digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

segunda-feira, fevereiro 05, 2024

Também não me cansei


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Se vivendo numa esfera, ou somente num círculo, a cabeça não rodaria mais.

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Não sendo um rio, as lágrimas desceram e hoje não se diluíram na água dos vinte e cinco metros.

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Braçada e pernada pedem demais para se poder pensar. Num tempo infinito não há outra coisa senão ir e voltar. Hoje, não.

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O infinito quando acaba é como o momento de acordar da sesta. Ainda os problemas, mas as ideias, como fruta madura que tomba da árvore para saciar com açúcar e vitaminas, ficam espertas.

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Hoje braços e pernas não foram fortes e a tristeza nem se cansou.

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Um corpo boiando é melancólico e a melancolia é um corpo boiando na piscina.

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Não deixo. Também não me cansei.

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Soluço cloro.

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Soluço cloro, mas não deixo.


Dançar slows

 

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Bola-de-espelhos no final da noite. Quadradinhos luminosos incansáveis.

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Os sapatos apegados aos despojos da cerveja dizem ressaca e bebedeira em partes iguais.

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Vago olhar, triste e confuso, fixando os olhos imparáveis. Perdi a miúda por causa daquele copo mais. Não sei se por ter ido ao balcão ou.

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Tenho a boca pastosa e não gosto da música que toca aqui.

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Onde está a miúda? Não bebi esse copo, não foi por isso.

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Ainda há pouco a sala estava cheia, agora só os sempre-em-pé, os dos gargalos de cerveja e dos copos com mais gelo derretido do que uísque.

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Estou ao pé, sou um deles, assim perdi a miúda que nunca ganhei, certamente nem me viu.

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Esta música já era velha quando, há muito tempo, eu era novo. Esta música já era feia quando, há muito tempo, eu tinha borbulhas.

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Quando eu era novo havia sítios onde se dançava agarrado.

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Hoje ninguém dança slows, ainda bem.

quarta-feira, janeiro 03, 2024

Pergunta


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– O que fui fazer?

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Questão salva-vidas, faço-a antes de mergulhar e oiço-a antes de partir como se tivesse chegado.

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Fico pairando vendo-me indeciso e, às vezes, choro e, às vezes, apático-me.

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Não importa, porque o que a cabeça sente já a boca disse.

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Ainda assim, ninguém me vê despido na rua. Sinto vergonha como se reparassem.

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Porque a boca já disse, recair é mais triste.

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Saberem-me é um corte da desgraça. O infortúnio é uma humilhação.

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Perguntei, esperando uma resposta de bom conselho:

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– E agora, o que fazer?

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Ter-me-ão respondido ou alguma centelha minha recitou?

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Andarei pardo, mais do que andei. Serei uma janela fingindo uma luz. Calar-me-ei como não é devido.

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Que ninguém saiba.

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– O que fui fazer?

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Questão salva-vidas, aproximada dos 400 miligramas azuis, mas sem o sorriso da ilusão.

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O bicho vive e morde e nem sempre as azuis, balas-de-prata ou a estaca, o acalmam e lhe dão sono.

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Abri as janelas antes das paredes me fecharem sem elas nem portas nem lâmpada. Faço a pergunta.

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Fui para a chuva – agora chove – levando nos olhos todas as maldições e promessas que carrego.

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Sob a água caminho rezando a salvação, crendo diluir os feitiços e desdizer os juramentos.

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Quando morde, mordo-o com azul, brado-lhe a devolução dos enguiços e o desatar dos votos.

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Hoje, não. Estou cinzento entalado entre as lágrimas e a letargia.

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Faço a questão e desminto, o mais teimosamente destemido, toda a ditadura que me deseja.

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Hoje é difícil e amanhã não precisarei de perguntar.

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Não vou passar essa vergonha!

quinta-feira, dezembro 28, 2023

Bomba de muitos caninos


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Sem raiva, sou mais de lágrimas do que de dentadura de muitos caninos.

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Tenho uma infantil esperança, que é longa. Não vejo a escuridão na luz e da cegueira no breu só ouvi.

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A minha dieta é ácida e como de olhos fechados. Se não vejo o azedo é por crer não engolir iguaria estragada. E se é requintadamente avariada.

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Não vejo as travessuras malévolas das traições nem oiço silêncios podres. A mentira é irmã da intriga, não escuto nem enxergo. Desconheço.

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Gostava de ter uma bomba, saber manusear a bomba, querer accionar a bomba, usar a bomba e ouver a bomba rebentar com tudo que me rebenta. E que me vejam vê-los vendo-me mandar a imundice para a indiferença e desremelando-me para jamais.

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O coração-menino não tem ira na zanga, por ingénua fé sente apenas mansidão. Fico frágil e finjo estar bem. Contemplo o sangramento e digo, por coração-menino, não ser nada.

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Menino teimoso, surdo e tolo, continuo a acreditar, porque a esperança é longa, mesmo morrendo vagarosamente todos os dias. Creio por só saber crer.

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Choro, faço-o competentemente e sem mentir. Alguma coisa haveria de saber fabricar.

segunda-feira, dezembro 25, 2023

Desabafo acerca do (meu) Natal

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Gosto muito do Natal porque amo quem amo e fico-me nesse sentimento que roubo emprestado. É só isso, nem mais uma bola na árvore-de-natal ou ovelha presepiana. Os sonhos enjoam-me só de pensar, as rabanadas agonio-as antes das ver, aceito os coscorões secos de óleo, ou até azeite, mas o Bolo-Rei é quando-sempre quiser.

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Explico seguidamente, de frente para trás ou inversamente, porque o destino da viagem é o mesmo e a paisagem não muda. Como maré, ora preia ora baixa. A alta não é maré-viva e a outra está um pouco mais ou menos no mesmo tamanho.

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Apesar de tudo sou teimoso, se me dizem uma coisa ou não a falam. Penso que não é indecisão nem incerteza, possivelmente é incapacidade para perceber. Quererei saber? Nesse pensamento procrastino, não preguiço. Desimporto-me, mas vendo tantos interessados aprecio sem paladar. A vontade é feliz e minha.

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Sou feliz por ver gente feliz, as pessoas que amo. Não minto nem me confundo, já sabendo que baralho a quem digo, abraço e beijo.

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Um dia obrigaram-me a não gostar do Natal. Insisti que não, expliquei por que não. É muito difícil de encontrar uma palavra que signifique não, tão perfeita na sua função. Por mais que contasse do desapego, fui incompreendido e forçado a aceitar sem ver. Há gente burra! Asna teimosa impondo a sua luz de escuridão. Lá publicaram uma estória em que eu era uma pessoa inexistente ou escrita erradamente.

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Indo antes dessa conversa com o tolo, houve um curto tempo em que o Natal se ligou ao coração-pulmão e viveu feliz ou assim-mais-ou-menos-mal-iludido. Por causa duma miúda, gastei uma coluna de opinião declarando-lhe amor naífe e glosando fofuras.

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Antes dela, o vazio indiferente, o mesmo de sempre. O Natal é quando um homem quiser, sendo que ou não sou homem ou não quero.

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Caminhando com os calcanhares para a frente, durante uns anos celebrei o Natal igualmente porque fazia feliz alguém. Sempre a mesma verdade, mas sem fingimento. Não minto, ainda menos a quem amo, interesso-me, partilho, beijo e vou deitar-me feliz.

