digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

segunda-feira, fevereiro 29, 2016

Tenho na cabeça

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Desistente, desistentável, sofredor e sofredável. Expulso-me e empurro-me, expulsam-me e empurram-me. Pago a sinceridade e a crueza, não sou frio. Antes fosse assentimental e assentimentado, tivesse o fio da lâmina do aço e não me alimentasse de ternura.
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Se a morte existisse e com ela pudesse jogar aos dados. Se o Diabo vivesse e a ele vender a alma. Se não tivesse assinado o contrato ou lido as cláusulas.
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Se pudesse desexistir, se Deus me desse a bênção de me descriado. Como seria feliz no instante em que.
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Não sei o que faço nem quero fazer parte. O corpo gosta da casa, mas a cabeça deseja partir. A cara gosta do vento e a alma soltar-se e nele se abandonar.
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Tanto faz quase tudo, quando tudo é nada e nada pode ser muito. Tanto faz, tanto faz, tanto faz e tanto faz aos milhares, mesma escuridão em onde.
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Melancolia num embrulho de lençóis amarrotados. Nem que fossem a mortalha, a morte não me interessa.

Assim as cousas

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Despiu-me e fizemos amor. Depois despi-me e apaixonou-se por mim. De tão densamente despido, fartou-se de mim.

sábado, fevereiro 27, 2016

O Natal de Victória

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É porque que preciso duma fada, dum génio lamparino ou dum meteorito. Ou tubos e retortas, um relógio de pesos inglês, gatos e cristaleira num sismo. Se cão, sua trovoada. Frio e lâmpada eléctrica incandescente, de feixes amarelos – como quando nino, franzindo os olhos para os ver chegarem quasi perpétuos.
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Os fantasmas natalícios de Dickens, agiotas e ratazanas, cascatas de tudo para chão de pedras escorregadias ou de lama e bosta, fontanários envenenados e crianças sob teares, nos bairros de fumo e suor e batatas, prostitutas, cerveja e gin.
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Jack, o Estripador, o Monstro de Frankenstein, o Conde Drácula, o Lobo do Capuchinho Vermelho, Fausto, Dorian Gray, Doutor Jekyll and Mister Hyde, Narciso e Orfeu. O retrato do bisavô que era duque e gastou tudo e perdeu até a mulher, no Egipto.
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A casa range de imensa, chove-lhe e correm patinhas no escuro. Na cozinha de ladrilhos de xadrez há bolo-inglês, chá verdadeiro, açúcar e pinga de leite, pode ser Natal.
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Nem Godot bate à porta nem o Batman. O chá quente e ninguém, cama de lençóis de meses e almofadas de anos. Se gatos, seus demónios. Se cão, seu medo de coragem generosa.
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À meia-noite, o relógio de pesos inglês sentencia e o chá vai à pressa e eu para esperança – amanhã talvez seja Natal.
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Nota: Por limitação da caixa das etiquetas, coloco aqui os créditos artísticos. Música «Fairy on the Clock», Letra de Erell Reaves, Música de Sherman Myers, Orquestração de Patrício da Silva, Interpretação de Ian Whitcomb, Música por «What’s Next Ensemble».

sexta-feira, fevereiro 26, 2016

Só isso

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Se pudesse voltar atrás faria tudo diferente, menos sair para beber e dançar e.

Eu como palhaço morto

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Quando me deram o riso impuseram-me a tristeza. Pagam-me o aplauso com palmadinhas de compaixão e mentiras silenciosas. Como todos os rejeitados acredito na injustiça, no mundo enganado e mamo na derradeira esperança de ter um passado no futuro.
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Unto-me nas músicas gordurosas e poemas sinistros de raiva mordida para dentro – não hidratam nem curam. Alguns sinceros dão-me o desconto para os tolos e, com um espelho em que não me identifico, vejo o sorriso da esperança – o meu de ilusão.
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Dão-me rosas, sabendo-as nuas. Os cínicos são compreensivos e entregam-me a promessa de roupa – a do Rei nu. Pendurado no estendal, espero a aberta que seque a roupa por estender e que me vestirá – fico no Inverno.
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Como todos os palhaços, tenho um sorriso. Digo que me mato, não conto. Nem ouvem, deitam-se e até amanhã ou qualquer dia.
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Pior é não ter inveja e suportar vergado a vida que juro não merecer. Sonho em ter um passado no futuro, seja em cinza ou húmus.
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Nota: O título do texto é o mesmo do da fotografia.

Máquina-de-palavras

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Nunca fico sem palavras, invento outras – às vezes guardo-as.

A chuva não é azul

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Vinte vezes outro, não porque chove. À janela está o gato melancólico, tira-me palavras e ocupa-me. Se estivesse lá fora, molhado e patético como um gato molhado, a lentidão da indiferença seria a da escuridão cavada, desta masmorra de porta aberta, sem outro silêncio .
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A vida é câmara-lenta, da indolência da derrota e do frio desistente e consentido, de mim oferecido a rapaces e ao chão.
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A mãe não dá colo, vá quando for e vá também – cordão ata-nos, falho abraços, mau filho.
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Os remorsos que dizem secos apontam-me castigando. A cabeça não sai nem dela saio.
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Vinte vezes outro ou ir para não ficar.

Incapaz

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Vai-te embora, que me mandaste ir. Não posso, porque peso não-aguentadamente e se vou deixo de mim o que não quero que fiques.

quinta-feira, fevereiro 25, 2016

A culpa e a inocência e in dubio pro reo

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Sem dúvidas, condeno-me por culpa e inocência – temor do desamor da perda. Não sei latim.

