texto. Ando com a certeza de que não conseguirei expressar claramente o meu sentimento. Recorri ao meu pai como ferramenta e saiu pobre, a obra. Perdido, resumo:

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O 25 de Abril é muito importante para mim! Viva a liberdade!

A Paraquedas fez 19 anos

 

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A Paraquedas completou ontem dezanove anos. O que se diz a uma gata desta idade?

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Digo-lhe tudo o que disse durante todos os anos da nossa vida comum.

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Por alturas do Entrudo, a família estremeceu quando, ronronando baixinho, por duas vezes se escondeu. Só com um quilo e meio, desatenta e de olhar vago. Esteve com três patinhas no Outro Mundo. Porém, a Paraquedas não quis ir, não sei quantas das suas sete vidas gastou, pesa dois quilos e cem.

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Parabéns, Paraquedinhas.

quarta-feira, abril 24, 2024

O cão mais feliz do mundo – 2024



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A adopção do Bobi é dos momentos mais importantes da minha vida e enche-me o coração de orgulho-bom e de gratidão por tudo que me deu – nos deu. Um cão feliz, possivelmente o mais feliz do mundo.

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De idade incerta, viveu à volta de vinte anos, para mais. Teve uma vida dura. Sofreu violência física que lhe custou dentes da frente, a fractura do maxilar e um olho para fora. Suportou um banho de água quente – embora não ao ponto de pelar. Foi envenenado. Por pouco não perdeu uma perna – derivado duma ferida causada pela corda com que o prenderam por maldade. Abandonaram-no para morrer, com pouca água e nenhuma comida. Além de doente cardíaco, com efisema pulmonar e portador leishmaniose.

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Porém, foi o cão mais feliz do mundo e o mais grato. Tão doce que podia causar diabetes a quem lhe dava festas. Tinha um olhar muito meigo, pedia constantemente mimos, sempre carente, mas ciente que não lhos negariam.

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Sempre a dar à cauda quando via um dos seus três humanos, a Manga, a Paraquedas ou a Valsa. Muitas vezes não vendo nem ouvindo ninguém, de costas, para nós e amigas, e olhando para a frente, continuava a agitá-la. Não lhe faltava motivo para o fazer, estava feliz. Estava sempre feliz.

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Meigo e feliz mesmo quando a Valsa aparvatava e se armava em gata, dando-lhe patadas ou até o perseguindo para judiar. Fugia com a cauda entre as pernas, mas a dar-a-dar como se ela o estivesse a mimar.

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Ganhou cuidados de saúde, carinho, chão quente, almofadas, uma matilha – contando com as gatas – e um nome. Um nome ou mais. Por tão carente respondia também por Bibope, Bigode e Manga. Ganhou a alcunha de Cão do Demónio, porque uma vez, no segundo dia de estar connosco, se desenvencilhou da coleira e desatou a correr pelo centro de Lisboa. Desconfiava dos humanos e desdenhava do odor dos consultórios veterinários. Velho, doente cardíaco e só com três pernas funcionais corria como um jovem atleta. .

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Precisámos de quase duas horas para o apanharmos, o que só possível com a ajuda de duas outras pessoas. Fantasiando, quando nos via olhava-nos, com olhos vermelhos e expressão diabólica, e fugia.

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É conhecida a generosidade dos cães e o Bobi ofereceu-me uma surpresa de molhar os olhos: Custa-me a suportar o ladrar, cria-me ansiedade. Ainda distante do momento da partida, foi deixando do fazer.

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Tendo em atenção a proporção, tinha uma bexiga considerável. O tratamento da leishmaniose obrigou a ida diária ao veterinário para receber uma injecção. A casa e o consultório distam um quilómetro e meio, na ida e volta levantou 52 vezes a pata para urinar, de tão impressionados decidimos contar.

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Lido bem com a morte, mas um cão triste entristece. A Manga está triste. Por vezes fica com a respiração de ansiedade e o seu olhar aperta o coração.

