digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

domingo, janeiro 23, 2011

Há demasiados mortos nesta vida

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Esta notícia faz-me lembrar o azul profundo duma solidão. O momento preciso do desprendimento. O espírito desagarrado do corpo. A morte, se assim se quiser.
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Não há tempo para palavras tristes. Não é preciso ter-se um coração para que este se sinta apertado e minguado. Rezando para que os pés não doam demasiado pelo caminho.
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Se a tristeza não se vai, que nos apartemos nós dela. Abandoná-la onde faz sofrer. Poça de sangue que mais ninguém vê.
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Quando estocas e feres, é o teu sangue que se derrama. Quando matas, morres. Morres-te devagar, aos bocadinhos, com o peso de toda a memória. Ainda que a consciência te alivie. Delinquente inocente.
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Os homens grandes não precisam de monumentos. A verdade é toda e toda exige que se o diga: todos os homens nascem iguais. Preciso de palavras de circunstância no meu velório.
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Os homens grandes não precisam de monumentos. Desejo, em ânsia, os aplausos, as intimidades gloriosas e um tocante discurso de abalada.
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No fim de tudo, só o amor primeiro e o amor maior. Todos os outros não são bem coisa alguma. Inspiração e desejo. O que fica?
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Cuidava que os poetas podiam matar as musas e renasciam fortalecidos no desgosto de não falecerem por elas. Que viviam felizes ou infelizes. Que viviam.
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Cuidava que a musa nunca mataria. Com o feitiço suficiente para o cantor se cortar, desperdiçando-se em letras rubras de odor férreo. Por suicídio ou surpresa por se saber morrer, com um sopro da musa.
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Desamando, ela, com um pranto. Pode viver-se sem um coração, mas não com uma consciência leve. Não com um manto de veludo negro na memória.
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Baixada a cortina sobre o amor prometido em sacrifício de viver infeliz. Tragédia sanguinária em que todos morrem. Quendera uma cova para repousar o corpo. Todos os amores acabam mal, está na lei moderna. Até os que nunca começaram. Está na lei suprema.
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A notícia faz-me lembrar o azul profundo duma solidão. A vida recomeça adiante.

terça-feira, janeiro 18, 2011

Não sou à prova de água





















Tenho-te, fogo livre. Tens-me, queimando-me preso. Sem artifício no que digo. Não plasmo as promessas, não materializo as palavras. Consumo, até ao momento em que terei devorado tudo. Tudo, sôfrego, nunca satisfeito. Na terra ou no ar, preso ao fogo do teu signo água.

segunda-feira, janeiro 17, 2011

A musa ressuscitada





















Vejo-te, flor. Sinto-te menina e sei-te mulher. Vejo-te imaginando, nua num canapé com uma cidade por trás. As janelas são para se abrirem. Pela tua entra a música das ruas e a luz que o céu permite. Por ela saem os meus olhos, envergonhados por, tão descaradamente, gozarem a tua beleza.
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Vivo-te doentiamente. Invisível a teus olhos. Invisível também para me dissimular no teu quarto para me deliciar quando te despes. Sofro por te ver amada e amante. Vejo-te tão ignorante de mim.
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Não fosse invisível veria as minhas mãos nos teus quadris. Nos teus seios e no teu rosto. Afastando os cabelos suados enquanto mordisco e mordiscas alternadamente com o soar das almas a sair das bocas.
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Em que cidade vives? Nunca saio. Talvez por isso não me leves a sério. Nem me vejas. Ou, pior, não me leves a sério.
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Sou tonto. Acredito no acreditável, menos crível que os zombies baterem à porta doutro defunto. Defunto, sou eu, que escondi o coração em Edimburgo. Eu, que nem vivo, nem sou credível. Tão tonto como inacreditável.
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Se é Lisboa, a janela abre-se às ruas populares. Qualquer outra é desilusão e sofrimento. O meu coração abandonado sente, lá longe em Edimburgo, uma saudade do que não deve, não pode, porque não sabe.
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Sim, flor-menina-mulher… sei-te triste comigo e não por ser invisível ou apaixonado, ainda que inacreditável. Noto-te na voz o cansaço da minha tristeza e pelo ridículo de todos os disparates que digo e escrevo.
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Ainda assim vivo escondido no espelho do teu espelho, donde te vejo desnuda e amante doutro amante. Ciúmes? Não. Tristeza por não me veres. Por não me mostrar e apenas soar.
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Coragem só na voz. No corpo a morte, vagarosa, como poeta, um desespero incontável e ignorância.
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As musas não matam os poetas. Os poetas é que morrem tristes frente às musas.
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Escondido num espelho desconheces-me sabendo-me. Dentro do espelho escondido vejo o reflexo da luz do esconderijo, plano insensível, impronunciável e morto diante da tua beleza e nudez.
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No escuro sei-te. Amante e amada. Desfaleço sem ciúme, mas desesperançado. Os poetas não matam as musas. Deixam-nas cair, quebrando-se. A minha partiu-se e, estupidamente, tento cola-la. Do lado dela a mesma insensibilidade. A mesma falta de crença. Que nunca perca o sorriso que me ata. Que nunca perca de vista a flor-menina-mulher.