Flores, Frutas, Urticantes e Calhaus

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Olhem todas:
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– Namoramos ou adolescentámo-nos. Quis-te e quiseste-me. Quis-te e nada. Quiseste-me e nada. Nunca soube. Nunca soubeste.
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Tenho saudades, pedidos de perdão e algumas justificações.
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Se for o caso, ouvirei e aceitarei o que me disseres ou condenares.
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Diz-me qual é o teu endereço de correio electrónico. Diz-me o teu número de telefone.
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Garanto-te que não escreverei nem telefonarei. Quero saber-te para que possa apontar a confissão de culpa.

Milagre pascal

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Loura com uma melena branca sobre a testa, o cabelo era comprido.
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Descia a Rua da Verónica. Descia a Rua da Verónica. Virava na Rua Leite de Vasconcelos. Virava na Rua Leite de Vasconcelos.
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Ficava na paragem do autocarro 12. Descia e lamentava a incoragem de ficar e seguir no mesmo carro. Fantasiava uma conversa, um local e um beijo.
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Vestia-se de preto e branco, às vezes de castanho-claro. Vestia-me de preto e branco, às vezes de castanho-claro
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Desejava que me olhavasse discretamente. Procurava-lhe os olhos, sabia que não seria capaz de os fixar nela.
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Pensava que me olhava discretamente, com desejo parecido com o meu. Não o fazia.
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Veio a Páscoa e na luz-escuridão da discoteca para adolescentes encontrámo-nos. Olhei-a e desejei que me encarasse e tivesse um desejo parecido com o meu.
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Falou-me e eu. Nem um beijo, tanto que lhos desejava. Ingénuos e tímidos dançámos, sem lábios. Quase manhã, apanhámos o 42 – e o 12 era o que me servia.
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Olhava-me discretamente e desejava idêntica – que surpresa.
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Segurou-me na mão e despiu-se, ficou a camisa por pudor, aberta para que a sentisse. A minha primeira.
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Dias e acontecemos tão insaciáveis.
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A Páscoa foi a 19 de Abril. O milagre não sei.
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Passou a Páscoa e tudo.

Invoando na gaiola

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Quero ser o Herberto Hélder e o António Lobo Antunes, denso como mercúrio e negro como os buracos, por consumido pela infelicidade de Espanca e a incompreensão de Camões, mas sou um só, diferente do Pessoa.
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Quero morrer quando quiser e alguém que me leia e diga que valho a pena.
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O meu signo é Saturno e tenho ascendente em Mercúrio. Vivo na fase negra da Lua no seu lado escondido.
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Uma casa sem janelas nem fósforos, três gatas para abraçar e uma manta para me esconder do negrum, deitado no chão morno.
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Nota: Já tinha referido antes, escrevo «negrum», porque o «E» dá luz a «negrume».

quarta-feira, fevereiro 24, 2016

Querido Diário (Económico)

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Querido diário,
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hoje escrevo porque acordei triste, emocionalmente cansado e com o sentimento da derrota que sentiria um cavaleiro andante derrubado do cavalo. Por isso, sinto-me também envergonhado.
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O meu coração é – hoje é e não está – papel de jornal amarrotado, que o roçar do maltrato fez esborratar a tinta. Nem tento endireitá-lo, porque hoje é, e não está, tristíssimo.
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Um jornal faz-se de notícias, de cachas, de bombas, mas também de imprecisões, gralhas, crises internas, loucura, festas de Natal e muitas emoções. Um encerramento é sempre doloroso e trágico, emocional, de frases poderosas, lamentos em surdina, lágrimas, risos, euforia ansiosa, perdição – isto é válido para qualquer empresa, hoje e aqui é o Diário Económico.
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O título está legível e nele leio os nomes de quem o tem feito desde Outubro de 1989. Encontro o meu… os de amigos, conhecidos, de quem gosto e até dos potencialmente desagradáveis. Este enunciado é total, do estafeta até ao director de produção, da telefonista ao colunista, do director ao estagiário, de quem tem a responsabilidade do economato até ao centro de documentação.
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Comecei no Diário Económico em Janeiro de 1990 – onde guardo boa recordação do mestre Goulart Machado. É injusto só citar um nome e se mais juntasse continuaria curto. Voltei em 1995, com Nicolau Santos – conheci mais dois mestres, Luís de Barros e João Paulo Guerra.
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Quase 16 anos depois de sair definitivamente, ainda hoje sonho, a dormir, que faço uma chamada e digo que sou jornalista do Diário Económico.
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Estive na Rua de Santa Marta e na Almirante Reis. Frequentei, pelos amigos, as instalações no Carmo. Não sei quem teve a péssima ideia de sentar o jornal em Alcântara.
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Tanto se pode escrever e dizer acerca de tudo o que correu mal e que lançou para a insolvência o Diário Económico. Contudo, não vale a pena. É passado, sem retórica.
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Presente é o meu abraço – com a certeza de que tantos outros camaradas o fazem, como os seus imensos leitores, a todos os que actualmente ali trabalham – acompanhado pelo desejo da esperança e de solução sem dor ou com poucas lágrimas.
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Não é um obituário!
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Ao escrever esta minha crónica, Carlos do Carmo cantou-me mentalmente o «Cacilheiro», com música de Paulo de Carvalho e poema de José Carlos Ary dos Santos. Peço ao leitor que entenda o barco. Escrevo a pungência:
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«Se um dia o cacilheiro for embora,
Fica mais triste o coração da água,
E o povo de Lisboa dirá, como quem chora,
Pouco Tejo, pouco Tejo e muita mágoa».
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Nota: referi os meus mestres no Diário Económico, mas quero deixar o nome de outros dois, que não citei por não visarem o caso. Trata-se de Mário Rosendo (O Jornal) e Maurício de Carvalho, que me explicou o que é fazer televisão.

