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– O vazio é inexistência ou impresência?
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– Quando se tem fome,
isso não importa.
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– Com fome ou sem fome, a questão não desexiste.
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– Por que pensas nisso?
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– Penso em mim, no que faço, no que devia fazer e até que
ponto falhei o alvo ou os alvos – se existe destino, nada a fazer, está
escrito. Penso: fazemos o destino ou, pelo menos, guiamo-lo, talvez
parcialmente.
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– Por que dizes isso?
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– Porque sou uma dessas palavras, com outra emergente com
regularidade imprecisa: desistente.
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Já abalroei. Já quase saltei muitas, muitas, muitas vezes –
talvez o devesse ter feito, da janela e da beira da plataforma ferroviária. Já engoli
e emendei – fi-lo, num só dia, várias vezes. Já tive lâminas cobiçando-me as
veias. Já tive uma seringa com ar e agulha. Já quase consegui comprar o aroma
da amêndoa.
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Esmurrei paredes. Esmurrei um prego. Esmurrei vidros.
Esmurrei um espelho. Cabeceei a parede – menos dores do que a de engolir um
tubo, até disse que não fazia mal, não tinha importância, que não se maçassem e
dessem atenção a quem, de facto, precisava. Talvez o corpo soubesse mais do que
o pensamento; depois de anestesiado várias vezes consegui tragar a cobra.
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Do tempo antes: fui menino e adolescente, meninices e
adolescências. Tive amores, perdi amores, magoei, arrependo-me,
envergonha-se-me a consciência, mas nem é importante – provavelmente. Perdi
amores e um irmão, com quem não partilhava ácido desoxirribonucleico.
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As gatas prenderam-me. Hoje, o nome dum arcanjo aperta-me a
mão. Nem mãe, nem pai, nem mulher, nem amigos me seguram nem aguentam. É
triste! É assim! Triste para mim, porque inconsolável. Triste para eles, porque
impotentes perante o meu sofrimento.
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Quis ser pintor, mas não fui – por cobardia e incapacidade
em lidar com a obrigação dum estudo sem lógica: matemática, física e química.
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Quis ser fotógrafo, mas não fui – por alguma cobardia e por
me ter tornado jornalista de escrita. Ainda ganhei uns trocos, uns prémios, uns
troféus, dos quais guardo apenas três, nem sei porquê. Ninguém se lembra nem
lembrará dessas glórias – das fotografias, não do seu autor.
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Quis ser jornalista, porque aconteceu estar mal de amores e
a mãe ter sabido duma oportunidade, através duma pessoa que, desconhecida nessa
época e por anos, hoje é muito minha amiga.
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Quis ser jornalista e consegui. Até tinha jeito, era um
miúdo com arte e que aprendeu o ofício depressa.
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Era jornalista e tive azares. Azares, mas não crimes. Fui
sentenciado a uma quase morte. Fecharam-se portas, porque a casa estava cheia e
– mal acabara de agradecer o tempo e atenção que levaram a dizer-me que não –
chegaram outros.
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Um gajo porreiro. Porém, portas que se fecharam, algumas
magoaram… amigos desaconselharam-me e, contudo, amigos… não se poriam em causa,
não se colocariam em situação de julgamento, não infringiram a ética nem a
moral num mínimo nepotismo. Como alguém o fizera por eles, numa galáxia
distante. Nem meritocracia, nem nepotismo, nem nada. O senhor Cunha ignora-me.
E conheço tantos senhores Cunha.
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Após anos de padecimentos, o provável é que não seja o mundo
a estar enganado. Talvez não tenha competência… bem enganei tanta gente por tão
longo tempo – será então.
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Ainda assim, há quem me queira e julgue bem, em Portugal e
fora dos noventa-e-dois-mil-e-não-sei-quantos-quilómetros- quadrados de terra a
que chamo pátria.
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O que faço? Aos amigos, peço trabalho. Aos conhecidos, peço
trabalho. Não imploro nem esfarrapo porque não resultaria e a dor que tenho
é-me bastante e sobejante, dispenso ridículos desnecessários. No entanto, não
duvido que há quem me veja patético, néscio, palerma, estúpido, incompetente,
insuportável, inculto, arrogante, mendicante, lazarento…
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Queria ser escritor… na verdade, a vontade é de poeta. Digo
prosador, escrevi um romance. Pequeno e denso, elogiado por quem se reconhece.
No entanto, expulsei-o da gaveta doze anos depois de terminado. Corri com ele,
porque o tempo me permitiu perceber que não o avaliava como o amor adolescente,
pueril, do inaugural recém-nascido – tantos assim definem, mais palavra, menos
palavra, a sua primeira obra, chegando a agradecer as recusas.
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Não! O livro é bom! Pelo menos responde ao que quis que
respondesse. Está lá tudo o que era tudo quando esvaí. Se o faria igual? Faria,
se regressasse a dois mil e três. Faria, não tenho outra verdade nem sobrou.
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Não foi colhido um único ramo de eucalipto para produzir
folhas que conhecessem a minha tinta. Saiu em formato electrónico, numa
plataforma de auto-edição, ao preço absurdo de três euros e noventa e nove
cêntimos.
