digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

Mostrar mensagens com a etiqueta a flor paterna. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta a flor paterna. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, maio 07, 2019

No Museu de Santo António


.
O meu pai não pintou muito temas religiosos, quase nada. Talvez por ser lisboeta ou por ser do mundo, Santo António ficou bem no coração do mestre e este é um dos raros trabalhos nesta temática.
.
Hoje libertei esta pintura a petróleo, que encontrou casa no Museu de Santo António. Situado junto à Sé Patriarcal de Lisboa, é uma reunião pequenina, tratada com rigor e agrado. Quem quiser pode ser rápido ou demorar-se.
.
Agradeço a disponibilidade e o acolhimento de Pedro Teutónio Pereira, responsável pelo Museu de Santo António.
.
.
.
Nota: A fraca qualidade da imagem não se deve ao pintor, mas ao fotógrafo (eu).

quinta-feira, abril 25, 2019

Pai hoje


.
O meu pai – nesta vida – faria hoje noventa e cinco anos. Hoje era o melhor dia, não pelo seu aniversário. Era supremo, dizia que esse, o de setenta e quatro, fora mais feliz do que os da luz de qualquer um dos seus três filhos.
.
Manuel Jorge afirmava-se comunista – não porque o fosse por absoluta convicção, mas pela gratidão aos tombados contra o Estado Novo. Assumia-se, ainda que, ocasionalmente, vertesse em incontida denúncia de engano.
.
A verdade – a sua, generosa e real – corria-lhe íntegra. Como outras coisas, nascia-lhe infantilmente e seguia em curso selvagem. Por essa consciência, nunca quis ser um combatente da ditadura – não se sentiu capaz de ajudar, por isso recusou-se a estragar.
.
Escolhera assim ser comunista. Não o sendo, era-o, porque, tal como ele, o pensamento era autoritário. Os pais não são perfeitos, o meu era dogmático, com a violência emocional que tal implica.
.
Sei que numa ditadura comunista, Manuel Jorge seria anticomunista, porque amava a liberdade. Para si e para os outros, mesmo sendo tirano em família. O meu pai era uma contradição!
.
Tanto era comunista quanto dizia que talvez não o fosse, mas grato, foi com bondade que se ligou ao Partido Comunista Português.
.
O meu pai era verdadeiro e íntegro! Já agora o escrevi.
.
Como agora, escrevi que se ofereceu ao Partido Comunista Português, repito. Deu-lhe tudo e nada recebeu em troca, nem pediu ou desejou. Como artista plástico – dono do seu tempo, vítima dos ganhos em moeda e da irregularidade do recebimento  – deu-lhe tempo de trabalho, materiais e disponibilidade para tudo o que fosse preciso, fosse como trolha na Festa do Avante ou segurança do recinto.
.
Aos setenta e muitos anos, Manuel Jorge estava insensível das mãos e trémulo dos olhos. Foi morto pela natureza, chegou ao fim a arte nos dias. Do Partido Comunista Português não recebeu qualquer homenagem – coisa que não exigia nem gostaria –, louvor ou agradecimento. Foi abandonado, como são abandonados, nas ditaduras, os sinceros e os inúteis. Manuel Jorge era ingénuo, mas inteligente e sábio – teve o infortúnio de ser genuíno e franco.
.
Não por vaidade nem por orgulho ofendido – nunca quis a justiça com que deveria ter sido tratado pelo Partido Comunista Português –, Manuel Jorge percebeu que não era comunista e, nos seus últimos anos neste corpo, nesta vida, feneceu sem o dizer – nunca o diria, não por vergonha, só era assim o seu modo.
.
Um dia, o cobrador das quotas bateu-lhe à porta para colher o dízimo, a parte da renda do senhor terratenente, e Manuel Jorge falou com o humor de toda a sua vida, a brutalidade da sua franqueza e a ingenuidade dos autênticos.
.
A minha mãe disse-me:
.
– Não sei o que o teu pai lhe disse.
.
O recebedor saiu porta fora, batendo-a incrédulo e ofendido, remoendo qualquer coisa de ódio. Manuel Jorge nunca contou dessa curta conversa, nem mostrou sentimento, nem suavemente.
.
Manuel Jorge não deixou de ser comunista por causa do abandono. A arte finou-se em mil novecentos e oitenta e oito e o cobrador resmungou pouco tempo antes de Manuel Jorge ter cumprido a sua vida, em dois mel e quinze.
.
Deixou de ser comunista porque era sábio – da sua sabedoria. Possivelmente, deixou de ser ingénuo, continuando franco, directo e frontal.
.
Como comunista, ganhou rancor ao Partido Socialista e a Mário Soares, por causa dos anos do Período Revolucionário Em Curso – nunca desejou a morte de ninguém, mas, se pudesse, mandava o político para um sítio em que não o visse nem ouvisse nem pressentisse.
.
Com a genuinidade de quem tem uma certeza, afirmava que, se não existisse o Partido Comunista Português, seria do Partido Social Democrata e até tinha simpatia por Francisco Sá Carneiro.
.
Já o escrevi outra vez agora, Manuel Jorge era ingénuo. O meu pai acreditava que os fachos estavam no partido do Centro Democrático Social – afastou-se do catolicismo romano por causa do padre da paróquia de Santa Engrácia, que fazia campanha a partir do púlpito. Vertia cólera devido às desavenças dos primeiros dias de liberdade e do terrorismo ideológico – na verdade era cruzado, recíproco.
.
Manuel Jorge tinha essa zanga, porque era ingénuo – escrevi novamente agora. O meu pai não percebeu que muitos, talvez quase todos, não apoiavam a ditadura por ideologia, mas por situacionismo – faziam pela vida e a revolução estragou-lhes a existência.
.
Esses – não sabia – queriam a fonte no bolso e mudaram-se para os partidos que vencessem nos votos. Para o Partido Socialista e para o Partido Social Democrata, sobretudo para este último.
.
Tenho quase a idade que Manuel Jorge tinha no vinte e cinco de Abril de mil novecentos e setenta e quatro. Não sou mais sábio do que o meu pai – muito longe disso. Viveu muito mais do que eu até esse dia, até depois. Porém, só me falta um ano.
.
Apesar de ser também ingénuo e tristemente frontal e verdadeiro – da minha verdade – sou muito menos do que ele, mas já vivi alguma coisa e anos diferentes dos seus, em tempos e idades diversas. Conta-me a existência que os fachos – os reacças falam pejorativamente da revolução como abrilada e do vinte e cinco do barra quatro – estão sobretudo num lugar diferente do que acreditava o meu pai.
.
Manuel Jorge faria hoje noventa e cinco anos. Era religioso por ânimo e revoltado com a Igreja Católica por azar – nunca o desdisse. Embora eu sendo cristão espírita, dei-lhe, por respeito – também pela família –, um funeral católico romano. No final da liturgia falei ao padre – depois escrevi-lhe a agradecer – o quanto admirei a homilia, porque fizera do meu pai um homem e não um santo.
.
Manuel Jorge, na sua verdade genuína e franca, afirmou tantas vezes que a morte não torna as pessoas boas. O meu pai era ingénuo, mas era sábio.
.
Já agora que revelei que foi dogmático e totalitário – o que os íntimos sabem –, nunca me criticou por eu ter deixado precocemente a fé na religião comunista. Também tolerou, com idêntica abertura, eu ser apoiante – quase sempre – do Centro Democrático Social.
.
O meu pai era uma contradição. Mas.
.
Por tudo o que foi o meu pai – desta vida – faço-lhe, como sempre fiz, uma homenagem, onde cabe um brinde com o melhor vinho que tenho em casa.
.
Apesar de todos os muitos seus defeitos, amo muito Manuel Jorge. Das poucas virtudes que tenho, a maioria devo-as ao meu pai.
.