sábado, fevereiro 20, 2016

Manuel Jorge, ano I

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Escrevo este texto a seis de Fevereiro, para que tenha a liberdade de o poder emendar secretamente, para sair hoje «perfeito». Um ano vale tanto como um dia ou uma semana. Assim as vidas.
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Há anjos que passam sem rasto, assim como demónios. Há quem faça estardalhaço. Há quem vinque grupos pequenos. Há quem tenha muitas vidas numa só. O meu pai teve várias vidas, ou talvez tenha tido vida.
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O que gosto do meu pai é difícil de definir, como será para a generalidade das gentes. Amo-o muito e estou zangado – aprendi e compreendi isso com o tempo. Ainda antes de ter deixado o corpo, porque a psicóloga que há muitos anos me acompanha me deu uma lanterna para vislumbrar.
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Sonhando quase lutei com ele, num dolor pungente e incompreensível. Sei que me perceberá se ler este texto, onde quer que esteja – sei que vivo, pois a morte é só de corpo. Uma guerra de espada e abraço, de ameaça e de lágrimas, de justiça sem vingança, da minha raiva – para mim perfeita e justificada – contra a maldade de quem se ama.
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O meu pai deixou o corpo precisamente há um ano. Não minto se disser que não verti uma lágrima. Não por raiva, zanga, vingança, mesquinhez, insensibilidade… não choro mortos. Chorei a minha avó materna porque tinha onze anos e achei que o devia fazer, que era o correcto. E se amava a minha avó… por ela chamei inconsolável e doente, ao colo da mãe num hospital ou clínica ou gabinete médico. Não pela mãe, mas pela mãe da mãe, que cuidava, por o pai ser ausente e a mãe estar ausente.
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Induzi esse choro e as raríssimas vezes que lacrimejei num funeral foi pelos que continuaram na carne, por condolência pura – mas não pela partida.
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Defeito ou virtude… assim era o meu pai e julgo – não perguntei nem vou perguntar – a minha irmã. O meu mano é diferente.
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Se senti a morte do meu pai? Em que sentido? O meu pai foi morrendo e morreu quando desistiu, foram uns anos. A doença e a progressiva dependência e fragilidade foram-no matando diante dos meus olhos. Nunca deixei de o beijar nem acariciar a cabeça – ele não gostava, mas nestes últimos anos sabia que isso o confortava.
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Dei-lhe a última alegria no corpo, com a franqueza e generosidade que ele gostava. Os olhos verdes e baços voltaram a ser verdes, embora escurecidos, e brilhantes e sorriu-me como um miúdo que ganhou um balão. Essa imagem será certamente uma felicidade para os dias que terei até o retornar a ver.
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 – O pai não foi um bom pai. Mas o pai foi um excelente amigo. Um grande amigo!
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Mais coisa menos coisa. Não valeria a pena mentir, nem era de se derreter. Sabia que só lhe diria verdade e que essa verdade era a que realmente o confortava. Não menti nem fui misericordioso. Tratei-o com a dignidade que merecemos todos. Se não compreendem, não posso fazer, mas funciono, tal como ele, assim.
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O autoritarismo só baixou comigo. Até ao dia em que o espírito deixou a carne, deu ordens e exigiu. O mais novo, mais mimado e talvez mais sofrido filho – algo tão complicado e egocêntrico de se afirmar – o enfrentava.
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– O Rei foi deposto. Agora o Rei sou eu!
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Entre o riso e o sorriso e ainda um ligeiro encolher de ombros. Verdade!
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Quando colocou o pacemaker e teve de mudar de lugar na cama foi uma tormenta para a mãe e funcionárias do apoio domiciliário. Calhou ir a sua casa quando o estavam a convencer – irredutível, ríspido e autoritário.
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– O pai colocou um pacemaker. Os médicos disseram que tem de se apoiar para este lado e tem de mudar de lado na cama. É assim, não tem escolha.
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Assim foi. Algumas vezes, ao telefone, a mãe lhe passou o auscultador, para que eu o fizesse aceitar a evidente necessidade de qualquer coisa.
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Sei que não fui déspota, não me vinguei nem me ocorreu aproveitar a imensa fragilidade dum homem que fora uma força da natureza e chegou aos noventa anos com o peso dum atleta. Quando tive de o alimentar e de ir a casa prestar-lhe apoio não o forcei a comer, não o torturei com uma colher. Se não queria comer, tinha de aceitar um iogurte. Se eu achava que as portadas deviam ficar fechadas e ela as queria abertas, fazia-lhe a vontade.
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Tentei que fosse feliz ou vivesse confortável – no possível.
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A verdade é que não verti uma lágrima… um ano inteiro. Porque não sou de chorar mortes. Sinto saudades, porque o cito muitas vezes, nas graçolas, nas sabedorias, nos ensinamentos de pintura…