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Publiquei-o há pouco mais de um ano e até Setembro não vendi
nada. Esforcei-me, ameacei com o Natal… em vez de o reenviar para editoras – no
passado, houve uma casa que o recebeu numa terça-feira e me deu a nega na
quinta-feira, agradecendo tê-lo dado a conhecer e que tinha tido a mais atenta
leitura – mandei mensagens de correio electrónico.
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Tenho mil trezentos e setenta e seis endereços electrónicos,
actualizados. Não mandei para todos, há gente com mais do que um… instituições,
empresas… Foram quase quinhentos, quatrocentos e noventa e três – já
descontando os desencontrados.
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Promovi-o no infotocopiável. Telefonei a quem não tenho o
endereço de correio electrónico ou não tem página no Facebook… No Facebook? Mil
oitocentos e sessenta e quatro pessoas, não contando os grupos de que faço
parte. Além do Tweeter e do Linkdin.
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Hoje fui espreitar as vendas, previamente amargurado, ciente
dum descalabro. Foi pior:
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Batem leve, levemente,
como quem chama por mim.
Será chuva? Será gente?
Gente não é, certamente
e a chuva não bate assim.
É talvez a ventania:
mas há pouco, há poucochinho,
nem uma agulha bulia
na quieta melancolia
dos pinheiros do caminho...
Quem bate, assim, levemente,
com tão estranha leveza,
que mal se ouve, mal se sente?
Não é chuva, nem é gente,
nem é vento com certeza.
Fui ver. A neve caía
do azul cinzento do céu,
branca e leve, branca e fria...
– Há quanto tempo a não via!
E que saudades, Deus meu!
(…)*
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Fui ver… quinze.
Quinze livros vendidos.
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O «Grande Reserva»,
lançado em Novembro de 2011, felizmente vendeu e vai vendendo. Os ganhos
somados dão quase dois ordenados medíocres.
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O infotocopiável dá-me
alegrias relativas, as melhores não digo, porque não quero, mas há quem saiba.
Somados os dias de existência, não descontando os períodos de suspensão e
inacessibilidade, o resultado é três mil seiscentas e duas voltas da Terra em
torno do seu eixo. Contadas as visitas, o blogue é lido diariamente por setenta
pessoas, porque não há setenta-vírgula-trinta-e-quatro pessoas.
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Quero ser escritor
agora e não dentro de uns anos ou décadas ou depois de morto. Nem sei se depois
– prefiro não efabular, trincando as crostas e sorvendo-me.
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Quero ser escritor. Quero
ser escritor de notícias e de poemas e de prosas poéticas – de romances, não me
parece, porque não me apetece. Em tempos acreditavam que tinha queda para a
coisa. Agora não tenho sítio para cair.
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Há muitos anos, numa
galáxia agora distante, desesperava com a matemática, a física e a química.
Estudava. Estudava-as como nunca estudei, nem antes nem depois. Fiz trabalhos
de casa, tive explicadores e as notas vinham em linguagem binária: zeros e uns.
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O que fazer? Eu sabia.
Estudava… na véspera dos testes, precisamente na véspera, ficava amnésico.
Zeros e uns. Numa das vezes respondi como se tratasse duma prova de português.
Por extenso e explicando o inexplicável, denunciando todo aquele-não-sentido.
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Se queria ir para a
Escola de Belas Artes, por que tinha de saber de matemática, de física e de
química?... O número de horas dessas cadeiras era até superior às da temática,
das nucleares, das artísticas.
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Dois anos a patinar, a
mãe aflita e o pai marimbando-se (também ele falhado) sabia bem o que era de se
dizer e disse-o bem, sucintamente como tudo o que é central e importante.
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O meu pai disse-me:
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– Se vês que não é isso que queres [área
educativa e destino dos estudos], muda agora. Mais vale perder dois anos de
escola do que ficar a vida toda enganado.
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Parece-me que me
enganei quando desisti das artes.
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Ao contar e contemplar
as quinze linhas, cada representando um livro vendido, vi toda a vida,
acelerada e muito lenta, como daquela vez em que saltei para a piscina da
prancha mais alta, era adolescente – instantes intensos onde cabem todos os
dias, desde a primeira palmada para respirar.
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Nem me queixo do
calote duma pessoa séria – a educação impede-me de confrontar e exigir o
devido. Há pendências, mas felizmente trabalho apenas com gente séria nos
dinheiros e com frontalidade.
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Hossanas! Hossanas!
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Olho para as tintas,
fitam-me como uma puta a gozar o bêbado. Olho para as câmaras fotográficas e
suspiro porque são para filme. Olho para o teclado e o espelho ri-se. Riu-me
também.
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As gatas hoje não
ficariam sós desdestinadas. Mas o nome do arcanjo é um seguro de vida.
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Depois há o azul –
sozinho nos meus países inventados.
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– O que vais fazer?
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– Sorrir, pois está
tudo bem. Apenas uma dúvida… inexistência ou impresência?
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*
Nota: Trecho do poema «Balada da Neve», de Augusto
Gil.
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