PREÂMBULO
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Entre saber e não saber, a dúvida de que se contarei tudo num longo binómio ou se cansarei em número de postas no blogue. Opto pelo lençol de músicas, conversas verdadeiras, sentimentos sérios. São quarenta e quatro anos de muitos enganos e crimes, em que fui quase sempre o ladrão. Mas sofri também. Não julguem, pensem apenas no começo, da primeira borbulha, até aos cabelos brancos na barba. Quase tudo em português, porque só sei amar em português e percebo mal o que dizem as bocas doutros corações.
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Porque hoje São Valentim estuda a complexidade do amor e Santo António pondera na virtude do casamento.
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Porque hoje começa a Primavera, que é a estação mais estúpida do ano.
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A Primavera é a adolescência. Já se sabia, já tinham dito. E é horrível.
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É da Primavera que me lembro e lembro que era feliz. Afinal a doença já cá estava e ainda assim a sinto feliz, a estúpida da Primavera.
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Engravidar nunca me assustou, pois sabia que nunca seria pai.
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A sida tremia-me. Não parava, mas as adolescentes tinham centímetros de amor dentro delas. Bastaria, pensava eu. Bastaria, pensava certo. Bastaria e continuava.
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Primeiro era tímido. Ela, depois de óbvia, colocou os lábios, encostados aos meus.
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Estúpido, não a beijei. Os miúdos fascinavam-se com os gays e elas perguntou se eu era. Não a mim. Era apenas estúpido.
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Wild one involuntário, digo hoje com ternura. Digo Ocarina. Digo Mila. Digo Iggy Pop – Real wild child.
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Era tímido. Invejava e tinha erecções. Via, via que me viam e nada fazia. Uma dia, num autocarro descapotável, perguntei à miúda se queria namorar comigo.
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Ela quis e demos uns beijinhos. Acho que houve uns dias que desaparecia e sem telemóvel ter sido inventado, nem jeito para lhe fixar o nome.
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Depois, atrás do nada duma surpresa, Tavira, branca e quente, com o Gilão e a esplanada que era a única coisa para fazer.
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Fazia-se mais, mas era conversa. A discoteca não interessava e os bares eram para as pipocas.
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Frente nos olhos convidei-a para sair. Tímido e estúpido, convidei a amiga. Depois foram os outros amigos.
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Num relance de galã, cantei-lhe Elvis, o meu herói... na sua versão cafona do «Oh sole mio» («It's now or never»).
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Beijámo-nos e foram dias a entrar pela janela e sair pela porta.
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Sim, era tudo especial. Para os dois. Demasiado novos para ter filhos e felizes como na ingenuidade dos romances para costureirinhas. The Speacials - «Too much too young».
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Ainda que Tavira continue, os Verões também acabam. Regressei, tímido e mentiroso. Nada se passara comigo. Beijinhos sem canção.
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E foi-se. Aí doeu e quando dói sente-se nascer no peito uns chifres.
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Tanto faz! Saía à noite e dançava. Éramos poucos. Quase todos os rapazes beijaram quase todas as raparigas. Quase todos os rapazes gay beijaram quase todos os rapazes gay. Quase todas as raparigas lésbicas beijaram raparigas lésbicas. Quase todos os rapazes gay beijaram raparigas lésbicas.
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Entre absinto, nem sei quem beijei. Se beijei, esqueci. Nunca beijei um rapaz nem um homem. Mas se o fiz, espero que o beijo tenha sido bom.
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Havia tribos e os que se drogavam. Valia muita coisa e o mundo era tranquilo e feliz. Como na animação para miúdos: dávamo-nos todos bem.
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Era tímido, mas uma coisa líquida, pouca porque era pouco o dinheiro... pouca porque não aguentava... pouca, que nem agonizava ter de andar quarenta minutos até casa.
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Um grupo alemão, da primeira geração que se fartou de arcar com o peso dos erros dos avós, cantava o que ninguém entendia. O ritmo não perdoava e os skinheads, que ouviam Mussolini e Hitler, e numa canção em alemão, festejavam o hino.
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Não percebiam nada. Nem eu. Quase ninguém fala alemão. Mas dançava, toda a gente dançava os DAF – «Tanz den Mussolini».