sábado, abril 08, 2017

Lisbôa

.
Rasguei papéis até os acabar e já me doíam as mãos, isso é sem espessura, pois é mágoa breve.
.
Se não somos os únicos donos das palavras que dizemos, talvez só das pronunciadas secretamente, se fantasma as não ouvirem, a sua razão é a quem respeitam. As palavras dos mortos a quem pertencem?
.
Herdei uns papéis, foram meus até os despejar no silo da reciclagem. Neles houve do que aconteceu. Se Deus não precisa de arquivo, não serei eu a construir nem quero vidas além da minha.
.
Não li nada, fui rasgando desinteressado, enfastiado. Claro que houve palavras emergentes, que eram só letras. Vi lágrimas nos papéis várias vezes reconstruídos. Das vistas, só uma me fixou:
.
– Lisbôa.

sábado, fevereiro 20, 2016

Manuel Jorge, ano I

.
Escrevo este texto a seis de Fevereiro, para que tenha a liberdade de o poder emendar secretamente, para sair hoje «perfeito». Um ano vale tanto como um dia ou uma semana. Assim as vidas.
.
Há anjos que passam sem rasto, assim como demónios. Há quem faça estardalhaço. Há quem vinque grupos pequenos. Há quem tenha muitas vidas numa só. O meu pai teve várias vidas, ou talvez tenha tido vida.
.
O que gosto do meu pai é difícil de definir, como será para a generalidade das gentes. Amo-o muito e estou zangado – aprendi e compreendi isso com o tempo. Ainda antes de ter deixado o corpo, porque a psicóloga que há muitos anos me acompanha me deu uma lanterna para vislumbrar.
.
Sonhando quase lutei com ele, num dolor pungente e incompreensível. Sei que me perceberá se ler este texto, onde quer que esteja – sei que vivo, pois a morte é só de corpo. Uma guerra de espada e abraço, de ameaça e de lágrimas, de justiça sem vingança, da minha raiva – para mim perfeita e justificada – contra a maldade de quem se ama.
.
O meu pai deixou o corpo precisamente há um ano. Não minto se disser que não verti uma lágrima. Não por raiva, zanga, vingança, mesquinhez, insensibilidade… não choro mortos. Chorei a minha avó materna porque tinha onze anos e achei que o devia fazer, que era o correcto. E se amava a minha avó… por ela chamei inconsolável e doente, ao colo da mãe num hospital ou clínica ou gabinete médico. Não pela mãe, mas pela mãe da mãe, que cuidava, por o pai ser ausente e a mãe estar ausente.
.
Induzi esse choro e as raríssimas vezes que lacrimejei num funeral foi pelos que continuaram na carne, por condolência pura – mas não pela partida.
.
Defeito ou virtude… assim era o meu pai e julgo – não perguntei nem vou perguntar – a minha irmã. O meu mano é diferente.
.
Se senti a morte do meu pai? Em que sentido? O meu pai foi morrendo e morreu quando desistiu, foram uns anos. A doença e a progressiva dependência e fragilidade foram-no matando diante dos meus olhos. Nunca deixei de o beijar nem acariciar a cabeça – ele não gostava, mas nestes últimos anos sabia que isso o confortava.
.
Dei-lhe a última alegria no corpo, com a franqueza e generosidade que ele gostava. Os olhos verdes e baços voltaram a ser verdes, embora escurecidos, e brilhantes e sorriu-me como um miúdo que ganhou um balão. Essa imagem será certamente uma felicidade para os dias que terei até o retornar a ver.
.
 – O pai não foi um bom pai. Mas o pai foi um excelente amigo. Um grande amigo!
.
Mais coisa menos coisa. Não valeria a pena mentir, nem era de se derreter. Sabia que só lhe diria verdade e que essa verdade era a que realmente o confortava. Não menti nem fui misericordioso. Tratei-o com a dignidade que merecemos todos. Se não compreendem, não posso fazer, mas funciono, tal como ele, assim.
.
O autoritarismo só baixou comigo. Até ao dia em que o espírito deixou a carne, deu ordens e exigiu. O mais novo, mais mimado e talvez mais sofrido filho – algo tão complicado e egocêntrico de se afirmar – o enfrentava.
.
– O Rei foi deposto. Agora o Rei sou eu!
.
Entre o riso e o sorriso e ainda um ligeiro encolher de ombros. Verdade!
.
Quando colocou o pacemaker e teve de mudar de lugar na cama foi uma tormenta para a mãe e funcionárias do apoio domiciliário. Calhou ir a sua casa quando o estavam a convencer – irredutível, ríspido e autoritário.
.
– O pai colocou um pacemaker. Os médicos disseram que tem de se apoiar para este lado e tem de mudar de lado na cama. É assim, não tem escolha.
.
Assim foi. Algumas vezes, ao telefone, a mãe lhe passou o auscultador, para que eu o fizesse aceitar a evidente necessidade de qualquer coisa.
.
