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digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.
sábado, abril 29, 2006
Um amor bonito-triste
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O pesadelo em vida
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Regresso ao ventre
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A crueldade do alvo
sexta-feira, abril 28, 2006
Esquina
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quinta-feira, abril 27, 2006
Planeta Zero
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O conselho da Fortuna
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Gramática tangente
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Beijos, beijos
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Couve na língua
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Gerard Castello Lopes
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Gosto de ti, porque és português e conheces-nos a todos como fomos. Sabemos quem fomos e até como ainda somos, porque estiveste lá. Havia bola e não havia mais nada do que bola. Havia as ruas compridas e gente a ir para o trabalho, havia até gente com trocos para apanhar o autocarro. Eram tempos difíceis. Mas o mais divertido era brincar na rua, jogar à bola e sonhar em um dia ser campeão, ser um cromo da bola, mesmo sem chuteiras... fazia-se uma bola com tudo e jogava-se em qualquer lado. Tu estiveste lá.
Robert Doisneau
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Gosto de ti, porque és o maior poeta da fotografia. Gosto de ti, porque estás no limite do bom gosto. Gosto de ti, porque o sublime é tão simples. És tão concreto, tão banal, tão corriqueiro que impressiona onde vais encontrar tanta poesia. Não me importa que digam que ensaiaste poses, que solicitaste repetições. Importa-me o que os teus olhos viram e o com que a tua emoção se impressionou.
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Henri Cartier Bresson
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Gosto de ti porque és reinadio e tens o condão de apanhar as pessoas normais em poses ridículas. Gosto de ti porque és uma criança a brincar com as crianças com uma câmara fotográfica. Gosto de ti, porque sabes usar o reflexo da água. Gosto de ti, porque as tuas imagens não têm idade, apesar das personagens estarem datadas. As tuas pessoas são sempre pessoas, porque são muito autênticas.
Sebastião Salgado
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Gosto da dignidade humana que sabes mostrar mesmo quando o momento é de tragédia e desespero. Sei que sabes o que é o ser humano. Não sei se acreditas em Deus, mas sei que acreditas nas alma dos homens. Gosto de ti pelos teus olhos e pela rapidez dos reflexos dos teus dedos. Gosto do modo como vês o mundo e como o mostras. Não me fazes vomitar, dás-me vontade de o querer mudar, porque me comoves. Gosto como honras o trabalho sem me intoxicares com comunismos. Só por isso gosto muito de ti.
quarta-feira, abril 26, 2006
O meu caderno
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Amor e napalm
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Só para dizer que os crimes dos Estados não se designam de terrorismo.
Só para lembrar que houve o Vietname e a Coreia. Só para lembrar que houve a cortina de ferro, o muro da vergonha e a invasão do Afeganistão pelos soviéticos.
Só para lembrar que nenhum ser humano é verdadeiramente livre enquanto um outro não o é. Só para lembrar que há ditadura em Cuba, em Angola e não apenas no Iraque, no Irão, no Nepal e na Coreia do Norte. Só para lembrar que a Palestina está ocupada. Estou a omitir muitos outros locais apenas porque não me apetece citá-los a todos.
Há crimes e crimes. Só para lembrar que foi deitado napalm no Vietname. Só para lembrar milhões de crimes dos muitos comunismos. Só para lembrar.
O vôo humano
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No período do processo revolucionário em curso cantava-se desafinadamente uma cançoneta horrível que falava de gaivotas e papoilas e cujo refram dizia: «somos livres de voar». As pessoas democráticas, as reaccionárias e as bem-humoradas respondiam: «Um comunista voava, voava, dum décimo andar»...
É horrível o vôo humano!
Pináculo de Santo Estêvão
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O Danúbio não passa em Viena e não cheguei a ir ao Pratter. Não me pareceu interessante: tem um estádio e uma feira popular com uma roda gigante donde se avista a cidade. Impressiona-me mais o pináculo de Santo Estêvão. Ando com saudades de Viena. Tenho de lá ir. Sei com quem me apetece lá ir. Se pudesse...
