digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

quarta-feira, fevereiro 03, 2021

Órfão de mana

 

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A minha mana mudou-se para a Pátria Espiritual, para onde quis ir. Disso não tenho quase nada a dizer. Quero só contar algumas memórias. Só as do tempo em que vivemos juntos e a última lembrança, com ela, da minha infância.

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Vivi com a Luísa até aos meus cinco anos. Nessa idade, as memórias não são muitas. Umas são reais e outras moldadas por fotografias e palavras que me disseram. Mais vírgula, menos ponto, sei quais as verdadeiras recordações de quando.

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A Luísa contava, com gosto, uma maldade que lhe fiz. Ela tinha comprado uma saia nova e estava muito contente com ela; a natural vaidade duma adolescente. Pegou no seu brinquedo (eu) novo e pô-lo no colo. Só que o brinquedo, com dias ou poucos meses, decidiu fazer um grande cocó e estava sem fralda... pobre Luísa. Não sei quantas vezes lhe ouvi este episódio, mas ria-se sempre.

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A minha mana sempre gostou de crianças, tanto que foi professora primária. Num Carnaval vestiu-me e mascarou-me duas vezes: palhaço e mandarim. Do palhaço só me «lembro», porque há fotografias. Do chinês recordo-me.

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Um dia fiz uma birra – coisa que todas as crianças fazem numa determinada idade, às quais não se pode ceder – e ela foi resolver o caso. Pôs-me em cima da cama dela e disse-me:

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– Vamos fazer uma combinação.

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Para mim, uma combinação era uma peça de roupa. Não percebi como iríamos fazer uma combinação nem para quê. Não me lembro mais do que isto.

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Ofereceu-me dois livros infantis que adorei, um comprido em papel-cartão e o outro em tecido. Embora não me recorde do momento em que mos deu, sempre os tive associados a ela.

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Uma vez, os meus pais iam de viagem a Espanha e eu queria muito ir. Por mais que me dissessem que não iria, acreditava que ia. Levantaram-se cedo, antes do meu acordar. Quando despertei… choradeira. A minha mana consolou-me, deixando-me usar, pela primeira vez, a sua máquina-de-escrever.

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A minha mana levou-me, algumas vezes, à escola onde estudava (Dona Luísa de Gusmão), certamente para exibir o maninho – pode também ter sido uma visita a casa do tio Fernando, que vivia em frente, ou possivelmente as duas coisas. Já quase a chegar, passámos por uma loja que tinha uma miniatura de mota. Pedi-lhe e ela deu-ma. O que adorei aquele brinquedo.

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A última memória de infância que me liga a ela é a mais duradoura e palpável. A Luísa tinha-se casado e eu tinha dez ou onze anos. Numa visita, apresentou-me uma menina doce e contestatária, a Mafalda. A Mafaldinha, como «todos» lhe chamam.

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Adorei tanto o livro que me deu (o volume três) que o li quinhentas mil vezes. Compraram-me os outros – talvez me tenha oferecido mais algum. Está usado por tantos anos de leitura repetida. Sempre que o vejo, a Luísa aparece-me na memória, desde sempre.

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No Verão de 2018, fomos passear ao Norte e pousámos na casa da Luísa. O Miguel tinha onze anos e a mana apresentou-lhe a Mafaldinha. Ofereceu-lhe um livro grande, que junta o conjunto de todos. O miúdo leu-o vorazmente. Uma e outra e outra e outra e outra vez, tal como eu aos onze anos.

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Quando contei ao Miguel que a minha mana se tinha mudado para a Pátria Espiritual, falou-me prontamente na Mafaldinha. Com um olhar de clara saudade por uma pessoa que só viu uma vez.

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Vivendo em Braga e eu em Lisboa, telefonávamo-nos com regularidade. Tanto tempo de falas que um de nós acabava em urgência. Os dias não se fazem só com conversas de manos – estas eram intermináveis, podiam ser eternas. Porém, tenho a sensação que não ficou nada por dizer, só por acabar.

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O nosso espírito é eterno.