Sei que não fui déspota, não me vinguei nem me ocorreu aproveitar a imensa fragilidade dum homem que fora uma força da natureza e chegou aos noventa anos com o peso dum atleta. Quando tive de o alimentar e de ir a casa prestar-lhe apoio não o forcei a comer, não o torturei com uma colher. Se não queria comer, tinha de aceitar um iogurte. Se eu achava que as portadas deviam ficar fechadas e ela as queria abertas, fazia-lhe a vontade.
.
Tentei que fosse feliz ou vivesse confortável – no possível.
.
A verdade é que não verti uma lágrima… um ano inteiro. Porque não sou de chorar mortes. Sinto saudades, porque o cito muitas vezes, nas graçolas, nas sabedorias, nos ensinamentos de pintura…
.
Perguntaram-me tantas vezes:
.
– O teu pai não te ensinou a pintar?
.
– Foi o teu pai quem te ensinou a desenhar e a pintar?
.
Não. O meu pai não me ensinou nada disso. O meu pai falou-me com naturalidade acerca de erros, de situações evitáveis.
.
Percebi isso este ano, há um mês ou dois. Liguei ao mano e contei-lhe e concordou. O pai não nos agarrou na mão, nem corrigiu o traço, só dava opinião no final se o pedíssemos e a meio se pedíssemos muito – não sentenciava nesse momento. Se achava que tinha ficado uma merda dizia:
.
– Está uma merda!
.
Explicava porquê, ainda que o pedido fosse feito apenas com um imperceptível olhar.
.
Um ano vertiginoso, consumido como a mortalha de papel de arroz no lume. Saudades? As mesmas de quando estava na carne – dirão que quando estava vivo. Digo, porque sei, que a morte não existe, fenece o corpo, pois somos espírito e como tal, imortais. Em aprendizagem contínua em encarnações e passamentos sucessivos até a estádios superiores, que nem imagino densidade ou felicidade.
.
Falarei do corpo, sintetizando no argumento conveniente da morte. O pai morreu lentamente, decaindo e consciente, sofreu – a força da natureza vergava-se e assim deprimido e desalentado. Desalentado de forma tão absoluta que juro saber o seu verdadeiro significado.
.
Para conforto de quem fica e a quem basta parar o coração, foi sem dor e no momento certo – se existe situação incerta… existe, dependendo do nosso livre-arbítrio, o destino não é uma obrigatoriedade, usamos o que nos dão e essa liberdade traz responsabilidade.
.
Voltando, parou-se-lhe o coração quando o pacemaker percebeu que não fazia milagres e a biologia ditou o momento. Depois do almoço, depois da primeira colher da sobremesa. Sem um ai nem suspiro.
.
Foi quando terminou o contrato que assinou antes de ter reencarnado. Nem que fosse por esta minha certeza, não chorei. Todavia, não chorei porque não sou de chorar mortes.
.
Choro, aflijo-me, aleijo-me, morro com o incompreensível. Por duro que me seja uma sentença, ainda que injusta, se a entender, aceito-a. A morte faz parte da vida – mesmo para quem vê a vida como biologia, sem dimensão espiritual ou além duma só vivência.
.
Dirão:
.
– Só se vive uma vez!
.
– Uma de cada vez.
.
Esta, o Manuel Jorge viveu intensamente. Foi injusto, foi magnânimo, foi amigo, foi tirano… foi o que foi, espelho do seu patamar de evolução espiritual.
.
Não sou católico, mas sou cristão. Sei que deixara o convívio da Igreja Católica Apostólica Romana por divergências pessoais e políticas. Penso que o continuou a ser e que, no final desta encarnação, se apercebeu do logro do comunismo. Não partiu comunista e sei que cristão, provavelmente católico, embora revoltado.
.
Por ele e pelos familiares católicos romanos, quis que tivesse serviço religioso – que me abstive de participar, permanecendo sossegado e em observante respeito. O sacerdote, julgo que italiano, já idoso, foi duma humanidade imensa.
.
No final, estava ele aflito de tempo, já atrasado para outro acto de obrigação sacerdotal, disse-lhe:
.
– Sabe, não sou católico, mas sou cristão e…
.
Interrompeu-me com um doce sorriso, dizendo que ser-se cristão é o importante.
.
Aqui faço o meu parêntesis: ser-se cristão não é seguir uma religião ou credo, mas tentar ser-se justo para com o semelhante, não exigindo aos outros mais do que a nós mesmos, e tentar progredir… diga-se o que se quiser: moralmente, espiritualmente, em consciência, civilizadamente, solidariamente.
.
Depois, escrevi ao senhor agradecendo a breve homilia. Agradeci-lhe por não ter feito do meu pai um santo – tantas vezes os mortos são pessoas fantásticas e fabulosas, imensamente recomendáveis… Agradeci-lhe por o ter descrito como um homem e esperando ter feito mais para o bem, embora sabendo haver quem dele não gostasse.
.
E é isto! Um ano após. Não falo com ele, nem o chamo, pois o lugar dele agora é outro e a sua tarefa diferente. Lembro-o e guardo-lhe amor e gratidão, pois apesar de tudo deu sempre mais e melhor do que tirou.
.
.
.
Nota: Escolhi uma pintura de William Turner pois era grande apreciador da obra.