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Num Verão fui com passear com uns amigos. Não havia adolescente que não se identificasse, ainda que o que houvesse para identificar não lhes fosse permitido perceber. Da barragem ao litoral, horas para ir dum lado ao outro das férias.
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Sim, «Dunas», dos GNR - eram quase tudo e as dunas escondiam os desejos que satisfazíamos onde os adultos não nos descobriam.
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Às vezes a nostalgia e a melancolia visitavam-me. Não tinha lembrança, nem crime, nem alibi, nem nada. Cantava como sentisse que tudo aquilo fosse uma verdade minha. Era só música, mas o coração sentiu.
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No íntimo sabia que em algum dia haveria de ter aquela mágoa. Tive-a, mas quando me chegou já a validade estava cem quilómetros para trás.
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Ná! Sempre tive premonições. Sabia, de facto, que a pessoa que tinha, que iria tendo, que perderia... ou outra qualquer me haveria de deixar a fritar na melancolia.
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Os Sétima Legião eram quase alternativos... quando começaram a surgir os alternativos da roupa... que saíam de milénio em milénio e que hoje dizem ter sido noctívagos e vividos. Raispartam a memória e a adolescência...
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«Por quem não esqueci»... hoje são muitas.
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As borbulhas, que nunca tive muitas nem muito chatas, acabam por nos deixar para que possamos ser homens.
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Trabalhava, era importante. E melhor: ainda estava no liceu, num atrasado difícil de explicar mas que em resumo:
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A justiça adolescente nunca permitiu que a criatividade sofresse com a matemática, a física e a química... principalmente a primeira.
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Mudou-se a vida. Não foram dois anos perdidos e o meu pai disse-me: antes perder dois anos da vida do que perder a vida inteira.
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Certíssimo, o meu pai, que sempre foi mais amigo do que pai.
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Errado momento em que mudei. Perdi dois anos, ganhei umas letras e sei que perdi a vida. Hoje escreveria a tinta e certamente já não me lembrava da assassina da matemática.
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Adolescentes e seus caprichos. Justos. Era homem e queria mostrá-lo. Era um homem pequenino e comecei a fumar, na idade em que se merece uma tareia por pôr um cigarro na boca.
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A noite era minha e dançava. Tinha dinheiro e já podia aguentar mais. Ainda assim fiz muitas vezes quarenta minutos a pé até casa. No dia seguinte estava às nove horas no sítio combinado. Almoçava à mesa, bebia um copo de vinho, fumava um cigarro e, às vezes, pouquinhas, deixava entrar um líquido tingido de castanho a que chamava uísqui.
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Era eu e mais outros... restam alguns nas cartas que tenho para jogar. Felizes, superiormente intelectuais, até porque bebíamos uísqui, tínhamos o mundo na mão. As canções deprimentes, os males do amor...
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As borbulhas não tinham saído há tanto tempo. Podíamos ser felizes com ares tristes. Mas éramos importantes. Esta, dos Diva, nunca se me soltou da cabeça. «Amor errante», talvez por isso... e eu que me tornei tão quieto mais tarde.
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Um dia acordei num casal. Borboletas, passarinhos, calmaria num prado, tranquilidade de amor. Tempo, o mais raro componente do amor. Tantas coisas, do bom ao excelente, do mau ao desespero. Um casal.
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Deve ter sido bom, foram quase oito anos. Asneiras, pois. Provavelmente mais minhas. Não me lembro e tenho tudo guardado em gavetas e armários do sótão das emoções. Tantas canções.
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Não sei porquê esta... podia ser Marisa Monte, mas esta é um beijo tão raro que penso que a memória, que tenho algures, merece um abraço especial. Sim, porque foi um grande amor...
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Quase oito anos, uma vida de fumo, numa Smoke City... um amor verdadeiro, que vivia submerso... «Underwater love». Um dia afogou-se em lágrimas. O resto já disse.
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Eu que já me habituara a viver sozinho, sempre desde que saí do ninho, tinha recordações a saltar, como bonecos de mola, de todo o lado. Não tinham rosto, tinham arrepios. Não eram sustos, eram tristezas, lembranças de muitos beijos dados numa cama partilhada.