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Perguntaram-me tantas vezes:
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– O teu pai não te ensinou a pintar?
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– Foi o teu pai quem te ensinou a desenhar e a pintar?
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Não. O meu pai não me ensinou nada disso. O meu pai falou-me com naturalidade acerca de erros, de situações evitáveis.
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Percebi isso este ano, há um mês ou dois. Liguei ao mano e contei-lhe e concordou. O pai não nos agarrou na mão, nem corrigiu o traço, só dava opinião no final se o pedíssemos e a meio se pedíssemos muito – não sentenciava nesse momento. Se achava que tinha ficado uma merda dizia:
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– Está uma merda!
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Explicava porquê, ainda que o pedido fosse feito apenas com um imperceptível olhar.
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Um ano vertiginoso, consumido como a mortalha de papel de arroz no lume. Saudades? As mesmas de quando estava na carne – dirão que quando estava vivo. Digo, porque sei, que a morte não existe, fenece o corpo, pois somos espírito e como tal, imortais. Em aprendizagem contínua em encarnações e passamentos sucessivos até a estádios superiores, que nem imagino densidade ou felicidade.
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Falarei do corpo, sintetizando no argumento conveniente da morte. O pai morreu lentamente, decaindo e consciente, sofreu – a força da natureza vergava-se e assim deprimido e desalentado. Desalentado de forma tão absoluta que juro saber o seu verdadeiro significado.
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Para conforto de quem fica e a quem basta parar o coração, foi sem dor e no momento certo – se existe situação incerta… existe, dependendo do nosso livre-arbítrio, o destino não é uma obrigatoriedade, usamos o que nos dão e essa liberdade traz responsabilidade.
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Voltando, parou-se-lhe o coração quando o pacemaker percebeu que não fazia milagres e a biologia ditou o momento. Depois do almoço, depois da primeira colher da sobremesa. Sem um ai nem suspiro.
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Foi quando terminou o contrato que assinou antes de ter reencarnado. Nem que fosse por esta minha certeza, não chorei. Todavia, não chorei porque não sou de chorar mortes.
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Choro, aflijo-me, aleijo-me, morro com o incompreensível. Por duro que me seja uma sentença, ainda que injusta, se a entender, aceito-a. A morte faz parte da vida – mesmo para quem vê a vida como biologia, sem dimensão espiritual ou além duma só vivência.
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Dirão:
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– Só se vive uma vez!
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– Uma de cada vez.
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Esta, o Manuel Jorge viveu intensamente. Foi injusto, foi magnânimo, foi amigo, foi tirano… foi o que foi, espelho do seu patamar de evolução espiritual.
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Não sou católico, mas sou cristão. Sei que deixara o convívio da Igreja Católica Apostólica Romana por divergências pessoais e políticas. Penso que o continuou a ser e que, no final desta encarnação, se apercebeu do logro do comunismo. Não partiu comunista e sei que cristão, provavelmente católico, embora revoltado.
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Por ele e pelos familiares católicos romanos, quis que tivesse serviço religioso – que me abstive de participar, permanecendo sossegado e em observante respeito. O sacerdote, julgo que italiano, já idoso, foi duma humanidade imensa.
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No final, estava ele aflito de tempo, já atrasado para outro acto de obrigação sacerdotal, disse-lhe:
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– Sabe, não sou católico, mas sou cristão e…
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Interrompeu-me com um doce sorriso, dizendo que ser-se cristão é o importante.
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Aqui faço o meu parêntesis: ser-se cristão não é seguir uma religião ou credo, mas tentar ser-se justo para com o semelhante, não exigindo aos outros mais do que a nós mesmos, e tentar progredir… diga-se o que se quiser: moralmente, espiritualmente, em consciência, civilizadamente, solidariamente.
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Depois, escrevi ao senhor agradecendo a breve homilia. Agradeci-lhe por não ter feito do meu pai um santo – tantas vezes os mortos são pessoas fantásticas e fabulosas, imensamente recomendáveis… Agradeci-lhe por o ter descrito como um homem e esperando ter feito mais para o bem, embora sabendo haver quem dele não gostasse.
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E é isto! Um ano após. Não falo com ele, nem o chamo, pois o lugar dele agora é outro e a sua tarefa diferente. Lembro-o e guardo-lhe amor e gratidão, pois apesar de tudo deu sempre mais e melhor do que tirou.
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Nota: Escolhi uma pintura de William Turner pois era grande apreciador da obra.