domingo, setembro 27, 2015

O olhar

.
O espírito de. Entre o conforto e a dor da difícil partida que se vai adiando por amor. As palavras foram ditas, se alguma ficou, só por esquecimento e falta de importância.
.
Aquele último olhar brilhante, quando os olhos tinham anos de baços – só uma criança e o cão os acendiam.
.
Aquele último olhar não foi alegre. Foi feliz e quase me comovi por o ter conseguido.
.
Aquele último olhar, vivo como antigamente. O sorriso que para sempre será o mais feliz que vi, porque. Um consolo por consolação.
.
.
.
Nota: Talvez uma semana antes de ter completado esta vida, disse-lhe que, melhor do que melhor do que pai, era um grande amigo. Foi só isto.

segunda-feira, setembro 21, 2015

A nave

.
Pai, que navio bonito é este? Nele estás.
.
.
.
Nota: Navio «Rainbow», projectado em 1834 por William Starling Burgess, sendo esta fotografia de 1837.

sábado, abril 25, 2015

Sagres I – o navio do Manuel Jorge

.
Quando apagou o cigarro pela última vez foi pela última vez. Quando esvaziou o copo pela última vez foi pela última vez.
.
Quando quis que fosse a última vez teve de esperar.
.
Depois foi sossegado e tranquilo, em mar-chão.
.
.
.
Nota: O meu pai navegou no Sagres I, actualmente Ricker-Rickmers, e muito boas recordações dele guardou.

quinta-feira, abril 02, 2015

Manoel de Olveira - 1908 a 2005

.
A morte não redime ninguém, a extrema-unção é usurpação de poder e o dom da graça na morte seria uma hipocrisia de Deus – é o que penso, pela polémica que possa causar digo que lamento se ofendo. Todavia, é de mau gosto explorar os defeitos de quem não está na carne para se poder defender de viva voz, ofendendo familiares e amigos.
.
Quando o meu pai desencarnou mandei rezar missa de corpo presente… paguei por um serviço. Será que a falta dos euros desembolsados impediria um pároco de orar pelo defunto? Responderá quem souber. A Igreja Católica Apostólica Romana é enorme e nela cabe todo o tipo de gente, de sacerdotes a devotos.
.
Paguei a missa por respeito aos familiares e amigos do meu pai – e meus – que seguem o rito romano. A minha noção de Cristo e de Deus é incompatível com esse, e outros, cerimonial.
.
Gostei da homilia. Um padre idoso e simpático – julgo que italiano, pela forma de pronunciar as palavras, e com o português muitíssimo bem articulado. Não despejou palavras, de livro ou de sua lavra. Disse pensando e senti-o sentindo compreensão pela dor daqueles que ali estavam por meu pai.
.
No final fui agradecer-lhe. Fui sincero assumindo-me como alguém que tenta ser cristão e que não segue o Papa. Sorriu-me iluminado, deixando-me a vontade de lhe dar um abraço. Disse-lhe:
.
– Gostei muito da homilia. Sabe porquê? Porque não tornou o meu pai num santo.
.
Sorriu-me abraçando-me com o olhar. Não expliquei mais, ele percebeu – pressenti-o – e tinha de ir dar apoio a uma outra família. Tantas vezes o morto é um poço de virtudes e alegria da família nas palavras dos curas, quase tantas quanto não são verdadeiras.
.
Este prelado disse, com a sinceridade tranquila da boa-gente, que o meu pai teria muitos defeitos, falhara às vezes, teria tido problemas talvez tivesse adversários. Mas também amigos, amou familiares, gestos nobres e alegrias.
.
Este padre encheu a capela de humanidade e deu-me alegria, coisa improvável num funeral. Uma alegria não alegre, mas de harmonia. Nunca tendo visto o meu pai, falou dele como se o conhecesse… porque falou do homem. Do homem comum e da vida.
.
Escrevo este texto não por causa do meu pai, mas para sublinhar uma afirmação do amigo André Serpa Soares. Disse – concordo – que muitos são os que agora choram as partidas de Herberto Hélder e de Manoel de Oliveira, mas nunca leram um poema ou viram um filme destes dois criativos.
.
É mais fácil dizer gosto ou não gosto quando se conhece – ainda que não entendendo a obra no todo ou em parte. Herberto Hélder passa mais entre a chuva, mas do centenário cineasta tanto se disse, e muito mal se disse. Sei – porque sei, como o André sabe – que são mais os apedrejadores e as carpideiras do que quem assistiu a filmes seus.
.
Não é por a morte ter chegado a Manoel de Oliveira que se torna no maior vulto do cinema português – o que obviamente é discutível. Uma obra tão vasta e uma carreira tão longa têm espaço para tudo.
.
Não vi toda a sua obra, mas vi quase toda. Contando confiado na Wikipédia, foram 32 longas-metragens, 16 curtas-metragens e nove documentários. Só pelos números e pela idade, Manoel de Oliveira merece um nome de praça.
.
Para quem não viu e gosta de dizer coisas, deixo a minha impressão, brevíssima… dos deploráveis e risíveis «Canibais» ou «Non, ou a vã glória de mandar», aos belíssimos «Vale Abraão», «A caixa» ou «Aniki-bobó».
.
Foi e é um homem como todos. Da casta dos criadores. Quem nunca viu, que veja, para que compreenda… e veja do bom até ao invisível.
.
.
.
Nota: Dedico este texto ao André Serpa Soares que – sem lho ter pedido e sem ele saber – me deu o mote.

