digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

domingo, junho 08, 2025

Digam o que disserem

 

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Então, disse-me:

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– O céu azul é lindo, não é?

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– Os cientistas dizem, li não sei aonde, que o céu não é azul.

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– Então, qual é a sua cor?

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– Não sei… talvez seja negro, tal como se vê à noite.

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– Deve ser a luz do Sol que.

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– Não sei. Os cientistas dizem coisas que não se entendem.

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– Êee… como assim? Quais? O quê?

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– Todos eles, de todas as ciências. Nunca têm certezas. Se as tiverem, outros desmentem-nos e, mais tarde ou mais cedo, os cépticos e os invejosos afinal não tinham razão… ou só em parte.

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– …

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– Para que quero as ciências? Não as entendo… só algumas pessoas… os cientistas, alguns outros sábios e gente muito inteligente e com grande memória. Há também os mentirosos, mas, se eu não souber, não perceberei que me enganam… como não me interessa, é-me indiferente o falso conhecimento. Iludem-me, mas não me roubam nada.

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– A ciência é importante.

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– Para quê? Adianta-lhe saber que a Terra é redonda? Poder calcular a raiz quadrada ajuda-o a descansar? E a fórmula química da glucose, que nunca me esqueci?…

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– …

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– Voando sobre uma esfera, a distância mais curta entre dois pontos não é através da recta. Quero ir daqui para ali e o caminho não me importa, desde que chegue o mais rapidamente possível.

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– Não lhe importam como vivem as plantas ou como actuam as vacinas?... Sem ciência não há tecnologia…

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– Interessam-me a couve no prato e as rosas no jardim. Quero as vacinas para não ficar doente e um comprimido para as dores…

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– Essas coisas não são importantes?!…

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– São coisas importantes, mas desinteressa-me o seu funcionamento. Para que quero a ciência? Não a entendo nem vou fazer uma pausa para aprender, porque não serei cientista e ser sábio ocupa o tempo em que me delicio a olhar a chuva, a afagar um gato ou a repousar em água morna…

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– …

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– Referiu-me as proezas… as ciências e a tecnologias. Quem é mais importante, o astrofísico que não me dá nada e me fala do que não entendo ou o padeiro que faz bom pão, mas desconhece química, física e mecânica?

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– Êee… âaa…

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– …

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– É um homem de letras, não de números.

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– É exactamente o mesmo! Saber o que é o predicativo do sujeito importa para dizer que se está molhado da chuva?

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– O conhecimento liberta…

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– O conhecimento científico gera desconhecimento. Por que hei-de andar numa estrada que cresce a cada passo? Se a ignorância é escuridão e apenas ver as sombras projectadas é, uma espécie, servidão, saber que saber significa saber menos do que se julgava saber… Saber de ciência é uma prisão doentia. E saber de letras não faz, do sábio, um poeta.

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– …

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– Não é possível saber tudo sobre uma coisa, tal como não é possível saber um pouco, que impressiona por ser muito, acerca de tudo. Se não posso saber tudo nem conhecer muitos bocadinhos de tudo, para que hei-de saber só uma parte ou ter muitas insignificâncias na cabeça? Por que escolher esta ciência e não outra? Porquê uma parte duma ciência e não outra parte? E, depois, como lhe disse, os cientistas duvidam, divergem, desmentem… prefiro as certezas, o resto – seja muito ou pouco, não me importa – é para os cientistas e para os doutores das letras.

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– …

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– …

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– O céu azul é lindo!

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– O azul é lindo, mesmo quando não é céu. É felicidade… não importa o que é, nada importa além de azul.

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– Digam o que disserem, os cientistas.

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– O dinheiro é indiferente para o pobre que não precisa mais do que tem.

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– Êee…

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– Uma limusina para ir ao jardim dar pão seco aos pombos? Uma cama com cinco metros de largura, quando o corpo tem menos dum de ombro ao ombro? Relógio de ouro que dá as horas como um de plástico e que se atrasa menos? Talheres de prata não tornam a carne mais macia nem a fruta mais doce. Uma gravata de seda sobre a camisa toca maciamente na pele como uma de poliéster.

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– Um apartamento com uma vista deslumbrante custa muito dinheiro…

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– Não espera que lhe diga que os ricos roubam os pobres e ficam egoisticamente com o belo. Não o direi… a abomino a beleza do trabalho esforçado, como glorificam os neorrealistas… nem disse que sou pobre nem que quero ser… nem que negligencio o belo. Disse do pobre que não quer mais do que tem, tal como estou satisfeito com a ignorância científica. Esse, da abastança monetária, é outro assunto.

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– O céu azul é lindo, não é?...

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– Digam o que disserem os cientistas.

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