Voar e liberdade
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E tu, minha menina, que tens asas, já voas? Já voas novamente? Tenho pena que tenham de te segurar para esvoaçares e te falte a coragem para te emancipares. Quando vais tu voar sozinha? O que importa se caires no chão? O chão é apenas chão. É madeira. É tão material como o ar. Quando perceberes que o ar é feito da mesma essência que a madeira vais suster-te nele e voar. Para que queres tu as asas se não voas? Larga a vida que levas, não precisas das mãos a segurarem-te. Olha, tens as janelas postas por Reembrandt. Delas podes ver o mundo e sair desse quadro. Vai, voa daí para fora. Há quem não o possa fazer por não ter asas e se limite a contemplar as vistas, mas tu nasceste com asas. Vai, vai voar. Não precisas das mãos dos outros para esvoaçar. Não é presa a alguém que vais ser livre. Sai desse quadro. Tens abertas as janelas de Reembrandt. Por elas entra a luz e podes sair para a liberdade.
Segredos
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Gostava de não ter medo do escuro nem do pó nem das teias de aranha nem da idade das garrafas nem do vinho idoso nem da luz frouxa. Gostava de brincar no átrio onde estão as portas do Paraíso e do Inferno. Gostava de saber o que se esconde nas caves de Vinho do Porto, do Champanhe e do Tokay.
Praticar esgrima numa adega é uma façanha de herói. É a minha aventura de sonho. Quero brincar às escondidas contigo e ler-te contos infantis numa adega como se fôssemos duas crianças crentes em coelhos falantes. Gostava de não ter medo dos caminhos das escadas nem da luz amarela fraca.
O meu refúgio guarda garrafas antigas que nunca terei dinheiro para comprar. É lá onde brinco contigo e onde abasteço os jantares que sirvo aos amigos. Gostava de ter as chaves das caves do Vinho do Porto, do Champanhe e do Tokay... e já que se pode sonhar, que viessem também as do Madeira, do Bordéus, do Borgonha e do Colares. Um mar de vinho dentro de vidro e espadachins de amigos sobre pipas. Não conto a ninguém estes meus desejos secretos.
A minha ovelha favorita
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terça-feira, abril 25, 2006
Coração
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Atribuo-lhe capacidades de guardar e processar sentimentos. Sei que não o faz. Em sentido figurado é senhor de sentido moral, coragem, ânimo, benevolência, valor, franqueza, memória, boa-vontade e piedade.
O de algumas aves fica bem na sopa... na canja! Não gosto de canja. Quero dizer, não gosto de canja com massinha nem com arroz. Não gosto de arroz nem de massinhas na sopa. Em nenhuma delas. É por culpa desse hábito que rejeito as canjas. Prefiro a de pato à de galinha.
Os heróis destemidos e habilidosos com as mãos fazem façanhas: cortam o da vaca em fatias grossas e temperam-nas com sal e especiarias, e cobrem-nas com bom vinagre, onde fica a marinar dez horas. Depois escorrem-se as lâminas dessa carne e juntam-se numa caçarola com toucinho derretido, com o qualsão salteadas por um quarto de hora em lume bravo. As lascas do dito vão depois para uma panela de loiça com cebolinhas e dentes de alho acompanhadas de vinho tinto para cozer por sete horas. Nessa altura está o músculo pronto a comer.
O meu palpita de gulodice só de escrever estas linhas. Ainda não digeri a canja anterior e já sonho com pitéus demorados. O coração ainda me mata de prazer!...
Fim do mundo
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Hundertwasser
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Chamava-se Hundertwasser e era pintor e escultor. Morreu em 2000 e deixaram-no construir as casas que sonhou. Porque a vida é para se viver. Porque devemos viver em harmonia com a natureza fundiu casas com as colinas e mesclou-as nos verdes. Porque os pés são para andar, o chão não tem de ser direito! Porque o homem é um só, na paleta e nas casas cabiam muitos povos. Nos países lúcidos convidaram-no a construir. Ele era pintor e escultor.
Nós por cá preferimos o chato do branco, que a única coisa que devia fazer era a toca dos ursos polares no Zoo de Lisboa ou os urinóis hospitalares. Qualquer traço que o mago faça é arte, mesmo que seja apenas branco e cheire a éter e o resultado se pareça com um sanatório do tempo da Guerra de 1914/18.