sexta-feira, março 27, 2015

O que penso do que sinto

.
Tenho o frio que senti no meu pai quando o toquei cadáver. Não o reconheci naquele objecto. Este frio é só este frio, nada mais do que o frio do anoitecer numa rua ventosa.
.
Tinha um frio cálido, uma contradição. Um saco cor-de-laranja e repousando de olhos e boca. Lá dentro estagnado, sangue quieto. Parado, podem dizer sereno se vos ameniza ou consola.
.
Disse-me, antes da médica da emergência, no compreensível raspão, informar – ali na rua, entre carros, no sítio.
.
Veio e disse-me da forma como dizia morte, com palavras reduzidas ao mínimo. O mesmo rosto como sempre a disse, a mesma que tenho quando digo morte; usando o mínimo de palavras
.
Assim entendemos. Não há dúvidas. Disse-me:
.
– Morri.
.
Percebi, antes de o ver aproximar-se, de lhe sentir o toque espiritual, de o encarar e ouvir.
.
Cheguei e na rua a médica protegendo-se foi lacónica e essencial, usando mais palavras do que ele diria, do que digo.
.
O polícia que zelou pelo corpo soprou o vento entristecido e quieto da sala vazia de som, secando as lágrimas da mãe, suspensas à minha chegada. Ali estivemos à espera da próxima burocracia e da outra seguinte.
.
O meu pai estava feliz. Antes de ter saudades. Carinhoso, doce como o nunca vi. Acalmou a minha mãe, abraçando-a, ficando de pé a seu lado, com o braço sobre as costas da cadeira e a mão no ombro, ouvindo-nos.
.
Estava feliz, o meu pai. Acompanhou-a até que lhe disseram para ir. Esteve por ela e deixou-a ali, junto à terra barrenta, e também ao corpo. Porque o tempo. 
.
Saudades vieram e foram-se e virão.
.
Deixou o rosto sereno para quem o quis assim entender. Olhei o rosto como corpo, nem sereno, só vazio.
.
Olhei-o como alguém que se despede à janela do comboio. Deixei-o com a minha mãe, que não o viu.
.
A morte não tem segredo. Faz parte da vida, como gatinhar e aprender a falar.
.
É mais difícil de explicar que é apenas do corpo.
.
Disse sempre morte com duas palavras e nunca o vi doloroso. Digo de forma mínima e não me vi doloroso.
.
Não é frieza nem falta de palavras. São as palavras todas e a certeza mentalmente orgânica de além-fim.
.
Não sei se somos – ele e eu – normais, sentindo a normalidade da morte. Não por frieza, mas porque.
.
De todas as coisas só não entendi a cor-de-laranja e o frio cálido da pele.

quinta-feira, março 19, 2015

Dia de Reis

.
O meu pai nunca ligou a datas. Duvido que soubesse a do meu aniversário, tal como a da minha mana. Do meu irmão talvez, por ser a véspera do seu... como não ligava nem ao dele, não juro. O dele era fácil, porque as cerimónias do 25 de Abril lho lembravam – é o que dá afixar um feriado no dia em que se completa mais uma volta em torno do Sol. Quanto ao da minha mãe… idem, idem, aspas, aspas. O do casamento? Nem pensar! Dia do Pai, é o quê? O Natal e o Ano Novo, sim, por causa das mesmas razões do dia dos cravos.
.
Tal como ele, marimbo-me para os dias fixos. Sei alguns, porque os fixei sem querer. Porém, chegados é possível que nem me lembre. Hoje é Dia do Pai, se escrevo este texto é porque amanhã faz um mês que o seu espírito se despiu do corpo que usou durante quase 91 anos.
.
Prometo, em sua homenagem, que deste ano em diante não me vou lembrar nem do Dia do Pai, nem do 20 de Fevereiro. Quanto ao 25 de Abril não terei escolha, o país encarregar-se-á de mo dizer.
.
O Senhor meu pai gostava muito de vinho e em sua honra abrirei hoje qualquer coisa que lhe ilumine o sorriso. Tenho a certeza que, se puder ler este texto, vai apreciar o Modigliani…
.
Foi um bom doente, obediente quanto à toma dos remédios. Ainda assim, fora isso, nos últimos tempos, sinal da idade, o seu feitio refinou-se. Só o filho mais novo – eu – o convencia e o punha na ordem:
.
– O Rei foi deposto. Agora o Rei sou eu.
.
Ria-se e fazia o que lhe dizia.
.
Sem ele, não faz sentido ser o Rei. Para lhe iluminar os olhos, deixo-lhe também um Caulfield, que detestaria.
.

