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O meu pai – nesta vida – faria hoje noventa e cinco anos. Hoje
era o melhor dia, não pelo seu aniversário. Era supremo, dizia que esse, o de
setenta e quatro, fora mais feliz do que os da luz de qualquer um dos seus três
filhos.
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Manuel Jorge afirmava-se comunista – não porque o fosse por
absoluta convicção, mas pela gratidão aos tombados contra o Estado Novo.
Assumia-se, ainda que, ocasionalmente, vertesse em incontida denúncia de engano.
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A verdade – a sua, generosa e real – corria-lhe íntegra.
Como outras coisas, nascia-lhe infantilmente e seguia em curso selvagem. Por
essa consciência, nunca quis ser um combatente da ditadura – não se sentiu
capaz de ajudar, por isso recusou-se a estragar.
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Escolhera assim ser comunista. Não o sendo, era-o, porque,
tal como ele, o pensamento era autoritário. Os pais não são perfeitos, o meu
era dogmático, com a violência emocional que tal implica.
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Sei que numa ditadura comunista, Manuel Jorge seria
anticomunista, porque amava a liberdade. Para si e para os outros, mesmo sendo
tirano em família. O meu pai era uma contradição!
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Tanto era comunista quanto dizia que talvez não o fosse, mas
grato, foi com bondade que se ligou ao Partido Comunista Português.
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O meu pai era verdadeiro e íntegro! Já agora o escrevi.
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Como agora, escrevi que se ofereceu ao Partido Comunista
Português, repito. Deu-lhe tudo e nada recebeu em troca, nem pediu ou desejou.
Como artista plástico – dono do seu tempo, vítima dos ganhos em moeda e da
irregularidade do recebimento – deu-lhe tempo
de trabalho, materiais e disponibilidade para tudo o que fosse preciso, fosse
como trolha na Festa do Avante ou segurança do recinto.
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Aos setenta e muitos anos, Manuel Jorge estava insensível
das mãos e trémulo dos olhos. Foi morto pela natureza, chegou ao fim a arte nos
dias. Do Partido Comunista Português não recebeu qualquer homenagem – coisa que
não exigia nem gostaria –, louvor ou agradecimento. Foi abandonado, como são
abandonados, nas ditaduras, os sinceros e os inúteis. Manuel Jorge era ingénuo,
mas inteligente e sábio – teve o infortúnio de ser genuíno e franco.
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Não por vaidade nem por orgulho ofendido – nunca quis a
justiça com que deveria ter sido tratado pelo Partido Comunista Português –,
Manuel Jorge percebeu que não era comunista e, nos seus últimos anos neste
corpo, nesta vida, feneceu sem o dizer – nunca o diria, não por vergonha, só
era assim o seu modo.
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Um dia, o cobrador das quotas bateu-lhe à porta para colher
o dízimo, a parte da renda do senhor terratenente, e Manuel Jorge falou com o
humor de toda a sua vida, a brutalidade da sua franqueza e a ingenuidade dos
autênticos.
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A minha mãe disse-me:
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– Não sei o que o teu pai lhe disse.
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O recebedor saiu porta fora, batendo-a incrédulo e ofendido,
remoendo qualquer coisa de ódio. Manuel Jorge nunca contou dessa curta conversa,
nem mostrou sentimento, nem suavemente.
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Manuel Jorge não deixou de ser comunista por causa do
abandono. A arte finou-se em mil novecentos e oitenta e oito e o cobrador
resmungou pouco tempo antes de Manuel Jorge ter cumprido a sua vida, em dois mel e quinze.
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Deixou de ser comunista porque era sábio – da sua sabedoria.
Possivelmente, deixou de ser ingénuo, continuando franco, directo e frontal.
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Como comunista, ganhou rancor ao Partido Socialista e a
Mário Soares, por causa dos anos do Período Revolucionário Em Curso – nunca
desejou a morte de ninguém, mas, se pudesse, mandava o político para um sítio
em que não o visse nem ouvisse nem pressentisse.
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Com a genuinidade de quem tem uma certeza, afirmava que, se
não existisse o Partido Comunista Português, seria do Partido Social Democrata
e até tinha simpatia por Francisco Sá Carneiro.
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Já o escrevi outra vez agora, Manuel Jorge era ingénuo. O
meu pai acreditava que os fachos estavam no partido do Centro Democrático
Social – afastou-se do catolicismo romano por causa do padre da paróquia de
Santa Engrácia, que fazia campanha a partir do púlpito. Vertia cólera devido às
desavenças dos primeiros dias de liberdade e do terrorismo ideológico – na
verdade era cruzado, recíproco.
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Manuel Jorge tinha essa zanga, porque era ingénuo – escrevi novamente
agora. O meu pai não percebeu que muitos, talvez quase todos, não apoiavam a
ditadura por ideologia, mas por situacionismo – faziam pela vida e a revolução
estragou-lhes a existência.
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Esses – não sabia – queriam a fonte no bolso e mudaram-se
para os partidos que vencessem nos votos. Para o Partido Socialista e para o
Partido Social Democrata, sobretudo para este último.
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Tenho quase a idade que Manuel Jorge tinha no vinte e cinco
de Abril de mil novecentos e setenta e quatro. Não sou mais sábio do que o meu
pai – muito longe disso. Viveu muito mais do que eu até esse dia, até depois.
Porém, só me falta um ano.
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Apesar de ser também ingénuo e tristemente frontal e
verdadeiro – da minha verdade – sou muito menos do que ele, mas já vivi alguma
coisa e anos diferentes dos seus, em tempos e idades diversas. Conta-me a
existência que os fachos – os reacças falam pejorativamente da revolução como
abrilada e do vinte e cinco do barra quatro – estão sobretudo num lugar
diferente do que acreditava o meu pai.
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Manuel Jorge faria hoje noventa e cinco anos. Era religioso
por ânimo e revoltado com a Igreja Católica por azar – nunca o desdisse. Embora
eu sendo cristão espírita, dei-lhe, por respeito – também pela família –, um
funeral católico romano. No final da liturgia falei ao padre – depois
escrevi-lhe a agradecer – o quanto admirei a homilia, porque fizera do meu pai
um homem e não um santo.
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Manuel Jorge, na sua verdade genuína e franca, afirmou
tantas vezes que a morte não torna as pessoas boas. O meu pai era ingénuo, mas
era sábio.
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Já agora que revelei que foi dogmático e totalitário – o que
os íntimos sabem –, nunca me criticou por eu ter deixado precocemente a fé na
religião comunista. Também tolerou, com idêntica abertura, eu ser apoiante –
quase sempre – do Centro Democrático Social.
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O meu pai era uma contradição. Mas.
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Por tudo o que foi o meu pai – desta vida – faço-lhe, como
sempre fiz, uma homenagem, onde cabe um brinde com o melhor vinho que tenho em
casa.
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Apesar de todos os muitos seus defeitos, amo muito
Manuel Jorge. Das poucas virtudes que tenho, a maioria devo-as ao meu pai.
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