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Depois veio a dor de corno e a dor de corno só quer ouvir dor de corno. Músicas bonitas, que poliam as hastes córneas da cabeça. Esqueçam, que já me esqueci... não das músicas, mas donde deixei os chifres.
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Ah! As borbulhas! Subcutâneas. Noites de loucura e dias de encher de tempo com qualquer coisa, do trabalho à esplanada, do livro ao sossego das horas. Do jantar à festa.
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Tantas e tão pouco medo. Onde ficou a timidez? Pudor? Talvez... Para quê? Respondem os GNR, ilustradores de vida duma geração, que aqui cantam um brasileiro... «Quero que tudo vá pró Inferno».
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Na verdade, os trinta são ridículos. São uma espécie de adolescência sem borbulhas.
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Ah! Já não tenho vinte anos... já posso fumar cachimbo.
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Janta-se fora e fazem-se jantares em casa. A música é mais séria. Inventam-se situações infantis para criar casais, juntar pessoas solitárias que vivem tristes ou que aparentemente vivem tristes, ou que fingem viver tristes ou que se estão apenas...
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Leva-se um vinho que se julga bom e é-se simpático. Sorrisse-se e às vezes trocam-se números de telemóvel. Na maior parte das vezes não se vai ligar. Nas outras... combinam-se idas ao cinema.
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Finge-se ser uma pessoa adulta e madura, quando na verdade, os solteiros, têm as hormonas aos saltos e não têm paciência para perder tempo, coisa que os adolescentes, curiosamente, têm para estas coisa. Se é prá cueca, é prá cueca...
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Sai-se à noite. É só um cineminha. Podíamos jantar ou comer qualquer coisa. Tomamos um copo? Vamos dançar – e eu que adoro dançar sozinho e para seduzir – dizia que sim. Não queria nada.
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Ou queria largá-la ou queria cueca e se ela não se quisesse largar depressa, depressa saltava da cueca a minha vontade. Dançar? Sim, no Lux, no meu clube para todos os sentimentos.
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A conversa dava ou desandava em minuetos... muita conversa pressupõe horas perdidas em que se podia estar a dar uso aos corpos.
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Olha, vou só ali. Vou ali ao bar buscar uma vodca... três horas depois, uns minutos, ou conversava com o barista ou com a miúda do lado ou com a miúda do lado que infelizmente tinha namorado e resolvera aportar ou encontrava alguém conhecido ou fazia por...
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Canalha alimentado a vinho e vodca regressava, minutos perdidos, depois a conversar sem sentido, a inventar programas recusáveis numa discoteca...
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Crida, perdeste o autocarro para as cuecas e eu perdi a tesão por ti.
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Sim... tudo começara com um jantar de Cupidos, bem intencionado. Mesa e Rui Reininho... talvez a música não tenha nada a ver com isto, mas a referência ao nono andar lembra-me esses quase blaindedeites... «Luz vaga»... podia ser, mas nem sempre aconteceu.
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Claro que as luzes, a música e a bebida criaram paixões. Marés pequeninas para molhar os pés.
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Ah! Os trinta e as tais borbulhas. Muitas negas, na guerra dá-se e leva-se, e muitas miúdas que já nem apresentavam os novos namorados aos pais... aos irmãos... aos amigos.
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Sem espírito de vingança nem mimetismo... acho que é natural na espécie humana... Eu fazia o mesmo.
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Tudo tão intenso! Como um cigarro. Como o beijo adolescente. Tão consumível e mortal. As borboletas vivem poucas e algumas esfumam-se no calor da luz.
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Como os adolescentes... «Agora e para sempre». O agora dura uns três minutos e o sempre é demasiado sério e doloroso para quem aos trintas começou a aprender a fazer patinagem artística no estilo Bamby...
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Em vez de fofinho, é ridículo. Os «Da Weasel» disseram tanta coisa acertada, tantas vezes de modo tortuoso, mas disseram tão bem, que com os GNR são quem mais sabe da vida duma pessoa. Os cotas sabem-na toda, os chavalos estavam a aprender...