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Hoje pensava festejar os dezanove anos da Paraquedas. A celebração fica adiada para amanhã.

segunda-feira, fevereiro 05, 2024

Também não me cansei


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Se vivendo numa esfera, ou somente num círculo, a cabeça não rodaria mais.

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Não sendo um rio, as lágrimas desceram e hoje não se diluíram na água dos vinte e cinco metros.

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Braçada e pernada pedem demais para se poder pensar. Num tempo infinito não há outra coisa senão ir e voltar. Hoje, não.

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O infinito quando acaba é como o momento de acordar da sesta. Ainda os problemas, mas as ideias, como fruta madura que tomba da árvore para saciar com açúcar e vitaminas, ficam espertas.

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Hoje braços e pernas não foram fortes e a tristeza nem se cansou.

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Um corpo boiando é melancólico e a melancolia é um corpo boiando na piscina.

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Não deixo. Também não me cansei.

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Soluço cloro.

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Soluço cloro, mas não deixo.


Dançar slows

 

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Bola-de-espelhos no final da noite. Quadradinhos luminosos incansáveis.

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Os sapatos apegados aos despojos da cerveja dizem ressaca e bebedeira em partes iguais.

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Vago olhar, triste e confuso, fixando os olhos imparáveis. Perdi a miúda por causa daquele copo mais. Não sei se por ter ido ao balcão ou.

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Tenho a boca pastosa e não gosto da música que toca aqui.

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Onde está a miúda? Não bebi esse copo, não foi por isso.

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Ainda há pouco a sala estava cheia, agora só os sempre-em-pé, os dos gargalos de cerveja e dos copos com mais gelo derretido do que uísque.

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Estou ao pé, sou um deles, assim perdi a miúda que nunca ganhei, certamente nem me viu.

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Esta música já era velha quando, há muito tempo, eu era novo. Esta música já era feia quando, há muito tempo, eu tinha borbulhas.

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Quando eu era novo havia sítios onde se dançava agarrado.

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Hoje ninguém dança slows, ainda bem.

quarta-feira, janeiro 03, 2024

Pergunta


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– O que fui fazer?

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Questão salva-vidas, faço-a antes de mergulhar e oiço-a antes de partir como se tivesse chegado.

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Fico pairando vendo-me indeciso e, às vezes, choro e, às vezes, apático-me.

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Não importa, porque o que a cabeça sente já a boca disse.

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Ainda assim, ninguém me vê despido na rua. Sinto vergonha como se reparassem.

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Porque a boca já disse, recair é mais triste.

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Saberem-me é um corte da desgraça. O infortúnio é uma humilhação.

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Perguntei, esperando uma resposta de bom conselho:

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– E agora, o que fazer?

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Ter-me-ão respondido ou alguma centelha minha recitou?

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Andarei pardo, mais do que andei. Serei uma janela fingindo uma luz. Calar-me-ei como não é devido.

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Que ninguém saiba.

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– O que fui fazer?

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Questão salva-vidas, aproximada dos 400 miligramas azuis, mas sem o sorriso da ilusão.

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O bicho vive e morde e nem sempre as azuis, balas-de-prata ou a estaca, o acalmam e lhe dão sono.

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Abri as janelas antes das paredes me fecharem sem elas nem portas nem lâmpada. Faço a pergunta.

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Fui para a chuva – agora chove – levando nos olhos todas as maldições e promessas que carrego.

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Sob a água caminho rezando a salvação, crendo diluir os feitiços e desdizer os juramentos.

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Quando morde, mordo-o com azul, brado-lhe a devolução dos enguiços e o desatar dos votos.

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Hoje, não. Estou cinzento entalado entre as lágrimas e a letargia.

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Faço a questão e desminto, o mais teimosamente destemido, toda a ditadura que me deseja.

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Hoje é difícil e amanhã não precisarei de perguntar.

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Não vou passar essa vergonha!