quinta-feira, fevereiro 18, 2016

Invisualisando

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Boca e olhos secos e ainda na fonte de lágrimas e nelas afogando-me. A alma incomoda o sono e o coração salta à corda. Tremo por me temer. Condeno-me e absolvo-me pelas culpas e injustiças. Não sou o único a carregar o mundo e tanto faz – sou pesado e denso, não tenho árvores nem rios nem passarinhos. Merdifico as alegrias e desvejo a felicidade.

Inquiedaísmo

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A minha incerteza depois de Sócrates. A queda como Newton explicou. Sair por um túnel que Einstein disse. Fazer a fotossíntese, transtornado. Respirar como os tubarões, inquieto. Regressar para antes da concepção ou refazer ou abandonar, por esta dor vermelha-aguçada.

Ai suspirando

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Nunca mais é já.

quarta-feira, fevereiro 17, 2016

Profundamente

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Detesto acordar quando estou a dormir.

Janela

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Colecciono árvores e gatos de cor de folhas, no Outono.
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No Inverno há sossego e pela janela chega uma luz lenta, baixo as pálpebras por segundos, como se fosse um gato preguiçoso, enroscado num cobertor, resguardado pelo espaldar da poltrona, o arranhador predilecto.
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A Primavera é um aborrecimento de indecisão e surpresas – dispenso-a. O gato gosta.
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Todo o Verão é melancolia e muitas vezes tédio. O calor é para o Inverno ou confortando a humidade do Outono. O gato gosta.
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No Outono os gatos preferem a casa, mas às vezes escondem-se nas folhas do chão.

sexta-feira, fevereiro 12, 2016

Meta-além

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Um calhau vindo da cintura de astróides matou os dinossáurios. A pedra não foi atirada nem por Deus, nem pelo Diabo, nem foi um acaso. Foram alienígenas, para abrirem a porta aos humanos – parece que somos híbridos ou mestiços universais.
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Até a vida na Terra! Porque pode ter surgido num lugar qualquer do infinito ou do grande-para-caraças, nunca aqui.
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Já o nosso conhecimento foi adquirido porque eles… não temos nem mérito nem inteligência. Veio tudo dum saco onde tudo está ligado. No espaço, no tempo e no meta-além.
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Nota 1: Escrevi propositadamente astróides e não asteróides. Não me lembro onde encontrei essa alternativa, em que gramática ou dicionário. Porém, ainda que tenha sido ilusão de óptica ou memória falsa, prefiro-a, porque há astros e não ásteros ou asteros.
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Nota 2: Escolhi as caricaturas de Giorgio Tsoukalos, porque os seus penteados são a prova da presença alienígena ao longo da história. Mas há mais sábios de sabedoria sábia que têm divulgado a verdade acerca da humanidade e da vida no cosmos.
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Nota 3: Imagens provenientes de http://www.galleryoftheabsurd.com/
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Control + Alt + Del... nop!... Format C:

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Sei que me apagaste, e o teu retrato ficou-me vincado.
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Não tenho nada a perdoar. Fui quem te deu a borracha e errou o traço do auto-retrato.

É isto

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O que é a depressão? É isto.

Branco-marítimo


quinta-feira, fevereiro 11, 2016

Pelo menos menos trinta

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Devolvam-me os GNR. Devolvam-me os The Smiths.
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Não é da música, nem do tempo.
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Não é nostalgia, é melancolia.
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É duma nova oportunidade na mesma vida.

Qualquer coisa que não sei dizer

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E de sua boca se projectou um peixe vivo como um demónio exorcizado.
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Fiquei a pensar no tempo e na escuridão, não no tempo da escuridão.
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A figura sombria do Diabo, tão carecido de misericórdia e compreensão – ou vice-versa.
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Depois pensei nas gárgulas e na luz das catedrais.
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Depois pensei no ferro e no carvão e no tempo:
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– Deu-lhe com sua espada sobre o elmo e o rasgou da cabeça até ao peito de modo que seus elmo e arnês era todo de sangue e miolos.
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Li. Li mais da filigrana ingénua, deliciosamente violenta, de brutalidade quotidiana e imponderada.
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As trevas vieram depois, quando as bombas e os gases. Ainda mais frias, com o botão e o manípulo de guiar a morte até um lugar.
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Foi o cinzento-azul do peixe sufocando e o vómito do pobre homem, pardo naquela luz sem recorte nem contraste, a penumbra dos deambulatórios nos dias finando-se – o que me despertou.
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E se fosse comigo? E se na vez de cuspir, engolisse o bicho?
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Meu Deus! Meu Deus! Alguém acenda uma luz, que me afogo nos medos.
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Qual será a cor da minha alma? Do laranja-fogo da loucura ao azul-veludo da taciturnidade ou do vermelho-falso do riso ao negro profundo e absoluto da imemória do sono.
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Aquele peixe voou sem asas como um demónio fugindo da cruz e das palavras – essas negras por imponderadas da ignorância e da falta da caridade.
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Pensei.
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Esse momento horroroso da surpresa sem lágrimas, um castigo qualquer.
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Não, o sono é mais negro quando não é fundo, pois lembro-me.
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Cansado, muito cansado. Faz-de-conta que não lembro de dormir bem.
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Faz-de-conta a cidade inexistente e ninguém.
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Não é diferente. Quem-me-dera-a-luz-da-fé ou a visão da angelitude ou o mosaico do vitral antes do frio e do anoitecer.
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No Paraíso haverá rios e camas para o sono.

O bolso de Cronos

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O meu sonho é não ter um Rolex, mas o tempo.

Branco-trágico


sábado, fevereiro 06, 2016

Entregaria a alma num instante infinito

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Dava tudo para te ver nua. Agora e já e em instante infinito. Quem dá tudo não dá nada, mas daria a alma.
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Já que entregaria a alma, me fosse concedido o perdão por tocar-te no mamilo e saber da rijeza. Encadeado pela auréola, pequena ou espalhada. Colhendo os seios com a delicadeza certa e me saciasse.
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Já que entregaria a alma, me fosse concedido o perdão por te beijar da boca ao ventre. Enlouquecido e enleado nos cabelos tocados para que não se julgassem abandonados. Colhendo da barriga a suavidade das almofadas escandinavas.
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Já que entregaria a alma, me fosse concedido o perdão por te beijar todos os lábios. Desvairado por me teres também em sabor. Colhendo a droga benigna dos corpos quentes.
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Já que entregaria a alma, me te fosse obrigado a tudo e tu a mim. Colhendo tudo como se houvesse nada. Agora e já e em instante infinito.