sexta-feira, fevereiro 20, 2015

Manuel Jorge – 25 de Abril de 1924 – 20 de Fevereiro de 2015

.
O meu pai contava-me a estória dos «Músicos de Bremen», adorava ouvi-lo contar. Tão bom ou melhor do que ir ao cinema.
.
Acima de tudo, um tipo muito fixe!

segunda-feira, junho 30, 2014

Salvar o Tua - O meu manifesto

A razão deste texto pode conhecer-se em http://www.salvarotua.org/
.
.
.

O meu pai sempre disse:
.
– As pessoas são capazes de ir ao estrangeiro ver paisagens e museus e do seu país não conhecem nem paisagens nem museus.
.
Citando mal, foi isto que sempre disse. O meu pai, que hoje tem 90 anos, nunca quis conduzir nem ter automóvel e não foi por isso que deixámos de visitar o país. Levavam-se horas imensas! Fixei algumas: seis horas de Lisboa a Castro Verde, doze horas de Lisboa a Mirandela.
.
Para quem não sabe, o meu pai é (era) artista plástico, concretamente pintor, e absorvia o que lhe entrava pela janela do autocarro ou do comboio, eventualmente do automóvel de alguém com quem partilhávamos o passeio.
.
O meu pai via e contava-nos o que via, porque os olhos de pintor viam muito além. Tenho a reprodução do retrato de Dom Sebastião, de Cristóvão de Morais, e lembro-me que esse trabalho – estudo para um outro, de encomenda, e ambos com autorização do Museu Nacional de Arte Antiga, onde o meu pai passou horas a estudar a obra quinhentista – estava com pequenos adesivos a assinalar minúsculas alterações de tom. Onde se via negro, o meu pai via negros.
.
Dessas muitas viagens recordo-me da que fizemos até Bragança. Não havia auto-estrada para o Porto, mas da estopinha não tenho ideia. Devia ter onze anos, um para cima ou um para baixo, e adorei ver os tróleis do Porto, onde um dizia que Avintes – achei o nome tão engraçado... e ainda hoje me sorrio a lembrar-me da alegria parva, dum pré-adolescente, de pronunciar Abintes.
.
Do Porto fomos em direcção ao Douro, apanhámos o comboio primeiro na Estação de São Bento – ou Sambento, para quem gosta de falares – mudámos em Campanhã. O que tem de bonito a primeira – uma das mais felizes gares portuguesas, com azulejos de Jorge Colaço – tem de feiura a outra, que parece um apeadeiro gigante e encardido – e assim acontece também em Coimbra.
.
A vista da linha do Douro enche a alma. Mas o arrebatar da respiração começou no Pocinho, onde se fazia o transbordo para a linha do Tua, que desaguava em Bragança. O comboio era pequenino e lento e trepava, pouca-terra-pouca-terra, até Trás-os-Montes.
.
Com os olhos quase virgens, sem medo mas pensativo, enamorei-me pelas paredes de encosta dum lado e com a vertigem do outro, que só parava no fim troço de água, um risco largo de verde escuro, bordado a branco fininho, dos tropeções nos calhaus. Do outro lado vi, como se fosse um espelho, escarpas brutas, babantes de amarelo-alaranjado do enxofre, escorrentes nos cinzentos, com umas pouquíssimas plantas doidas que nesses muros escolheram fixar-se.
.
O comboio corria em bitola estreita e os bancos eram de madeira, com alguma ergonomia. Eram de suma-a-pau e não sumaúma, brincava o Manuel Jorge, o pintor. A minha mãe, quase sempre calada, mostrava o enlevo.
.
Conversador e activo, o meu pai meteu conversa com quase toda a gente e tanto se falou sobre aquela linha, aqueles povos, as vidas de outrora e da linha e sua vista. Dessas conversações não me lembro, mas fixei uma piada:
.
– Este comboio é tão lento que se pode sair, em andamento, pela porta da frente, fazer xixi, apanhar umas flores, esperar um pouco e entrar pela porta de trás.
.
Apaixonei-me por Bragança e por Vinhais. A capital de distrito era uma aldeia grande e longínqua e Vinhais tocou-me pela decadência do património medieval. Voltei lá, muitos anos depois, e essas pedras estavam barradas com cimento, uma tragédia de gosto e bom-senso.
.
Uns anos mais tarde (talvez oito, nove ou dez) andei a mostrar Portugal à Kerstin e tive de a levar até Bragança pelo caminho mais bravio. A bitola estava ainda reduzida e a máquina uma ternura que arrastava duas carruagens. Entrei e decepcionei-me, porque tinham tirado os bancos de suma-a-pau por uns bancos chatos, duros, desconfortáveis – umas coisas verdes iguais aos que equipavam a linha de Sintra. Moderno não é sempre progresso, os de madeira eram muito mais confortáveis, por se ajustarem ao corpo.
.
Mostrei-lhe o século dezanove e ela deu-me o século vinte; a minha namorada alemã vivia em Wuppertal, uma cidade em que o metropolitano tem os carris em cima e se prende às linhas por um braço, causando o balanço que lhe deu a alcunha, ou o nome próprio, de «comboio que levita», Schwebebahn. Cidade que Wim Wenders filmou em «Alice e as cidades». Cidade onde a bailarina e coreografa Pina Bausch fixara a sua companhia de bailado, a Wuppertal Tanztheater. Cidade onde nasceu a poderosa multinacional Bayer, cujo complexo, o primeiro, foi cercado pela cidade, é atravessado pelo bizarro veículo. Cidade que, fora isso, não tem nada de interessante e onde já não vive a minha grandíssima amiga Kerstin e o fantástico marido Markus.
.
Regresso à viagem no século dezanove... Desesperados pelo conforto e, sobretudo, pelo cheirete dum velhote, fomos indagar a carruagem seguinte. Parecia ter metade do tamanho, mas havia uma porta ao fundo. Abrimo-la e era espaço de carga – levava o correio, um ou dois pacotes. Tão larga e comprida para tão pouca coisa...
.
Pouca coisa? Não! Uma porta larga, para permitir a entrada de cargas volumosas. Mais do que porta, muito mais do que janela, era o portão para a liberdade dum salto ou varanda, aberta e apenas com um ferro para alguém se agarrar caso fosse preciso. Sentámo-nos no chão, com os pés no estribo e bebemos o ar de cheiros que fazia parte da paisagem.
.
Em Portugal teima-se na asneira de abandonar as linhas férreas. Não digo apenas as antigas e quase vazias, até as que não nascem... Aos anos que oiço falar numa linha de mercadorias, em bitola europeia, entre o terminal de carga do porto de Sines, de águas profundas, e França, passando sem salto ou transbordo a fronteira dos Pirenéus – entrada privilegiada e óbvia para grandes cargueiros – e nada se faz. Em contrapartida pensou-se em comboios de alta velocidade sem cidade onde parar e fez-se um aeroporto em Beja, meio caminho de duzentos e setenta e sete quilómetros e quinhentos metros entre Lisboa e Faro – infra-estrutura que serve uma área metropolitana de pouco mais de vinte e cinco mil habitantes. Mas houve tantos mais.
.
A força dum povo – inculto mas cioso das suas coisas, que no tempo certo consegue reparar nas patifarias que querem fazer ao que é seu – rasgou a barragem do Vale do Côa. Os portugueses compreenderam que aqueles riscos, que ninguém percebia, eram importantes. Juntaram-se intelectuais e paisanos, assinaram-se papéis do abaixo-assinado; do duque de Bragança, representante de oitocentos anos de Reis, a intelectuais e anónimos. O Vinho do Porto, património único e valioso, deu outra ajuda. Nos momentos importantes, há canções que se tornam hinos. Nesse momento foi o nascente hip hop português a bandeira sonora da causa, dos Black Company.
.
 – As gravuras não sabem nadar, yô!
.