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Chego ao tempo presente – voltarei ao antigo – que começou há onze anos. Quando se tem uma criança, o Natal é diferente, tudo é bonito no sorriso e no abraço. O menino cresceu e a festa não se foi embora. Anualmente alegro-me com a alegria de quem gosto e junto, com árvore-de-natal, minúsculo presépio e presentes.

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Por muitos anos houve a tradição do jantar de vinte-e-seis em casa dum amigo dos maiores e pessoas acarinhadamente importantes. Uma generosidade quente, com grandes conversas e brindes. Hoje não há, mas a memória é sóbria, encantada e feliz. Como não sou nostálgico, não os suspiro, mas todos os dias desse dia são esse dia, que foram muitos, e não há vinte-e-seis que não seja esse dia, hoje e certo de todos os anos de amanhã.

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Em casa dos meus pais deixou de haver Natal. Cresci e por razões doutros não conto nem é importante. Digo dalguns dias muito felizes: num, não me lembro, contava-me a mãe, soltei uma expressão de surpresa e satisfação vendo tantos presentes; outro foi quando ganhei um batiscafo com dois mergulhadores e fui enfiar-me na cama da minha avó; mais tarde eram as colectâneas dos sucessos musicais, desde os pirosos abomináveis aos fabulosos.

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Infelizmente, o abrir das prendas tinha sempre alguns ácidos. Quando a expectativa, iluminada e elevada pelo papel de embrulho, era espatifada por serem cuecas ou meias. Nunca percebi por que algumas pessoas oferecem roupa às crianças, isso é para os seus pais. Guardo rancores contra incertos.

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Em casa dos meus pais deixou de haver Natal e passou a só haver rabanadas, porque era o que o meu pai gostava e, por isso, a minha mãe fazia. Em dado ano, por insistência minha, surgiram os coscorões, que agradavam a todos. O bolo-rei não faltava, mas não se fazia em casa e não conta nestas emoções.

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O dia de escrever a carta ao Pai-Natal era sempre importante e eu era contente, pela esperança de muitos brinquedos e pela tradição. Mesmo depois de terem assassinado o bonacheirão, escrevi-lhe durante anos, sabendo que a missiva não chegaria ao Ártico e que era a minha mãe quem a lia.

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Há quem pergunte: o que pediste ao Menino Jesus? Era claro que Menino estava deitado nas palhas do presépio e que, mais tarde, foi pregado numa cruz. Não entendia e não entendo por que se lhe pedem presentes. Contrariamente, o Pai-Natal tem como profissão entregar prendas – clarinho como a neve da Lapónia.

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Na primeira classe fui vítima de violência por colegas – hoje diz-se bullying. Primeiro foram as nódoas negras – as agressões nunca pararam até ao final do ano lectivo – e depois o homicídio.

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Fiquei muito triste quando mataram o Pai-Natal. Foi na escola e aconteceu nas vésperas ou dias seguintes à festa. Eu disse qualquer coisa acerca do senhor e outros miúdos disseram que não existia.

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A grande maioria dos pais dos meus colegas era de esquerda, sobretudo do Partido Comunista. Portanto, a morte do Pai Natal foi um atentado e todos os natais foram uma revolução bolchevique.

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Além das cuecas e das meias, houve um presente que me desgostou bastante. Foi oferecido com amor e carinho, por bem de mim, mas que me chateou. Um disco que nunca gostei e ouvi-o muitas vezes, tentando apreciá-lo:

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«Os operários do Natal», um álbum em que Carlos Mendes, Fernando Tordo e Paulo de Carvalho, cantavam versos de Ary dos Santos e Joaquim Pessoa, enaltecendo os trabalhos árduos daqueles que construíam a festa. Qual é a magia do lenhador, da costureira ou do pasteleiro?

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Os amigos são o nosso bolo de Natal /cada amigo nosso vale mais do que um Pai Natal / é um irmão nosso que trabalha no Natal / e com suas mãos faz a diferença do Natal.

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Eu gostava do Pai-Natal e, nesses tempos, não tinha nascido o Bob, o construtor. Os amigos são os amigos e a família é a família. O Pai-Natal, mesmo depois de assassinado, tinha magia e encanto, com gargalhada rompendo as barbas. Não o via melhor do que os amigos e família, era doutra dimensão. Eu era inocente, mas percebia as diferenças.

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Possivelmente foi quando comecei a detestar o neorrealismo.

quarta-feira, outubro 18, 2023

Um não-sei-quê, uma cárie perdida no caminho

 

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Tenho um orifício entre o coração e a alma, por onde entra ártico ou sulfúrico. Bicho bichano, dissimulado e ágil.

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Tão temido, por razão ou sofrimento antecipado.

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Se bate, espera-se a tão esperada valentia, recitada nos dias fáceis, e desejando uma cárie picando enganada no caminho.

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Um não-sei-quê que pode ser o amor ou o bicho da morte-vida ou a lembrança descabida ou uma burla de víscera.

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Valha-me o azul, certeiro atirador, implacável com premonições das bruxas que vassouram apascentando o fígado-estômago-pulmões-coração-cérebro-alma.

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Se o azul não matar, é uma cárie que se enganou no caminho.

segunda-feira, fevereiro 06, 2023

Necrologia


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Tantas vezes escrevi sobre a morte que um dia. Tantos que se formaram quotidianos. Sem o querer, comecei a ter defuntos – não eu. Sobrevivo e este caderno tornou-se em necrologia frequente.

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De pessoas e animais, agora é doutra coisa. Quando se olha de longe, com horas de ver, fenecer é fenecer, tal como saudade é de vivos e de inanimados.

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Por vários assuntos – afinal só o mesmo – ganhei desvontade de escrever para as páginas doutros. Teimar no destino que se deseja tornou-se num capricho. Obstinação inútil, porque a multidão, muita quanto ínfima, não pede que lhe crie textos.

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Mais do que muitos, rebuçadam-me:

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– Escreves muito bem.

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Como se os adjectivos fossem substantivos, ou os substantivos fossem adjectivos, como se uns e outros fossem alguma coisa prestimosa.

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Assim iludido, por verdadeiros e mentirosos, acreditei ter tantas palavras para vender. Porém sem papel para as drenar nem linhas para as ordenar.

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Quando dos momentos de densidade mais negra, no precipício da campa, tive no jornalismo uma centelha. Irreal, sei hoje, mas esperançosa. Todos os dias disse que haveria de trabalhar notícias, só ou numa redacção. Sinceramente, acreditei que tinha competência e daí reconhecimento.

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Alguma coisa iria acontecer, num prazo de dia, semana, mês ou ano. Induvidoso do sucesso, com a crença optimista do cão. Como não?

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A saúde aligeirou-se e o desejo-merecimento de trabalho permaneceu em fé. Na minha cabeça havia um livro sagrado e o altar estava no coração.

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Por tanto orar e a qualquer hora, vi a luz: a cintilância da crença era falsa. Depois de iluminado pela verdade, caí finalmente no ateísmo. Onde foi alegria ficou um triste-enfado, como parque de diversão à chuva.