Declaração de inaptidão

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A vida é pastosa. Se não fosse importante, não o seria. Como a escola, onde percebi a importância do prazer, por causa da utilidade, e do sofrimento, pelo desnecessário.
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Não é por se ir à escola que se pensa pela própria cabeça. Possivelmente será o oposto. Mais profundamente? A maioria das pessoas não pensa, sobrevive.
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Com sorte, vive-se. Sem tal, sobrevive-se ou até só se existe.
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Nem falo da qualidade do ensino nem dos critérios de avaliação ou da justiça.
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Estudar é um aborrecimento. Aprendi pouco e o que sei ganhei enquanto desenhava ou escrevia, em paralelo ao discurso dos professores.
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Raramente me interrompiam. Só no início. Depressa percebiam que não valia a pena tentar caçar-me, pois afinal estava atento e sabia quase sempre.
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A capacidade de se pensar em paralelos não é um dom, antes uma negligência desatenta ou inexploração e inconsciência. Conseguimos cantar enquanto lavamos a loiça ou conversar enquanto conduzimos ou escrever durante um telefonema.
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Na escola, quando numa aula de disciplina importante, desenhava compulsivamente e escrevia quase tanto.
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Na escola, quando numa aula de disciplina inútil, desenhava compulsivamente e escrevia ainda mais.
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Contudo, nessas desnecessidades, ainda ia sabendo e estudava. Estudava muito, mas os resultados eram péssimos.
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Estudar não tem de ser divertido. Nunca foi o meu objectivo encontrar entretenimento nas utilidades. Contudo, advinha prazer. Mas desenhava e escrevia compulsivamente.
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Na verdade, nunca estudei além das desnecessidades. Dediquei horas às inutilidades.
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A minha média de final de curso é de doze valores. Nada mau para quem só abriu os livros raramente, das disciplinas sem interesse para mim... pré-história, arqueologia, pré-clássicas...
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Quis estudar história da música em Portugal, mas os professores eram duma mediocridade inaceitável. Sabiam muito dos temas dos seus doutoramentos... O resto era um lotaria, onde se tinha de saber datas, locais e personagens... como o responsável pela Capela Real em 1678... E eram tidos António Fernandes, Manuel Henriques, Francisco Lopes, João Esteves..
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Pois, era optativa e substitui uma coisa semestral por uma temática de ano lectivo completo, no domínio da geografia.
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No liceu aconteceu-me ainda melhor do que na história da música. Porque retrocedi dois anos, por mudança de área vocacional, cheguei ao décimo segundo ano com dezanove anos. Um professor baixinho, pessoa baixinha, quis humilhar-me na primeira aula e por isso. No final, dirigi-me a ele e confrontei-o. O cobarde tremeu e não sou nem fui ameaçador, apenas disse a razão de terminar o ensino secundário com vinte anos.
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Nas aulas seguintes, evitava falar-me. Ia humilhando pela sala e olhava-o com a cara fechada. No primeiro teste fui brindado com dois valores e meio. Percebi o recado. Fui imediatamente à secretaria para anular a matrícula e inscrever-me num exame nacional. Nove meses depois, avaliado num conjunto de milhares de alunos, consegui dezasseis. Era um homem pequenino, com síndrome de homem pequenino – não era nem sou um génio.
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O meu pai dizia admirado que eu desenhava como respirava. Valeu-me pouco na escola. Nas disciplinas artísticas, a arte garantia-me boas notas, mas os assuntos desinteressavam-me. Imagino o dilema na avaliação – por culpa minha. Em português e em história era mais centrado, insuficientemente, nunca consegui uma nota máxima.
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Talvez se não desenhasse e escrevesse em paralelo às aulas – dirão. Aí seria pior.
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A culpa é do mundo? Não! É minha. Respondo consciente, porque tenho livre-arbítrio e nunca me molestaram pelos descalabros.
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Aprendi mais na escola primária do que na preparatória ou no liceu… na universidade, não me atrevo. Lembro-me de ser miúdo, na primeira escola, e ouvir a professora comentar, com outras docentes, ou de a minha mãe me dizer, após reunião de encarregados de educação, que eu era distraído e estava noutra, que fazia os mínimos, e optava por outros destinos. Queria desenhar e escrever e o que me davam não era só isso e disso entregavam-me temas instimulantes.
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Não era nem rebelde nem insolente. Queria criar e sabia instintivamente distinguir o útil do desnecessário. Bem, rebelde não fui, mas na universidade fui, embora defensivamente, insolente.
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Repito que estudar serve para pouco e quase nada se traz da escola.
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Não, não é ilusão de óptica! A maioria das pessoas não pensa e muitas outras pensam mal. Têm pensamentos quasi automáticos.
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Sabem do que têm de saber e pensam quasi apenas nisso. Claro, foram à escola e aprenderam.
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Não, não aprenderam quasi nada.
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Antigamente, em jovem adulto, a arrogância era-me abundante e com ela vinha o desprezo. Uma vez humilhei um professor que se armou em parvo – porque me via a desenhar… Fez-me uma pergunta e respondi-lhe. Brutalmente, interveio reactivamente:
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– Onde foi buscar essa teoria abstrusa?
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– Fui busca-la ao livro XYZ, do professor cicrano, da Universidade de Viena (desta lembro-me). Faz parte da bibliografia e se não sabe onde fui buscar a teoria abstrusa é porque não o leu. Aliás, o livro está esgotado, mas tenho uma edição antiga. Quer que lho empreste para tirar fotocópias?
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Obviamente, vingou-se. Tudo bem! Acabei por fazer as suas cadeiras numa outra universidade, pública, e saquei dezasseis nas duas, se não erro – sei que foi mais do que catorze, mas menos de dezoito.
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Uma outra vez, um professor assistente quis impedir-me de fazer uma prova, argumentando que eu faltava a muitas aulas. Tarde demais, pois já tinha o enunciado. Respondi a tudo e entreguei-lhe os papéis no final. Disse-me que não me avaliaria. De facto, não lançou a nota.
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Inscrevi-me para exame de recurso e, mais uma vez, embirrou comigo. Nesse dia não apanhei o enunciado. Saí da sala e apresentei queixa na secretaria. Veio Agosto e telefonou-me o professor catedrático a pedir desculpa pelo procedimento do seu assistente. Entre outras coisas, recordo-me de me dizer.
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– Recordei ao professor fulano que não é qualquer aluno meu que consegue um catorze e que, nem que fosse por isso, poderia proceder como fez.
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Regressando: arrependo-me, constato que a minha inteligência não é muita. Sou quasi estúpido. Talvez iludido, creio que penso, que o faço bem e estou atento além do casulo.
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Mas, para que raio tive de estudar matemática, física e química? Eu ia para a Escola de Belas Artes.
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A professora de geometria descritiva, inteligente e sábia, percebeu-me e criou uma excepção:
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Eu podia desenhar como quisesse, à mão ou com instrumentos, podia rasurar, esborratar e até usar sempre as mesmas minas e as desadequadas desde que, ao lado, indicasse o que seria correcto... Traço fino, com mina 3H...
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Foi-me útil, essa matemática.
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Saber contar e umas operações básicas, ler, escrever e interpretar, e civismo – pouco mais me ocorre com interesse universal.
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Quase nada estudei. Quase nada aproveitei.
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O mundo não tem culpa pelo meu falhanço. Eu é que provavelmente não quero o mundo.