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Não fiquei cínico aos quarenta. Nem fui totalmente imbecil nos trinta. Conheci gente bonita, que por alguma estrela em retrógrado, nos fez encontrar fora do momento.
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Uma noite sem data numa rua que desce, só sobe quando vamos no sentido contrário. Ela e ela e ele e ele. Eles nos olhos nela e a ousadia dos trinta. Risos e mentiras, genuínas como os poemas desastrados dos analfabetos honestos.
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Acho que acreditei na mais que provável mentira. Passei dias a ver passar os dias. Na praia, contra-conselho, mandei-lhe uma mensagem para o telemóvel.
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O resto não sei. Sei que fui feliz, entre tempestades estúpidas. Nos despojos dos acidentes trágicos de comboio surgia sempre vida.
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Corpo que pedia corpo. Um mesmo corpo garantia a química e a física. Nitroglicerina faz bem aos corações doentes.
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A nitroglicerina explode e mata. E numa noite de explosão deu vida. Num dia de implosão enterrou-se a vida.
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Alquimia e magia, a força das bombas dos discursos trocados. O amor morreu com palavras e sem ver, esquecido que nascera na sinceridade das expressões.
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Flor dum cacto? A amarela, com espinhos. Não era rosa, que detesto nessa cor. Nem tulipas que também não gramo. A botânica deve ter alguma na colecção.
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O coração é coisa comum, vale pouco. Todos os animais têm um coração. E a alma? Quanto vale uma alma e quanto lhe pesa o coração?
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Não respondem, mas dizem. Não foi essa a minha vida, mas é este o seu sabor, palavra donde dizem sai sal e sabedoria. «Expensive soul», como se não bastasse... «O amor é mágico» e nem só os aprendizes se queimam.
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Hoje, pela primeira vez, não tenho uma música para cantar ao amor. Posso dizer, com alguma segurança – talvez um dia que os quarenta são ridículos – que me estou nas tintas.
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Nas tintas para quase tudo menos para o amor. Paixão? Isso é doença!
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Como é feliz a paixão! A paixão é uma merda!
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Ainda que neste amor, neste abraço tão grande, viva uma paixão sossegada, que se respeita e sabe respeitar.
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A paixão não está velha nem cansada. A paixão foi à escola e não se deixa esgotar na correria das borbulhas.
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Não sou cínico, estou apenas surpreso. Há tanto mundo e o vento que faz abraçar como dantes fazia a paixão.
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Saudades? Muitas. Vergonhas, apaguei a maioria. Repetia as asneiras? Não mas fazia-as, se soubesse tanto como sabia na altura.
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Quero e o meu quero é grande. Somos sete cá em casa.
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Ao contrário dos egoísmos antigos – repito que um dia talvez pense que os quarenta são inocentes – quero por tudo.
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Se a vida começa, de facto aos quarenta, venho ao mundo com as alegrias das dores.
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Convencido que nesta coisa do amor perdi o egoísmo... reconheço toda a saudade e ternuras.
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É bom ter quarenta. Sei que tudo o que de melhor me aconteceu foi provavelmente aos quarenta, mas uma borbulha insistente canta-me novamente os GNR... «Mais vale nunca».
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Como as lágrimas, o tempo não volta. Choro por todas as dores e pela alegria deste ter.
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Nota: Do pouco que sei, da vida e da escrita, embora o diga mais por soberba... dois poetas escreveram o que eu queria ter escrito. Deixaria tudo para os outros, queria que estes fossem meus.
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Stéphane Mallarmé: «Hoje descobri como é bonito o teu nome. Pronunciei-o baixinho muitas vezes e senti que na minha boca crescia um delicioso sabor a ti».
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João Ruiz de Castel-Branco – Cantiga partindo-se:
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Senhora, partem tão tristes
meus
olhos por vós, meu bem,
que
nunca tão tristes vistes
outros
nenhuns por ninguém.
Tão tristes, tão saudosos,
tão
doentes da partida,
tão
cansados, tão chorosos,
da
morte mais desejosos
cem
mil vezes que da vida.
Partem
tão tristes os tristes,
tão
fora d' esperar bem,
que
nunca tão tristes vistes
outros
nenhuns por ninguém.