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Agora a índole é desistida e sem remorsos. Nem enjoo e muito menos cólica. Quem não quis que fique com as encomendas, não cobro nem entrego inexistências. Estou mudo de súplicas, mendiguei demasiado.

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As minhas (outras) palavras não se me morrem. Ainda que se escondam, estão onde e para quando assim aqui.

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Se diz para não regressar onde houve felicidade. Será o caminho indicado para qualquer sismo? Se nem um nem outro – como o velho, a criança e o burro – só poderá ser em novidade.

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O que fazer se não apetecer uma nova primeira vez e a vontade não aceitar os determinados recentes avistando-se? É de ir até ao lado qualquer que Deus decida?

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O que fazer com a vida é ir e esperar, apressar e permanecer. Que o tempo tenha, a sorte imponha e, se ainda couber, o Criador determine.

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Hoje com riscos começo a tingir papel doutra substância. Avanço para o passado, para quando a idade sabia certezas, e escolhi mal.

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Quem sabe se novo equívoco... Talvez o meu papel seja ainda outro: azul e de vinte e cinco linhas, que mancharei com o carimbo da desimaginação. Viver numa repartição em vez de numa redacção ou ateliê.

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Bem sei que o caminho-tempo não leva tudo. Ficam a memória e o que se quer esquecer, a teimosia e a desistência e a quimera e o sabor do seu engano.

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Hoje rescindi a parte faltante do escrito: palavras de dias que não me lembro mas ciente de sua existência. Rasguei muitos papéis, sendo tantos couberam num saco de tamanho irrelevante.

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Se são passado sem presente nem futuro, não valem nada. Não prestando, arrumem-se onde cabem e fiquem onde merecem.

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Homenageando lonjuras, escrevo a necrologia. Como se fosse o sepultamento dum primo em quinto grau de quem se desconhece o nome próprio – cabendo-me o elogio, por ser o seu único parente, não pesando lágrimas – há pouquíssimo de contar.

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Foram quatro anos de Diário Económico e dois de A Capital: manchetes, primeiras-páginas, chamadas, aberturas, últimas, cachas, legendas, curiosidades, crónicas, ansiedade e dois esgotamentos.

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Tal habitualmente, tingiram-se os dedos nos últimos recortes datados. Sujou-se a mão, não o ânimo, pois o que tinha de ácido já pesara onde era de ferir. Agora o declamo: Não é alívio nem dor.

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Ainda assim, registo em acta, não negarei um chamamento de quem precise de palavras. Provavelmente-precisamente as algumas poucas vozes, de quase silêncio, pedirão o escasso que ainda agora me.

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Vão sobrar as vozes caladas e que há anos são vento sem ruído. Tanto agora, como antes e daqui, são inúteis. Dirão, sinceras ou falsas, que têm pena:

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– Escreves tão bem.

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Farto dessa afirmação garantir uma injustiça. Não peço mais, porque não mereço pedir mais.

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Se fui continental, sou península: terra cercada, ligada por um pedúnculo ao chão antigo.

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Tantos anos enganado e enganando, assim.

sexta-feira, novembro 25, 2022

Tributo a José Ruy – 1930-2022

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A verdade, não o conheci. Soube como alguém que vê os reflexos deixados por quem o viveu e saboreou a amizade. Se boca genuína e desobrigada mo disse foi por sinceridade.

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A verdade, só me lembro de estar por três vezes –  foram mais – e em todas elas percebi a exactidão do diagnóstico do meu pai e seu grande amigo. Dito cristalino e puro:

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– O José Ruy é muito bom rapazinho.

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A diferença de seis anos permitia, ao meu pai, chamar-lhe rapazinho. Ou talvez fosse também pelo olhar e o sorriso. «O meu melhor amigo», afirmava sempre antes da sentença acerca da bondade.

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A primeira vez que vi o José Ruy foi numa gráfica – penso que em Alcântara – em 1982. Ofereceu-me o seu livro mais recente, «Fernão Mendes Pinto e a sua peregrinação». Por acrescento de felicidade, calhou-me um horário escolar, para o ano lectivo de 1983/84, evocativo das façanhas desse explorador português, desenhado por ele e editado pela Câmara Municipal de Almada – o aventureiro morreu no Pragal, em 1583.

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Volta e meia, nas conversas familiares, vinha a propósito o José Ruy e as virtudes que o abraçavam ao meu pai. Invariavelmente vinha o mesmo acórdão:

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– O José Ruy é muito bom rapazinho.

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Quando o meu pai morreu, em Fevereiro de 2015, liguei-lhe a informar. Nas poucas palavras, por nós faladas, senti-lhe a natural tristeza. No dia da despedida do corpo, o José Ruy foi ter comigo à capela mortuária.

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Não esperava. Num momento levei os olhos a um lugar na sala, onde floria o olhar doce de José Ruy e o seu sorriso de quem está triste e com vontade de confortar.

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Depois desse nosso segundo momento, fui-lhe ligando de meses a meses e conversando por email. A propósito de amizade e arte fomos – eu, a minha mulher e o miúdo – visitá-lo e à Fernanda, sua mulher. O meu filho recebeu, como não podia deixar de ser, livros autografados.

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Acho muito bonita a celebração, em vida, que a Câmara Municipal da Amadora lhe fez. Enterneci-me por José Ruy ter amigos que lhe copiaram a caligrafia e criaram a sua fonte pessoal para computador. Muito mais do que facilitação do trabalho e dum elogio, é expressão de amizade e gratidão.

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A banda-desenhada esteve sempre nas nossas conversas. Enviei-lhe – precisamente há um ano – uma imagem que atribui a Enki Bilal, uma homenagem a Hergé. Nestes últimos dias andava para lhe telefonar para conversar, além de saber da saúde e da vida, sobre essa vinheta que ele desconhecia e que afinal não era de quem eu julgara e o induzira em erro, pois é obra de Pascal Somon.

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Ontem recebi a notícia que José Ruy partiu para a Pátria Espiritual. Em mim fica a memória dum homem bom, doce, delicado e amigo. Agora, por ele, tenho-me lembrado muito do meu pai e sinto-me, como num dever da memória, no múnus do citar:

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– O José Ruy é muito bom rapazinho.

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Certeza, assim o sinto. Perdi o conto às vezes que, ontem e hoje, tenho pronunciado o dito.

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Saber mais:

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https://www.infopedia.pt/apoio/artigos/$jose-ruy

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https://www.cm-amadora.pt/6736-jose-ruy-1930-2022.html

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https://www.dn.pt/cultura/morreu-o-autor-de-banda-desenhada-jose-ruy-aos-92-anos-15383378.html



segunda-feira, outubro 10, 2022

Renânia do Norte-Vestfália

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Se hoje esta luz-chuva-cheiro-terra-e-verde chegou não é memória que ma faça amar é ainda assim amor que me lembra.

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Era miúdo-excessivo de amor-verdade e ela miúda de amor- excessivo-verdade-ainda.

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Não deverei chorar por saudade que não tenho e todavia dava para voltar a estar naqueles verdes e sentir como era a inocência e a descoberta.

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Não a amo. Amo a miúda que amava quando vou aos sentimentos antigos.

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Arrependimentos, muitos. Voltar não quero porque não sou.

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Fui.

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Não estão escondidos, os sentimentos. São arrumados na caixa bonita do arrumo do que se gosta.