Branco-trilha


sexta-feira, fevereiro 05, 2016

Os gatos têm sete vidas

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– O vazio é inexistência ou impresência?
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 – Quando se tem fome, isso não importa.
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– Com fome ou sem fome, a questão não desexiste.
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– Por que pensas nisso?
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– Penso em mim, no que faço, no que devia fazer e até que ponto falhei o alvo ou os alvos – se existe destino, nada a fazer, está escrito. Penso: fazemos o destino ou, pelo menos, guiamo-lo, talvez parcialmente.
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– Por que dizes isso?
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– Porque sou uma dessas palavras, com outra emergente com regularidade imprecisa: desistente.
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Já abalroei. Já quase saltei muitas, muitas, muitas vezes – talvez o devesse ter feito, da janela e da beira da plataforma ferroviária. Já engoli e emendei – fi-lo, num só dia, várias vezes. Já tive lâminas cobiçando-me as veias. Já tive uma seringa com ar e agulha. Já quase consegui comprar o aroma da amêndoa.
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Esmurrei paredes. Esmurrei um prego. Esmurrei vidros. Esmurrei um espelho. Cabeceei a parede – menos dores do que a de engolir um tubo, até disse que não fazia mal, não tinha importância, que não se maçassem e dessem atenção a quem, de facto, precisava. Talvez o corpo soubesse mais do que o pensamento; depois de anestesiado várias vezes consegui tragar a cobra.
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Do tempo antes: fui menino e adolescente, meninices e adolescências. Tive amores, perdi amores, magoei, arrependo-me, envergonha-se-me a consciência, mas nem é importante – provavelmente. Perdi amores e um irmão, com quem não partilhava ácido desoxirribonucleico.
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As gatas prenderam-me. Hoje, o nome dum arcanjo aperta-me a mão. Nem mãe, nem pai, nem mulher, nem amigos me seguram nem aguentam. É triste! É assim! Triste para mim, porque inconsolável. Triste para eles, porque impotentes perante o meu sofrimento.
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Quis ser pintor, mas não fui – por cobardia e incapacidade em lidar com a obrigação dum estudo sem lógica: matemática, física e química.
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Quis ser fotógrafo, mas não fui – por alguma cobardia e por me ter tornado jornalista de escrita. Ainda ganhei uns trocos, uns prémios, uns troféus, dos quais guardo apenas três, nem sei porquê. Ninguém se lembra nem lembrará dessas glórias – das fotografias, não do seu autor.
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Quis ser jornalista, porque aconteceu estar mal de amores e a mãe ter sabido duma oportunidade, através duma pessoa que, desconhecida nessa época e por anos, hoje é muito minha amiga.
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Quis ser jornalista e consegui. Até tinha jeito, era um miúdo com arte e que aprendeu o ofício depressa.
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Era jornalista e tive azares. Azares, mas não crimes. Fui sentenciado a uma quase morte. Fecharam-se portas, porque a casa estava cheia e – mal acabara de agradecer o tempo e atenção que levaram a dizer-me que não – chegaram outros.
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Um gajo porreiro. Porém, portas que se fecharam, algumas magoaram… amigos desaconselharam-me e, contudo, amigos… não se poriam em causa, não se colocariam em situação de julgamento, não infringiram a ética nem a moral num mínimo nepotismo. Como alguém o fizera por eles, numa galáxia distante. Nem meritocracia, nem nepotismo, nem nada. O senhor Cunha ignora-me. E conheço tantos senhores Cunha.
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Após anos de padecimentos, o provável é que não seja o mundo a estar enganado. Talvez não tenha competência… bem enganei tanta gente por tão longo tempo – será então.
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Ainda assim, há quem me queira e julgue bem, em Portugal e fora dos noventa-e-dois-mil-e-não-sei-quantos-quilómetros- quadrados de terra a que chamo pátria.
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O que faço? Aos amigos, peço trabalho. Aos conhecidos, peço trabalho. Não imploro nem esfarrapo porque não resultaria e a dor que tenho é-me bastante e sobejante, dispenso ridículos desnecessários. No entanto, não duvido que há quem me veja patético, néscio, palerma, estúpido, incompetente, insuportável, inculto, arrogante, mendicante, lazarento…
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Queria ser escritor… na verdade, a vontade é de poeta. Digo prosador, escrevi um romance. Pequeno e denso, elogiado por quem se reconhece. No entanto, expulsei-o da gaveta doze anos depois de terminado. Corri com ele, porque o tempo me permitiu perceber que não o avaliava como o amor adolescente, pueril, do inaugural recém-nascido – tantos assim definem, mais palavra, menos palavra, a sua primeira obra, chegando a agradecer as recusas.
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Não! O livro é bom! Pelo menos responde ao que quis que respondesse. Está lá tudo o que era tudo quando esvaí. Se o faria igual? Faria, se regressasse a dois mil e três. Faria, não tenho outra verdade nem sobrou.
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Não foi colhido um único ramo de eucalipto para produzir folhas que conhecessem a minha tinta. Saiu em formato electrónico, numa plataforma de auto-edição, ao preço absurdo de três euros e noventa e nove cêntimos.
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Publiquei-o há pouco mais de um ano e até Setembro não vendi nada. Esforcei-me, ameacei com o Natal… em vez de o reenviar para editoras – no passado, houve uma casa que o recebeu numa terça-feira e me deu a nega na quinta-feira, agradecendo tê-lo dado a conhecer e que tinha tido a mais atenta leitura – mandei mensagens de correio electrónico.
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Tenho mil trezentos e setenta e seis endereços electrónicos, actualizados. Não mandei para todos, há gente com mais do que um… instituições, empresas… Foram quase quinhentos, quatrocentos e noventa e três – já descontando os desencontrados.
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Promovi-o no infotocopiável. Telefonei a quem não tenho o endereço de correio electrónico ou não tem página no Facebook… No Facebook? Mil oitocentos e sessenta e quatro pessoas, não contando os grupos de que faço parte. Além do Tweeter e do Linkdin.
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Hoje fui espreitar as vendas, previamente amargurado, ciente dum descalabro. Foi pior:
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Batem leve, levemente,
como quem chama por mim.
Será chuva? Será gente?
Gente não é, certamente
e a chuva não bate assim.