.
Foi em 1995 e Portugal fartava-se da democracia de voz grossa do Governo de Cavaco Silva, que levou mais uns tabefes na Ponte 25 de Abril.
.
A força das ideias tanto bateu, e com tanta força, no betão que a barragem não vingou. Quase vinte anos depois, os portugueses voltam a ter de se mover, agora pelo Tua. Agora é mais difícil argumentar, não há gravuras, mas nem por isso a luta deixa de valer a pena.
.
Do que se fala?
.
– Fala-se de defesa do meio ambiente. Fala-se de vinho, do Porto e do Douro. Fala-se da paisagem humanizada por gerações de trabalhadores, que permitiram a agricultar-se nas montanhas. Fala-se em todo esse património que a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) classificou, em 2001, como sendo de interesse da humanidade.
.
Não é com intervenções artísticas que se faz a ressurreição de bens públicos. Com a lição aprendida a quando do movimento contra a barragem do Vale do Côa, a EDP arrebanha agora artistas consagrados e arquitectos de prestígio... matar ao luar não é menos criminoso do que o fazer na rua à luz do dia – como se fosse um filme negro com detectives.
.
Esta luta pelo Tua tem a «virtude» de mostrar o rosto de alguns dos grandes nomes das artes portuguesas e das elites da arquitectura. Não quero fazer juízos de carácter dos artistas Pedro Cabrita Reis, Pedro Calapez e Joana Vasconcelos, que têm sido convidados a criar arte nas infra-estruturas hidroeléctricas. Ficamos a saber que gostam de ouvir o tilintar das moedas nas algibeiras – o que é o que é – mas nunca lhes ouvi discursos altruístas acerca da defesa do património e pode ser que tanto lhes dá como se lhes deu o Douro dos socalcos, o vinho único de classe mundial e as plantinhas e a bicheza.
.
Mas Eduardo Souto Moura e Álvaro Siza Vieira dão-me vómitos. Tudo o que disseram afinal tem uma excepção e a excepção é o atentado ao património onde vão poder mexer, a troco duma transferência bancária, que tanto pode ser dum cêntimo como de três mil milhões de euros.
.
Siza Vieira mete-me particularmente nojo, pelo que defendeu para o Chiado e pelos bonitos riscos que traçou da obra humana e natural do Douro. Poderão dizer:
.
– A assinatura de tão reputados arquitectos, ambos vencedores do Prémio Pritzker, dá garantias de boa integração na paisagem e vai criar um sítio de interesse cultural.
.
Cultura que destrói o único e o frágil lembra-me a Santíssima Inquisição e a perseguição ao pensamento divergente, queimando livros e pessoas. Para mais, matar é sempre matar, nunca se mata mais-ou-menos. Se matarem o património com a barragem do Côa, não serão São Álvaro (santo dominicano, nascido em Córdova em 1368 e morrido em 1430) nem os dois São Eduardos (ambos reis de Inglaterra – O Confessor, 1004 a 1066 e O Mártir, 962 a 978) quem irá miracular a aventesma. Muito menos os arquitectos Álvaro e Eduardo quem irá embelezar a besta-fera.
.
Não, não acredito em milagres... Acreditando em Deus – num sentido de consciência moral, ético e espiritual, mesmo em agnósticos e ateus – sei que haverá quem, mais ilustrado «lá do outro lado», agasalhe esta luta. Mas se a barragem do Tua for levada numa enxurrada de cidadania, o correr da água irá lavar os maus pensamentos, será por labor dos conscientes, numa batalha na Terra contra o materialismo.
.
Digam: são trezentos e cinco milhões de euros. Quanto vale um abutre, quanto vale a fauna e a flora selvagem? São quatro mil empregos, directos e indirectos. Até quando? Até dois mil e dezasseis. Depois disso? Os mesmos sítios ermos e os paisanos que não morrerem nem abalem para onde a vida dá mais uns trocos.
.
E se antes se criassem redes de turismo e se embrulhasse todo o Vale do Douro até ao Planalto Transmontano num pacote de beleza, cultura e recreio? Daria mais trabalho, a Câmaras, empresários... Começando no Porto e acabando em... não só de luxo. Muito mais euros e mais trabalhos daria. Não Já, mas mais logo.
.
Ainda que lá não vá ao Tua, quero que exista. Tal como quero vivos o lobo e o urso não tencione encontrar-me com eles.
.
Pois, a luz. Que luz essa que ensombra?
.
Estou-me nas tintas se vamos importar mais electricidade, que vamos pagar mais... só tenho dez dedos na mão e não cortaria nenhum para que as minhas mãos coubessem numa luva com nove entradas feita de prata e ouro – que confortáveis seriam.
.
Ah! Já me ia esquecendo... a soalheira Alemanha consumiu, a nove de Junho passado, cinquenta vírgula seis por cento da energia a partir do Sol.
.
O número de horas de Sol em Portugal situa-se entre as duas mil e duzentas e as três mil. Na Alemanha, a variação é entre mil e duzentas e as mil e setecentas.
.
.
.
.
Nota 1: Por limitação do número de caracteres nas tag, os créditos dos vídeos são expostos aqui:
.
Nota 2: A música «As coisas mais bonitas que vi» é o hino pela defesa do Tua e tem a autoria de Márcia e Luísa Sobral. Nela participam também Amélia Muge, André Tentúgal (We Trust), Catarina Salinas (Best Youth), Frankie Chavez, Mafalda Veiga, Marta Ren, Rui Reininho (GNR), Samuel Úria, Selma Uamusse, Susana Travassos e Tiago Bettencourt.  
.
.
.
Nota 3: Para quem ficou curioso com o Schwebebahn, aqui fica um vídeo que acompanha parte viagem – tentei pôr a viagem toda, mas os quarenta e quatro minutos de filme são demasiados para a capacidade do Blogger.
.