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Quemedera que amanhã não seja soalheiro.

quinta-feira, julho 21, 2022

Amêijoas à Bulhão Pato

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Há uns anos, antes da internet, muitas pessoas acreditavam que os livros só continham verdades. Podiam admitir a hipótese de estarem desactualizados, mas criam que só a verdade, apenas ela, era publicada. Portanto, a boa-fé e a sabedoria, a do momento da impressão, imperavam. A literatura é doutro reino.

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Um dia, num grupo do Facebook, alguém, enlevado, floreava a sua paixão pela escrita publicada. Escreveu dos livros e das verdades – um poeta intalentoso, simultaneamente rococó e romântico – colhendo muitos aplausos, vivas e hurras. Não fui malcriado, nem tampouco brusco, quis somente ser um generoso contribuinte para a conversa. Disse que sempre houve erros, equívocos e mentiras. Exemplifiquei com o «Grande livro de São Cipriano» – tratado que possuo e que, por sortilégios, não sei onde pára. Por esta heresia, fui expulso da agremiação. Antes isso do que queimado na fogueira... seja o livro ou euzinho.

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Apareceu a internet e muito mais coisas surgiram escritas e publicadas – conteúdos, dizem alguns, o que me lembra os chouriços e os seus recheios. Se a publicação em livro não significa verdade, no ciberespaço acontece o mesmo e até para lá de. Só que agora publicar é rápido, barato, fácil e de muito difícil punição pelos abusos de ordem diversa.

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A democratização da publicação criou problemas. Não por acaso, Umberto Eco disse que as redes sociais deram voz aos imbecis – cito a ideia e não rigorizo o texto. As complicações com a sabedoria escrita e publicada em papel, ou noutro suporte físico, passaram para o ciberespaço. Portanto, a cautela tem de ser ampliada muitas vezes.

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O plágio também aumentou e aconteceu-me duas vezes ser confrontado com tal delito. Não digo isto só com tristeza, mas também com orgulho. Este crime tem encanto, porque é simultaneamente roubo e elogio. Tive a sorte e o azar.

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Claro que posso cair em inocência. Já me aconteceu mais do que uma vez. Diz-se que é bom haver cautelas e caldos de galinha. Se tombei por donzelice é, provavelmente, porque não gosto de canja.

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Os jornalistas são julgados bocadamente à parte. Alguns são cândidos e outros piratas. É bom ter presente que a notícia, publicada ou nada-morta, costuma agradar a alguém: um ganha porque se soube e outro vence porque não se revelou. Compete ao jornalista ter isso presente e usar uniformemente princípios justos. Acrescento que isentas têm de ser as novas e não o seu autor. Corneteiros feitos bombos, em todas as festas, mas as marteladas não fazem doer o lombo de quem tem a consciência asseada.

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Um dos meus bichos fabulosos preferidos é o Monstro do Lago Ness, sítio da landa mágica das Terras Altas da Escócia. Gostava muito que existisse – ainda além dos extraterrestres que se despenharam na Área 51 – e quero muito mais que não exista, porque o mito e a imaginação costumam estar encantadoramente à frente da verdade. Frequentemente olho-me nos espelhos, nos de vidro e no dos olhos fechados, sonhando-me o Barão de Münchausen, aventureiro avesso à verdade da ciência.

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Quem mente, Dorian Gray ou a pintura? Sei dum antigo jornalista que se tornou artista porque a realidade é muito desinteressante. Dizem que supera a ficção e talvez seja verdade, não criando nem trazendo ganho e inversamente, resultando igual, porque a imaginação faz o que quer. José Afonso cantou: «Só não mente quem não sente que o mistério não tem fundo».

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Não gosto de mentiras e a realidade é-me frequentemente desinteressante, até enfadonha e entediante. Gosto da arte, onde é e acredito estar. A fantasia permite tudo, vive discutindo com a verdade e amando-a.

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Perguntou Pilatos a Cristo: O que é a verdade?

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Na verdade, o plesiossauro escocês existe e não. Na década de 1930, depois de anos de polémicas, o The Daily Mirror – ou o The Daily Mail – prometeu uma pequena fortuna a quem conseguisse fotografar o Nessie. A obra de arte emergiu em 1934, pligrafada pelo cirurgião Robert Kenneth Wilson. Tornou-se no seu mais célebre clichê, o oficial e provavelmente foi emoldurado e ficou pendente em todas as paredes – ou pousado nas secretárias – das instituições públicas nessianas, empresas da zona, lojas de qualquer tralha e famílias empenhadas no bem-estar da sociedade local. Muitos anos depois, o resgatante do tesouro assumiu a autoria do retrato mentiroso. Ao que me constou – não investiguei, preguiçando-me e interpretando uma irrelevância, vi num documentário de televisão – passou o prazo para um processo judicial por fraude… mas a internet está cheia de informações confusas e contraditórias, todas elas apetitosas quanto amêijoas.

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A imagem é igual para todos. As gentes acreditam no que querem crer – hoje, tanto quanto sempre. Uns verificam e confirmam a ausência de pontos de referência e de escala, o que só pode significar a mentira, pela arte, alimentando o gozo e, provavelmente, a ganância. Outros observam o que sempre viram: um animal passeando-se, indiferente ao Homo sapiens sapiens que o observa indiscreto, na água doce do Ness. Se a luz iluminou e alguém insiste em ver é porque existe algures.

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Pela facilidade de publicação, abundam escrituras. Por natureza, há sabedoria, erramento e dolo. Na internet há sítios onde a mentira é sabiamente cultivada – agora chamam-lhes fake news, antigamente designavam-se notícias falsas. O engano mais eficiente é aquele que está num mar de verdades. Conheço pessoas sérias, inteligentes e cultas que tombaram pelas balas da realidade inventada e maliciosa. Refiro, novamente e sem favor, a popular recomendação de que a cautela e os caldos de galinha são bondosos.

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Como gosto de cautela, contrariamente a caldos de galinha, sou chato e não gosto de motores de deslealdades, teimo em verificar o que não creio… ainda assim volta-e-meia descubro ilusões por mim cultivadas e manjadas. Perante uma patranha, que tresandava a cabeça de pescada cozida, fui tentar pescar a verdade. Agarrada ao anzol veio, sem surpresa, a aldrabice. Escrevi, ao supostamente inocente proprietário da página onde tinha assoprado o logro, a contar a verdade. A resposta:

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– Não é verdade, mas podia ser.

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Não tirou a bestialidade. Acreditava na mentira, queria crer ou era tão mentiroso quanto os prosadores?

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A verdade existe, e embuste e o engano também. Escolher a verdade é um direito como, para tudo, optar pelo oposto. Há clarividentes, crentes e militantes. «Dois olhinhos tem o cego, quando anda a fazer que é manco», canta o Sérgio Godinho.

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Tudo isto por causa das amêijoas à Bulhão Pato. A receita é do chefe João da Matta, que a dedicou ao poeta, e seu amigo, Raimundo Bulhão Pato. Leva, além dos bivalves, alho, azeite e coentros. Só. Só e basta. A genialidade – raridade que abunda nos considerandos da multidão – mora muitas vezes na simplicidade, e acontece nisto. Exagero? Poderá não ser genialidade, mas é, pelo menos, uma jóia.