É talvez a ventania:
mas há pouco, há poucochinho,
nem uma agulha bulia
na quieta melancolia
dos pinheiros do caminho...

Quem bate, assim, levemente,
com tão estranha leveza,
que mal se ouve, mal se sente?
Não é chuva, nem é gente,
nem é vento com certeza.

Fui ver. A neve caía
do azul cinzento do céu,
branca e leve, branca e fria...
– Há quanto tempo a não via!
E que saudades, Deus meu!
(…)*
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Fui ver… quinze. Quinze livros vendidos.
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O «Grande Reserva», lançado em Novembro de 2011, felizmente vendeu e vai vendendo. Os ganhos somados dão quase dois ordenados medíocres.
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O infotocopiável dá-me alegrias relativas, as melhores não digo, porque não quero, mas há quem saiba. Somados os dias de existência, não descontando os períodos de suspensão e inacessibilidade, o resultado é três mil seiscentas e duas voltas da Terra em torno do seu eixo. Contadas as visitas, o blogue é lido diariamente por setenta pessoas, porque não há setenta-vírgula-trinta-e-quatro pessoas.
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Quero ser escritor agora e não dentro de uns anos ou décadas ou depois de morto. Nem sei se depois – prefiro não efabular, trincando as crostas e sorvendo-me.
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Quero ser escritor. Quero ser escritor de notícias e de poemas e de prosas poéticas – de romances, não me parece, porque não me apetece. Em tempos acreditavam que tinha queda para a coisa. Agora não tenho sítio para cair.
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Há muitos anos, numa galáxia agora distante, desesperava com a matemática, a física e a química. Estudava. Estudava-as como nunca estudei, nem antes nem depois. Fiz trabalhos de casa, tive explicadores e as notas vinham em linguagem binária: zeros e uns.
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O que fazer? Eu sabia. Estudava… na véspera dos testes, precisamente na véspera, ficava amnésico. Zeros e uns. Numa das vezes respondi como se tratasse duma prova de português. Por extenso e explicando o inexplicável, denunciando todo aquele-não-sentido.
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Se queria ir para a Escola de Belas Artes, por que tinha de saber de matemática, de física e de química?... O número de horas dessas cadeiras era até superior às da temática, das nucleares, das artísticas.
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Dois anos a patinar, a mãe aflita e o pai marimbando-se (também ele falhado) sabia bem o que era de se dizer e disse-o bem, sucintamente como tudo o que é central e importante.
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O meu pai disse-me:
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 – Se vês que não é isso que queres [área educativa e destino dos estudos], muda agora. Mais vale perder dois anos de escola do que ficar a vida toda enganado.
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Parece-me que me enganei quando desisti das artes.
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Ao contar e contemplar as quinze linhas, cada representando um livro vendido, vi toda a vida, acelerada e muito lenta, como daquela vez em que saltei para a piscina da prancha mais alta, era adolescente – instantes intensos onde cabem todos os dias, desde a primeira palmada para respirar.
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Nem me queixo do calote duma pessoa séria – a educação impede-me de confrontar e exigir o devido. Há pendências, mas felizmente trabalho apenas com gente séria nos dinheiros e com frontalidade.
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Hossanas! Hossanas!
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Olho para as tintas, fitam-me como uma puta a gozar o bêbado. Olho para as câmaras fotográficas e suspiro porque são para filme. Olho para o teclado e o espelho ri-se. Riu-me também.
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As gatas hoje não ficariam sós desdestinadas. Mas o nome do arcanjo é um seguro de vida.
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Depois há o azul – sozinho nos meus países inventados.
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– O que vais fazer?
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– Sorrir, pois está tudo bem. Apenas uma dúvida… inexistência ou impresência?
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Nota: Trecho do poema «Balada da Neve», de Augusto Gil.
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