Nos países de luz deixam trabahar os artistas e também os asnos do branco, que dão bons dias à tristeza infernal em que vivem os desgraçados que já tinham uma vida triste antes de viverem nos apartamentos tristes do chato.
Um destes dias tenho de ir lavar os olhos à Alemanha e à Áustria, onde deixam os pintores, os escultores e até os asnos fazer arquitectura.
Viena
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Lembro-me de Viena. A pedra, as fachadas, os jardins, a neve, os chocolates, o café, a música, os palácios, as pessoas, as salsichas, os eléctricos, os prédios novos e as coisas velhas. Se eu pudesse sem quem lá levava. Não posso contar. Ai Viena!
Cafeteira
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segunda-feira, abril 24, 2006
Companhia perfeita
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Na mesa vou pôr uma toalha de linho muito alva, sem mácula ou pecado, como se quer da amizade. Mas como manda a moda e o gosto de agora, a minha toalha de linho branco é de algodão roxo. É sem nódoa ou enxovalho. Nela espalharei pratos, as alfaias, os copos justos e guardanapos impolutos.
Depois vem a festa dos sabores e dos aromas, sem espalhafatos, para que nada roube a ribalta ao vinho, que já tem idade. Carninha estufada em vinho tinto com cebolinhas e alho, escoltada de batata cozida. Para falar com franqueza não sei o que primeiro hei-de trazer à tábua: nada de queijos, nada de muita fruta ou exuberância, nada que na sua juventude passe rasteiras ao velho tinto ou chame amigo tinto mais jovem que leve as emoções para longe do velho amigo. Não sei com que vá entrar. Para saída estou capaz de uma patifaria doce suave que se arrime bem a um colheita tardia que se passeia lá por casa e já anda resprescado.
Anteontem fui à cave e trouxe uma das minhas melhores garrafas. É pequena para tanta gente, a garrafa, mas é generosa a sua vontade. Se pudesse servia-a a todos os amigos. Não posso, não chega. Nem mesmo toda a minha adega é suficiente para a sede de todos eles. Não que tenham muitas securas... Felizmente tenho tantos companheiros. Uns são mais chegados do que outros e se pudesse matava a sede a todos com a minha melhor garrafa.
domingo, abril 23, 2006
Peste-negra
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Hoje não durmo por causa de duas ou três frases malditas há uma semana e mais uns cubos de gelo pela camisola abaixo que provei hoje. Não consigo dormir com o gelo que vai nesta casa. Depois há as infatigáveis moscas dos pesadelos que me atormentam e não deixam o sono pegar. Já percebi que vou ver o Sol nascer e tombar na desistência. Estas comichões dentro da cabeça são pavorosas e agarram-se às ideias. Torna-se difícil pensar ou fazer qualquer coisa a não ser ter pesadelos... os malditos pesadelos e suas sarcásticas dores. Anda aí uma peste-negra desde há uma semana.
Anda aí uma peste-negra a alimentar-se de mim e já fui ao médico e já enxotei as moscas transmissoras dos pesadelos e já pedi perdão e já perdoei e não sei o que mais possa fazer para que parem as tenebrosas comichões dentro da cabeça. Disse-lhe que queria calor e experimentei o ardor dos cactos e a virtude do ácido nas feridas. Uma semana depois, julgando que melhorara, disse-lhe que queria a paz e gelou-me o corpo todo. Maldita sina esta. Não será possível a peste-negra passar?
Hoje não durmo por causa das comichões que tenho dentro da cabeça. Na testa despontam-me hastes córneas, como um touro. Torno-me cornudo, porque não posso ser um tigre. O que importa quanto se viveu e o que se viveu? Há vida nova e os beijos antigos esquecem-se e perdem a cor no fundo das gavetas. No fundo do coração está uma pedra amarrada ao amor-antigo, a prova que foi afogado... afogado em lágrimas. Maldita peste-negra! Torno-me cornudo, porque não posso ser tigre.
Todo o meu passado não interessa. Não interessa a ninguém. O meu presente pode servir de acendalha nas lareiras e como não está frio nem para isso dá jeito, vai para reciclar. Coisa assim não tem futuro. Não tenho futuro. Torno-me cornudo, porque não posso ser tigre.