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Há quem queira acreditar que a poção leva uma data de coisas inexistentes na formulação verdadeira e assinada por homem conhecido.

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Incrédulos, cépticos, infiéis, ateus e crentes, por vocação e missão, admitem os ingredientes genuínos – nos relatos todos que li, valha isso. Os iconoclastas acrescentam e não subtraem. Que sejam temperados com uma expressão culinária: verdade q/b.

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Por ser de água doce, mais depressa o Ness tem um monstro do que uma amêijoa – digo eu, assumido inocente zoólogo. Um peixinho é um peixinho, um passarinho é um passarinho, um cão é um cão e o gato é uma pessoa. Fantasio? Só desmente quem não foi servo de felino ou perdeu a lembrança. Que coma a dita cabeça de pescada cozida, incluindo os olhos, se não falo verdade. Uma clareza válida para alguns – não minto!

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Contrariamente a pescados e canja, gosto do monstro do Ness, do chupa-cabras, dos grey, do lobisomem e do sasquatch, cujo tamanho de pé coincide com o meu… doutros e muitos. Acredita quem quer e eu era menino quando vi um extraterrestre com um dedo que acendia uma luz.

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A verdade é a verdade. Não serve crer ou querer para desmentir. Não há metade nem ilusão. Pode a curgete parecer um pepino, nunca será um pepino. Um gémeo verdadeiro não é verdadeiramente o irmão.

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De qualquer outra maneira, chamem-lhe «Bolhão Pato».

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À Bulhão Pato: Amêijoas, azeite, alho e coentros. Só e basta!

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Como se percebe, se leu o texto até ao fim, nem todas as palavras, deste texto, existem. Ou passaram a viver, porque alguém as inventou.

quarta-feira, abril 27, 2022

A culpa é do México


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Basicamente, a culpa da Guerra Russo-Ucraniana é do México. Ou doutro país qualquer que seja berço de malaguetas. Explico:

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Vlodimir Zelensky passou mal a noite, com pesadelos e dores de barriga. Ao jantar abusara da «galinha à Kiev» e entusiasmou-se, incauto, com o Paladin Sacana, que a sua prima Irina, que vive em Lisboa, lhe levara na véspera. Acordou incomodado e exausto, e pensou:

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– Apetece–me partir a porcaria deste país e dar cabo desta gente toda.

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Pensou, pensou e pensou e teve uma revelação:

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– Vou distribuir armas pelos civis, incluindo velhos e adolescentes… aliás, e crianças.

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Zelensky pediu a opinião aos psicopatas do governo, aos sociopatas das autoridades regionais e aos celerados dos autarcas. Todos, sem pestanejar aprovaram alegremente, batendo palmas e dando vivas e hurras.

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Porém, o presidente ucraniano não tinha um pretexto. Isto de partir tudo e pôr toda a gente a matar–se tem de ter, para melhorar a estória, um vilão. Mas, já agora, um vilão amigo. Agarrou no telefone e marcou um número.

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– Estou sim?

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– Oh Putin, tás bom?

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– Bons ouvidos te oiçam, Zelensky. Que me contas?

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– Estou a pensar partir o meu país e pôr esta malta toda a matar–se toda uma a outra. Pensei que me podes dar uma ajuda.

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– Estou a ouvir–te. Explica isso melhor. Bem sabes que estou sempre pronto a ajudar–te, amigo. Do que precisas?

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– Preciso que invadas a Ucrânia. Entras por aqui a dentro aos tiros e a partir tudo. Depois mando os civis, incluindo velhos e crianças, matarem–se uns aos outros. Bombardeio teatros, escolas, museus, hospitais… e digo que foste tu. O teatro talvez não, afinal sou um palhaço. Que se lixe! Bombardeio também os teatros.

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– Oh pá… mas isso é guerra. Não me apetece nada começar uma guerra. Já viste o que o mundo vai pensar de mim?...

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– Não te preocupes, já pensei como te vais safar. Dizes que é uma operação especial. Falas no Donbass e que vens resgatar os russos, porque os odiamos e tratamos mal.

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– Boa!... Depois acuso–te de teres tropas nazis. Tropas e mais uma data de nazis à paisana… e digo que vou desnazificar a Ucrânia. A propósito, tenho andado com crises de nostalgia da URSS… fui tão feliz no KGB!... Bons tempos!

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– Opá… sou judeu. A minha família foi vítima dos nazis. Não pode ser.

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– Ninguém vai querer saber disso.

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– Mas isso vai ficar na história… é melhor não.

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– Confia em mim. Esquece lá isso da história. Tudo passa. Achas que alguém se lembra do holomodor? Achas que alguém sabe do Pacto Molotov–Ribbentrop? É como dizíamos quando éramos miúdos: «caga, isso não sai no teste».

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– Achas?!

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– Acho, não. Tenho a certeza.

– Se tu o dizes… Olha, pensando bem, isso dos nazis é uma belíssima ideia. Tu acusas–nos e nós dizemos que até temos para a troca. Tu dizes do Batalhão Azov e eu falo no Grupo Wagner.

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– Epá, não te desbronques… tu bem sabes que sim, mas... nem digas nada que estiveram na anexação da Crimeia. Não toques nesse assunto. Peço–te.

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– Dizes que não sabes de nada. Mas tenho de dizer umas larachas… para dar crédito. Temos de manter as aparências.

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– Combinado. Sim, mas não te estiques com essa cena do Grupo Wagner.

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– Olha lá… e se fosse a Ucrânia a invadir a Rússia?

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– Não. O plano é bom. Mais vale não mexer. Sabes que podes contar comigo. Quando queres?

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– Vem no dia 24. A malta ainda não recebeu os ordenados. Poupo esse dinheiro para comprar armas para estes gajos se matarem todos… e ainda fico a rir, sou tão mauzinho...

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– A que horas me queres aí?

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– Vem cedo, pela noite ou de madrugada. Os gajos são apanhados ainda com sono. Assim ainda podes tomar o pequeno–almoço connosco.

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– Durante a noite não dá. Ainda vou ter de meter gasolina. Estes carrinhos bebem que se fartam, tu nem sabes. Vou pela manhã, é melhor. Ligo–te quando estiver a chegar. Mas à hora de almoço já aí estou de certezinha.

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– Não te esqueças de fazer o cartão frota. Poupas uns cobres.

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– Mas, almoçamos?

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– Não. Se viesses mais cedo ainda dava, mas a essa hora iria dar uma grande bandeira.

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– Bem, estamos combinados. Manda um beijinho meu à Olena.

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– Ela está aqui comigo e também está mandar–te um beijinho, e outro para Ludmila.

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– Tchau.

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– Tchau.


quinta-feira, outubro 28, 2021

Lanço ao mundo «A esperança é mesmo o farol»

 


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No fim vou abrir as portadas, revelando a luz que me ofereceram, amigos e familiares, obviamente amigos, porque o sangue só importa na bondade e amizade. Para já dedico-me ao corridinho das notícias e das explicações.

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Escrevo este texto hoje, terça-feira, porque sei que não conseguirei fazê-lo amanhã e, muito menos, na quinta-feira. Estou a pouco mais de quarenta e oito horas do foguetão estalar a minha barreira do som.