segunda-feira, abril 01, 2013

Agonia

Caminho cruzado com a morte, berma de desejo. O problema moral do desejo e a consciência da solução. Sinto o arrepio do envolvimento e a agonia da vergonha. A tristeza de todos os dias tristes, num repente chegados. A boca amarga, desejando a doçura do limão. Chegados aqui... é voltar para a cama e esperar que os dias passem. Que a vida faça o que tem de fazer. Dormir para que a consciência e a vergonha não doam.

Memória das coisas

A memória estúpida das coisas. Será que toda a memória é estúpida e bom é não lembrar... as coisas estúpidas têm memória longa. A dor prolonga-se em sabor. E as coisas que valem a pena? Passam depressa e são esquecidas. Para que se quer a memória? Rancor, amor e perdão... tudo isso. Mas o que queria mesmo era esquecer. Não ter vivido e talvez não ter nascido.

quinta-feira, junho 07, 2012

Não quero crescer

Pai, tenho saudades das intermináveis conversas e da companhia. Mãe, tenho saudades da mansa genica, quase parada. Pai, herói e carrasco, justiceiro falhado e usurpador involuntário. Mãe de toda a ternura, até ao sufoco. Um dia serei crescido e terei muitas saudades. Por agora vou-me resignando à desistência de um e impotência de outra. Tenho pena, não deles, mas de mim. Toda uma vida e isto, esta minha vida, a cruz, não a que carrego por eles, mas a do meu fracasso. Tenho saudades e quero esquecer os dias que não as tenho. Saudades dos abraços a três. Um dia serei crescido, e muito mais triste.

sexta-feira, agosto 26, 2011

A volta do pai, a volta da volta do pai



















O pai ri-se. Interroga, afirma, delira, flutua, entre este mundo e um outro. Da lucidez à fantasia real das suas horas, minutos. O pai ri-se e brinca. O pai grita, a mãe desespera. O oceano manso alevanta-se, e o pai amaina-se sem aceitar nem compreender. O pai ri-se. O pai fala. O pai diz com voz de se ouvir. Há quanto tempo não o sentia assim. O pai grita, há quanto tempo, com voz de todo o corpo. O pai grita e a mãe desespera. O pai ri-se, flutuando entre a realidade e um outro mundo.