Hoje não durmo com comichões dentro da cabeça. A peste-negra fez das suas. Eu alimentei-a, mas não o fiz sozinho. Hoje não durmo até ser dia.
sábado, abril 22, 2006
Dentada de Komodo
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Às vezes mordem-me. Como um Dragão de Komodo. A carne incha e fica da cor da inveja antes de estar morta. Depois alastra pelo sangue e toda ela vai morrendo. No mínimo têm de me cortar um pedaço para que o resto sobreviva. Depois a custo e com muita dor volto a crescer. Dói muito: a dentada, a carne arrancada e o senti-la a crescer. Às vezes mordem-me como um Dragão de Komodo.
Às vezes mordo sem querer. Como um Dragão de Komodo. Às vezes mordem-me sem querer. Como um Dragão de Komodo. A pessonha entra no sangue e apodrece a carne. Mata num instante que parece longo. Dói muito. A pessonha mata. Mesmo sem querer. A dentada do Dragão de Komodo mata.
Chá verde ao telefone
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sexta-feira, abril 21, 2006
Música
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Não sei pôr música e gosto de seduzir ninfas. Toco aqui uma música que só as miúdas apaixonáveis ouvem. Essas podem sofrer, se por mim se apaixonarem, porque não me apaixono... não tenho coração! Toco uma música e só as miúdas apaixonáveis a ouvem. É essa a música do meu blog.
Não brinco só com as estrelas e só gosto de brincar. Esta é a música do meu blog, só as apaixonáveis a ouvem e espero que não sofram por mim.
Magno
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Fumeiro
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Em reparação
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quinta-feira, abril 20, 2006
Coração
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Não tenho coração, tenho uma romã. Por isso não me apaixono e só me comovo com coisas simples. Saboreio uma laranja e sou feliz. Não compreendo o mundo e basta-me a chuva para ter do que falar durante uma semana. Emociono-me com o vento.
O meu coração não bate, descasca-se. É difícil e trabalhoso. Esperar dele um afecto é pura perda de tempo. Não posso dar sangue. Não tenho. Não prometo amor e desconheço o ódio.
Já tive um coração, mas não me servia para nada e ainda poderia criar-me um enfarte e matar-me. Troquei-o por um fruto, porque quando cair de maduro dará a nascer uma árvore, ou mais, e esta mais frutos, até todo o meu peito, até todo eu, ser um pomar. Em vez de um coração que me possa matar de enfarte ou de desgosto, tenho um fruto para me imortalizar loução.
Não dou beijos, porque quando troquei o coração por um fruto deixei de compreender a sua função. Se me abrirem o peito não morro e posso até semear-me fora de mim. Posso dar-me além de mim, porque não tenho um coração, tenho uma romã.
Menino-Rei
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Como um pequeno César vivi esquecido e abandonado num palácio entre os brinquedos e as riquezas. Entre os abraços e as lágrimas da mãe. Entre a ausência e o peso do pai. Só e só com a protecção da forte avó frágil. Eu era o menino-Rei. Entre os gestos fidalgos e os gritos da plebe enlouquecida. Eu era o menino-Rei a crescer com disciplina férrea... a enferrujar e a quebrar.
Hoje sou um menino grande doente e confuso. Hoje choro por muitas coisas e lamento ter sido um menino-Rei e um peso, posto num altar onde ninguém rezava. Espero que não se lembrem de mim e, sobretudo, rezo para não se lembrarem de mim como o menino-Rei.
O meu veleiro
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Não sei navegar. Se soubesse, talvez não navegasse. Que vento me levaria mais a minha lancha e para onde nos levaria? Não tenho para onde queira ir. Por mim ficava no cais enlevado a ver o meu barco ou ficava deitado na água a vê-lo fingir que navegava. Não sei navegar.
Pés nus
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Acho que em miúda podias ter brincado comigo numa casa com chão de tijoleira rústica e feito amor numa outra com chão de tábua corrida. Por mim, deitava-me contigo numa seara ou na areia da praia. Não teria problema em encher-me de natureza a fazer amor contigo. Acho que os teus pés fundem-se com as texturas simples. Se os teus pés o fazem, toda tu o fazes também.