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Este vinte e oito de Outubro será um dos dias mais intensos da minha vida. Assim, à primeira vista – a pouca distância temporal – será tão pleno de inquietude quanto o do meu casamento.

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É mentira, mais do que um engano. A felicidade da melhoria da saúde esquece-me do horror e do terror que passei.

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Se nesse dia ri, agora irei certamente chorar.

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Esta ansiedade é boa.

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É bom sentir a distância de negrum. Ainda angustiante por a saber frágil.

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Parecendo a desastrada letra – não que atinge o grau de mau poema – dum fado de espetar facas nas pedras, não há como as deixar sair, não vejo alternativa:

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Hoje sou feliz quando estou triste. Uma felicidade que vem do mundo que não acaba. A depressão alimenta-se sozinha, sem ajuda. Porém, quando se lhe acrescenta uma contrariedade aceita-a com terrível amizade.

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Esperança? Sim, a esperança de ter esperança – como continuando a má escrita, desse fado, já avisada. O suicida não foge da vida, foge da dor – não sei quem o disse, mas é verdade. Não queria morrer, queria viver e tinha essa esperança de esperança. Noutros dias, vivendo no negrum quase pleno – se o fosse não escreveria este texto –, não queria morrer, queria desexistir.

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Facilitando, a depressão é um bicho. Existe em mim – sou também – e desloca-se. Cria-se, aumenta-se, devora e toma conta de tudo. É um órgão, fígado-estômago-pulmões-coração-cérebro. Que dor quando se levanta e se move… morde até ao querer, ao crer, à existência e chega à alma.

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Agora, melhor em notícias, explicações e contentamento:

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Pelos dias que têm vindo de dois mil e dezoito, uma das principais razões para a escritura do livro, centro-me na visão da ansiedade feliz, porque me faz feliz.

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Sei que sobreviverei ao dia em que vou enfrentar a multidão – estejam dezenas, centenas, milhares ou uma só pessoa na assistência. Será um alívio. Prevejo uma impaciência de dádiva e sofreguidão, e água saindo-me dos olhos, numa confusão de bem e mal e de nudez sem pudor.

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Na busca de exemplos antigos, tentando localizar alguma(s) fonte(s), tristemente descobri uma depressão muito precoce. Sabendo dalguns poemas intensos da juventude, procurei nas folhas que zelosamente guardo. Tristemente alcancei a ignorância dos dias adolescentes. Cheguei aos meus treze anos e parei. Desisti, por prudência, de coscuvilhar. Talvez nem importe saber se foi aos treze ou aos dez ou aos oito anos ou a qualquer data infantil. Essa qualquer data é demasiadamente poderosa para que a queira desafiar. Pousei os cadernos.

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É doloroso identificar uma pessoa que se adora como o mau-da-fita. Recupero algum fôlego quando relembro que sou a vítima.

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Este testemunho não é vingança – coisa estúpida seja pelo que for – nem sequer ajuste de contas. Somos plurais, imperfeitos e, em doses diferenciadas, egoístas e egocêntricos – mais condescendentes connosco do que tolerantes com os outros. O meu pai – verdadeiramente ignorando o mal que me causava – deu-me uma nascente de lágrimas.

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Se magoei o meu pai? Claro, assumo-o com vergonha e alívio por o reconhecer. Porém, este livro não é sobre os meus pecados, mas o do meu sofrer. Espero que não aconteça, mas se vier a suceder será outra pessoa a clarificar os danos que causei, gero e infligirei – espero não errar o suficiente para oferecer tristeza tão funda quanto a minha.

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Esperando não acontecer, tenho de estar preparado para isso. Serei resignado no que conseguir. Contudo, são contas que farão por mim.

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Depois ainda o decisivo empurrão, tiro invisível duma pistola escondida, dum merdinhas que crédulo tive como amigo. Dos antigos e pelos dias que se passam, não acredito na maldade escondida numa mentira. Nem na crueldade duma partida sem adeus. Sem uma palavra verdadeira, sem dizer nada. Vivo nessa ignorância, mas não importa.

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Presentemente, diante de mim estarão os que me têm salvado a vida, sofrendo pelos meus pedidos de ajuda e cuidando, eles mesmos, uns dos outros. Nem todos poderão aparecer na cerimónia, isso não importa, porque o que me auxiliaram – espero que não tenham de o fazer novamente – é tão maior do que parte duma tarde importante.

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Importantes são os dias anónimos.

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Não aceito este texto como autoajuda, independentemente das prateleiras das livrarias onde o coloquem. Não mostro magias, de promessas de alívio e de cura – ilusões perigosas. Não sou profissional que possa tratar o íntimo dos outros. Aconselho, padecentes e seus benqueridos amigos, somente procurar especialistas.

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Porém, se puder ajudar alguém – até mesmo uma só pessoa, ainda que não a conheça ou venha a conhecer – dá-me felicidade. Com a imodéstia da minha modéstia, ou vice-versa ou igualmente, sei que irá acontecer.

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Negrum – vocábulo que decidi criar – é o mais negro dos negrumes. Seja um buraco negro do universo, sorvente do ânimo e da luz, arrastando quem apenas quis generosamente auxiliar.

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Eu não disse «A esperança é mesmo o farol». Foi o meu editor, Francisco Camacho, que o descobriu quando leu as minhas palavras. Quando mo colocou diante dos olhos disse, quando os meus olhos o leram, soube que era o acertado.

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A facção do alinhamento técnico – a estrutura, a sistematização ou onde pôr a vírgula – foi muitíssimo fácil, ainda que a equipa da Leya me tenha sugerido modificações e colocado tópicos a abordar. O problema foi o mexer na intimidade.

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O Francisco Camacho e o seu colega Sebastião Veloso estiveram sempre à distância dum email ou dum telefonema. Concederam-me compreensão por alguma irritabilidade , o que foi vital num texto tão emocionalmente exigente.

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Ambos foram importantes na escrita deste texto de, sensivelmente, duzentas páginas – fica este úmero impreciso, pois não sei o nome do estilo de letra, da sua dimensão e espaçamento que tremendamente ditam a soma final das laudas e doutras partituras. Os dois lançaram desafios, corrigiram-me a mira, mostraram-me onde podia acrescentar.

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Ajudaram-me a escrever. «A esperança é mesmo o farol» não é um trabalho de grupo, mas seria (muito) certamente fraco sem as suas intervenções.

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Serei injusto se não referir o trabalho do revisor, Eurico Monchique, com quem me zanguei e divergi muitas vezes. Se houver enganos de português a responsabilidade será minha, porque assim o exigi. Não é retórica, porque fui exigente e frequentemente distante.

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Os revisores «servem» também para levar pancada dos autores. Assim aconteceu, porque tem de acontecer, pela autoridade, autoritarismo, ganância linguística, pensamento mágico do escritor.

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Espero que os meus golpes não tenham sido nefastos – talvez me esteja a conceder uma importância errónea –, não o tenham magoado. Se o coloco elogiado é porque lhe notei um respeito muito grande e empenhado na revisão destas duzentas páginas.

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Quando se afirma que os amigos são para as ocasiões difíceis não se está longe da verdade. Lembro ainda, e sublinho, que temos sobretudo conhecidos, que tantas vezes estão confundidos com amigos.