sexta-feira, janeiro 14, 2011

A mão além do corpo aquém

A mão além, do corpo aquém. Respiração visível, como plasma. Não vapor no frio, mas como plasma. Como um fantasma.
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Não tenho dúvidas que flutuo sobre o corpo deitado. Vestido sobre a cama. Olhos abertos de pálpebras em descanso.
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Há um espaço entre as orelhas e os sons da rua. Uma parede de ar.
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Dentro, dia. Fora, noite. Minutos depois, o inverso. Difícil sincronia.
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O corpo ergue-se. Como que se a alma estivesse fora do corpo. Por cima, observa. Visão em três linhas, horizontais e paralelas. Entre cada uma, um espaço sem concreto. Todas límpidas e claras, precisas, bem definidas e inconfundíveis. E sobre o corpo, a observação.
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Três horizontes. Indiferente à temperatura, a mão além projecta-se fora da janela. A dúvida. Entre a vida e a morte. A certeza da vida, a dúvida da vida.
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Por momentos, os olhos outra vez fechados crêem poder alcançar qualquer coisa. A mão além vai, ainda que os olhos se tenham fechado, por insuportável trivisão. Além da observação sobrevoada, consciente do que é e donde está. Acima duma realidade tangível.
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A mão além tenta despertar o corpo que se voltou a deitar. A angústia.
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Afinal quase tudo é angústia. No sono. No sono depois do sono. No sono que se força. No sonho no sono. Do sonho entre sonos. O tempo em que não se dorme. Sempre a angústia.
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É um peso. A mão estrafoga, a angústia. A mão, além, tenta fugir. De matar, e do local do seu crime. A mão além, na dúvida. A alma vigia o corpo deitado.
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Cobardias da mão e da alma. O corpo em angústia, entre viver e o contrário, em dúvida. Triste.
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A mão além recolhe-se num receio. A visão que flutuava escondeu-se atrás da consciência. A respiração desplasmou-se. Os olhos despertaram. O corpo levantou-se. A mesma angústia e a dúvida, de viver e de não viver.
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Até um dia. Um dia novo de certezas. A angústia vai dormir. Enquanto se não dorme, a angústia pausa-se. Tocaram a campainha e a porta abre-se. A angústia foi dormir. A angústia voltará.

terça-feira, janeiro 11, 2011

O fim a chegar

Não tenho dedos para te dar tanta ternura. Mereces que te trate como viola e te dedilhe até cantares prazeres.
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Deitados em lençóis amassados, lado a lado. Deitados e em palavras, em voz densa, mergulhados. Mergulhados num lago de intimidade e afecto.
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Não há horas para tantas palavras. Não há horas para tudo o que se deve fazer na cama. As noites são breves, o resto das horas são sono.
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Não há tempo para as perdas, que os dias correm e amanhecem muito cedo uns anos à frente.
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Mesmo sem o corpo entrar no corpo, o braço estendido sobre o outro afunda-se. Mesmo sem loucura, os cabelos entrançam-se nos dedos da parelha.
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A densa respiração engana. Não é a profundidade do desejo que exala, mas a do sono.
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Horas perdidas. Tempo que se desperdiça e sem pensar.
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Eu sem dedos para te dedilhar. Porque adormecendo. Tu e eles. Só as preocupações despertam. A monotonia é o que resta dum dia, semana, mês de trabalho.
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O fim não tarda.