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Reconhecendo, afirmo, sem qualquer mentira, que sou um felizardo. Aqueles que cria serem amigos revelaram-se amigos. Alguns precaveram-se, compreensivelmente, da toxicidade que emanei, ainda assim não me abandonaram. Mais ainda: não só ninguém desertou, como apareceram pessoas, de quem não esperava nada, mostrando-me solidariedade e amizade. Numa só palavra: caridade – no melhor o significado. Tenho mais amigos do que julgava ter.

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Isto que acabei de letrar não é bem uma verdade, porque houve quem partisse de mim. Não foram pessoas a quem eu quisesse mal ou me quisessem mal. Foram namoradas – relações breves por minha responsabilidade. Findos esses envolvimentos naturalmente abalaram, não faz sentido, na maioria dos casos, permanecer numa proximidade, mesmo se o parceiro não gere veneno. Não é a mesma coisa que a deserção de cridas amizades.

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Precedendo a galáxia – sem disparate de comicidade de mau-gosto – devo a minha vida também às gatas Granita, Lioz, Paraquedas (sem hífen) e Valsa e aos cães Bobi (sem acento), Chuqui, Manga e Mel. Vidas são vidas e os animais não são brinquedos, têm-nos afecto e concedem-nos momentos doces e divertidos.

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Agora, sim, em delírio (tentado) cómico: o Serzinho Irritante, o Chico-Manel… o meu tão querido filho. Por felicidade, não sabe o que é o meu tormento, embora tenha pressentido o meu amargor e ouvido falar em depressão. É a pessoa que mais gosto no mundo.

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O que dizer agora?

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É esta a época de contar dos heróis. O que fizeram eles? Foram heróis. Há alguém maior do que um herói? Só os seres de luz sublime, que não causa sombra. Acima desses só Deus – afirmo-o porque creio – e chamemos-lhes santos, anjos, amigos espirituais…

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Em que consistiu o seu heroísmo das pessoas terrestes? Literalmente a salvação da minha vida! Desde coisas (aparentemente) pequeninas até à concessão de ombro e colo.

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Não há ordem justa dos enunciar, revelo-os por ordem alfabética:

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Ana Dias (minha mulher), professora Ana Marques Lito (minha psicanalista), Ana Suspiro, Isabel Colher, Carolina Palma, Maria Mestra Palma Tiago, Doutor Mário David (meu psiquiatra), Sérgio Carneiro e Vasco Rosendo.

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Fim. Espero que o meu fim seja – como se existisse fim – quando tiver que ser. Não quando eu pense que seja a minha finalidade.

 

sexta-feira, março 19, 2021

Granita – 24 de Março de 2004 – 19 de Março de 2021

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Há dias felizes, como os há tristes. Um dia, um amigo confidenciou-me a sua dor por perder o pai. Mais ou menos a citação, disse-lhe:

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– A morte não existe. Temos uma só vida e várias reencarnações. Neste lado do mundo, feito de matéria, somos espíritos num fato. É quando o despimos que falamos em morte. É apenas o corpo, não o espírito.

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Esse meu amigo – é sábio pensador e disponível para ouvir sem interromper – respondeu-me:

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– O facto de compreendermos a morte não nos tira a dor da sentir.

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Fiquei sem resposta.

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A verdade é que a morte não me causa medo nem receio nem dúvidas. Muito antes de crer na reencarnação, nunca me causou qualquer penar nem nostalgia. Não sendo frio, não a sinto como uma tragédia. Porém, como diz o meu amigo sábio, compreender não é sentir.

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Não chorei a minha avó materna, cujo desencarne foi o primeiro que constatei. Não chorei familiares. Não chorei amigos. Não chorei o meu pai. Não chorei a minha mãe. Não chorei o meu irmão. Não chorei a minha irmã.

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Fiquei triste? Não. Se me comovi? Claro que sim. Sinto saudades? Não. Lembro-me dos meus «mortos»? Sim. Gostava dos ter aqui e agora? Não. Faz parte da vida. Não há como fugir.

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A matéria recicla-se e nós, que somos espírito, vamos para um local onde não precisamos dum corpo. Regressaremos.

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Hoje, a Granita foi para um outro lugar.

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Morreu – digo assim para facilitar – a poucos dias de completar dezassete anos. Estava em sofrimento e até ao «fim» foi meiga.

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Por ignorância minha, tirei-a da mãe demasiadamente cedo – a ela e à mana Lioz, que feneceu em Novembro de 2015. Alimentei-as a biberão. Fui a mãe.

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A Granita era uma gata muitíssimo dócil que, por causa duma brincadeira parva dum amigo, se tornou menos sociável. Estranhos e menos estranhos habilitaram-se a uma patada ou mordidela quando a iam cumprimentar. Comigo, nunca! Sempre fui a sua adorada mãe. A Ana e o Miguel levaram anos até que ela os considerasse como familiares.

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Esperava-me à porta – na velhice deixou de vir sempre saudar a minha chegada. Amuou duas ou três ou quatro vezes, castigando-me pelos sarilhos que ela criara. Os gatos amuam e são engraçados quando despeitados. Dois dias depois já estava tudo bem.

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Dominou a casa quando viveu só com a Lioz e a Paraquedas. Mandou nos bichos todos, desde os que partiram aos que chegaram. Sempre, mesmo quando adoeceu.

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A Manga, uma épagneul breton, foi a única que a desafiou. Ou seja, uma Canis lupus familiaris com quinze ou dezasseis quilos e uma Felis Catus de três ou quatro – no fim da vida com dois ou três. Quando chegou à nossa casa, a cadela, de raça caçadora e habituada a bulhas em asilos, terá citado Gaius Iulius Caesar:

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Veni, vidi, vici.

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A Granita mostrou-lhe, como os gauleses de Asterix, que não vici.

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Reparámos que a Manga gania quando olhava para a gata. A cadela compreendeu o seu lugar na hierarquia e mostrava respeitinho – aquele respeito com receio – quando se cruzavam ou se aproximavam. Quando se excitava mais, a Granita exercia a sua autoridade.

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Como Rainha e idosa, a Granita foi ganhando caprichos. Manifestava-os, sobretudo, comigo. Desde ter de mudar a tijela de sítio ou exigir um mimo antes de comer. Estas situações causaram-nos gargalhadas, obviamente.

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A Granita, não sendo gigante, foi uma gata grande. Foi gordalhufa e emagreceu. Com o tempo emagreceu e perdeu vitalidade. Por vezes, ficava quase prostrada... é a idade, pensei. Não me apercebi que fosse por estar doente, mas porque os muitos anos simplesmente lhe limitavam o apetite – não tendo sido lenta a perda de peso, não foi repentina.

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Uma noite, por volta do Natal, caiu porque não tinha força nas pernas. Levámo-la ao hospital, onde ficou internada, devido a anemia, decorrente de hipertiroidismo – coisa comum em gatos velhos. Com doença crónica, ficou de tomar diariamente medicação. Sempre com apetite e caprichos gastronómicos: se não gostava duma refeição, não a comia... mesmo faminta!

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Embora muitas vezes estivesse quase letárgica, após começar o tratamento engordou um pouco e o pêlo ficou mais macio. Contudo, há poucos dias emagreceu e perdeu macieza. Ontem, ficou pendurada na roupa da cama, sem força para se erguer ou soltar as garras. A Ana acudiu-a. Depois, peguei-lhe e ronronou diferentemente, como costumam fazer os gatos quando sofrem muito – tal como se chama pela mãe, mesmo quando se tem mais de cem anos.

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Estava novamente com anemia e desidratada, mas sem grande descontrolo da tiróide. Se, desde o Natal, sabíamos que a sua saúde era frágil, não foi propriamente uma novidade quando a veterinária disse que poderia não sobreviver ao tratamento.

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Hoje de manhã, ligaram-me do hospital. A Granita tinha um grande tumor nos intestinos. Poderia ter alta para que pudéssemos despedir-nos. As dores iriam aumentar, em dois ou três dias seriam insuportáveis. Falecer em casa? Não! Deixá-la em padecimento esse tempo, para acabar por ir a correr em emergência?

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Desliguei o telemóvel e pensámos duas ou três frases, trinta ou sessenta segundos – sei lá, foi quase um instante. Que violência! Ela em grande sofrimento e nós a braços com alguém que sabíamos ter horas ou poucos dias.

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Fui ao hospital assinar um documento. Deixaram-me vê-la. Estava enroladinha, voltada de costas para a porta.

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Afaguei-lhe a cabeça e virou-se. Acariciei-a sob o queixo, como tanto gostava. Demorou a ronronar – antes era tão rápida, até antes de lhe tocar, e fazia-o bastante alto –, sem que a ouvisse, sentindo-lhe apenas a vibração. Parou segundos depois.

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O estado de doença agravou-se muito em tão pouco tempo. Em menos de quinze horas, a sua expressão mudara muito, inacreditavelmente muito. Vi-a como se tivesse cem anos.

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Sim, os cães são mais expressivos do que os gatos. Sim, os gatos também expressam sentimentos com o olhar, embora mais subtis. Olhou-me tão triste, com os olhos embaciados pelas cataratas. Baixou a cabeça e enrolou-se, como estava quando ali cheguei.

 

Não tenho medo da morte. Compreendo-a e aceito-a sem dor. Não acredito na morte. Nunca chorei alguém porque partiu. Ainda que tenha lembranças, não sou nostálgico. Hoje deixei verter algumas lágrimas. Tomei a mais extrema decisão da minha vida.

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Não se pense que – por escrever o que acabei de escrever – gosto mais dos animais do que dos familiares e amigos que partiram para um local não material. Mas porque tive (tivemos) de decidir o momento dessa transição.

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Que estranho poder! Que loucura!

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O que fazer? Aceitar a «morte» no seu momento, conhecendo o sofrimento e o agravamento da sua dor? Tantas perguntas, muitas mais respostas e dúvidas.

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Quando cheguei a casa, a Manga olhou-me tristemente. Não sei quanto tempo me olhou. Os cães sentem e pressentem, lêem-nos as expressões e compreendem-nos. Sentem a vida diferentemente, sabem coisas que não conseguimos ler.

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A Valsa, gata que não me pede atenção, saltou para o meu colo. Mimou-me e ronronou. Lambeu-me a mão, algo que os gatos fazem – nem todos – só a quem consideram merecedor. Hoje, pensou que eu precisava desse consolo.

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Nós tristes e a Manga, magnânima e generosa, mostrou a sua dor pela morte da Alfa. A Valsa, a nova Rainha, apiedou-se de nós.

quarta-feira, fevereiro 03, 2021

Órfão de mana

 

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A minha mana mudou-se para a Pátria Espiritual, para onde quis ir. Disso não tenho quase nada a dizer. Quero só contar algumas memórias. Só as do tempo em que vivemos juntos e a última lembrança, com ela, da minha infância.

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Vivi com a Luísa até aos meus cinco anos. Nessa idade, as memórias não são muitas. Umas são reais e outras moldadas por fotografias e palavras que me disseram. Mais vírgula, menos ponto, sei quais as verdadeiras recordações de quando.

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A Luísa contava, com gosto, uma maldade que lhe fiz. Ela tinha comprado uma saia nova e estava muito contente com ela; a natural vaidade duma adolescente. Pegou no seu brinquedo (eu) novo e pô-lo no colo. Só que o brinquedo, com dias ou poucos meses, decidiu fazer um grande cocó e estava sem fralda... pobre Luísa. Não sei quantas vezes lhe ouvi este episódio, mas ria-se sempre.

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A minha mana sempre gostou de crianças, tanto que foi professora primária. Num Carnaval vestiu-me e mascarou-me duas vezes: palhaço e mandarim. Do palhaço só me «lembro», porque há fotografias. Do chinês recordo-me.

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Um dia fiz uma birra – coisa que todas as crianças fazem numa determinada idade, às quais não se pode ceder – e ela foi resolver o caso. Pôs-me em cima da cama dela e disse-me:

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– Vamos fazer uma combinação.

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Para mim, uma combinação era uma peça de roupa. Não percebi como iríamos fazer uma combinação nem para quê. Não me lembro mais do que isto.

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Ofereceu-me dois livros infantis que adorei, um comprido em papel-cartão e o outro em tecido. Embora não me recorde do momento em que mos deu, sempre os tive associados a ela.

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Uma vez, os meus pais iam de viagem a Espanha e eu queria muito ir. Por mais que me dissessem que não iria, acreditava que ia. Levantaram-se cedo, antes do meu acordar. Quando despertei… choradeira. A minha mana consolou-me, deixando-me usar, pela primeira vez, a sua máquina-de-escrever.

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A minha mana levou-me, algumas vezes, à escola onde estudava (Dona Luísa de Gusmão), certamente para exibir o maninho – pode também ter sido uma visita a casa do tio Fernando, que vivia em frente, ou possivelmente as duas coisas. Já quase a chegar, passámos por uma loja que tinha uma miniatura de mota. Pedi-lhe e ela deu-ma. O que adorei aquele brinquedo.

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A última memória de infância que me liga a ela é a mais duradoura e palpável. A Luísa tinha-se casado e eu tinha dez ou onze anos. Numa visita, apresentou-me uma menina doce e contestatária, a Mafalda. A Mafaldinha, como «todos» lhe chamam.

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Adorei tanto o livro que me deu (o volume três) que o li quinhentas mil vezes. Compraram-me os outros – talvez me tenha oferecido mais algum. Está usado por tantos anos de leitura repetida. Sempre que o vejo, a Luísa aparece-me na memória, desde sempre.

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No Verão de 2018, fomos passear ao Norte e pousámos na casa da Luísa. O Miguel tinha onze anos e a mana apresentou-lhe a Mafaldinha. Ofereceu-lhe um livro grande, que junta o conjunto de todos. O miúdo leu-o vorazmente. Uma e outra e outra e outra e outra vez, tal como eu aos onze anos.

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Quando contei ao Miguel que a minha mana se tinha mudado para a Pátria Espiritual, falou-me prontamente na Mafaldinha. Com um olhar de clara saudade por uma pessoa que só viu uma vez.

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Vivendo em Braga e eu em Lisboa, telefonávamo-nos com regularidade. Tanto tempo de falas que um de nós acabava em urgência. Os dias não se fazem só com conversas de manos – estas eram intermináveis, podiam ser eternas. Porém, tenho a sensação que não ficou nada por dizer, só por acabar.

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O nosso espírito é eterno.