Gosto quando te olho bem nos olhos e vejo-te toda. Não és diferente dos teus pés nus no chão de soalho de madeira onde nunca os vi. Os teus abraços são simples, mas doces e profundos. São aquáticos. Os teus abraços não têm cheiro, Nem cor. Nem sabor. Gosto dos teus abraços, porque são despojados, porque matam a sede.
Para mim tu és terna, amiga e familiar. Como as tábuas corridas que quentes seguram os teus pés nus, que nunca vi de tal modo. Vi-os na praia, entre a areia. É quase, mas não é o mesmo. Quando me lembro ternamente de ti, lembro-me descalça em soalho corrido.
Gosto muito de ti descalça e faria amor contigo hoje numa casa vazia, desde que ao abrires-me a porta estivesses descalça e o chão fosse de madeira. Não precisaria dum sorriso ou de ouvir a tua voz serena. Eu podia ir até cabisbaixo para que os meus olhos não se encontrassem com os teus. Fazia amor contigo hoje, agora, já, se estivesses descalça em chão de tábua corrida. Como nunca te vi.
Aos basbaques
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O parque para os basbaques vai ter buracos enormes onde os homens vão para observar os trabalhos, mesmo sem perceber de obras. Vai haver espaço de debate onde os basbaques vão dar bitaites do que não sabem, porque todos têm opinião, mesmo que não se oiçam.
Vão construir um parque útil para inutilidades, onde não haverá música nem artistas nem poetas. Em cada rua haverá livros do Guiness para apontar inutilidades e ler que um homem correu três metros apoiado na língua e outro fez o pino com os pés no chão. O livro do Guiness é importante, porque veio para acabar com as teimas intermináveis dos bêbados. Vai haver muitos no parque dos basbaques.
O jardim dos pasmos vai ter tertúlias de fofocas de mundanidades sem atrasar ou adiantar a espécie humana nem salvar o mundo de qualquer abismo ou fome. Não importa se haverá afectos, importa que terá frinchas para espreitar e muito para espantar.
O parque dos basbaques vai ter famosos desconhecidos a fazer necessidades atrás das árvores e a espreitar a nudez do homem comum. Vai haver futebol e discussões inúteis sobre penálties nos bastidores dos balnearios e sobre a vida sexual de quem se trata por tu sem nunca se conhecer.
O que importa é o espanto e um jardim para os basbaques se espantarem com estátuas aos inventores de nulidades. Será uma festa da cultura. Sem ironia! Viva o gozo de espreitar o mundo da porcaria. É tão bom tomar banho!
Argola celeste
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Descanso
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Por mim, tanto me faz que seja cremado ou sepultado. O corpo deixará de ser meu mal a minha alma o abandone.
Por agora, só durante uns minutos e apenas para quem me lê, fantasio como se não fosse e penso-me fantasma e numa casinha para morar. Gostava de ter uma árvore grande para fazer sombra à pedra quase lisa com o meu nome. Nesse local de silêncio e ausências não teria família a chorar-me, só algumas visitas por engano e uns passantes. A todos esses gostaria de ajudar ou assustar... conforme os apetites. Mais ou menos como faço agora.
O raio X
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Do que se faz um poema? Quantas moléculas o formam e que proteínas têm por missão poemar? Queria abrir a cabeça dum poeta triste, mas só a dum poeta triste, porque o mundo não precisa de tristeza real, só precisa dela poemada. O mundo está cheio de tristeza, faz-se dela. O mundo precisa de poetas alegres e tristes. Se a operação corresse mal, tão grande mal viria ao mundo se se perdesse um poeta feliz. Mas um poeta triste é mais autêntico, tem mais verdade do mundo.
Depois de radiografar e abrir a cabeça dum poeta triste iria dissecar-lhe as mãos, para ver como se movem os tendões e os músculos quando escreve. Um poeta triste pode escrever com a esquerda ou com a direita... tal como um poeta feliz... tal como qualquer um... até como os tolos. Mas as mãos dum poeta, sobretudo dum poeta triste, são diferentes das outras, porque escrevem coisas diferentes, porque a sua cabeça ordena-lhes coisas diferentes.
A minha curiosidade não é menos científica. Queria ver por dentro a massa dum poeta triste e se conseguisse provar-lhe o sabor. Sem dar-lhe açúcar. Tenho a certeza que é mais doce e feliz do que as palavras tristes que manda a boca dizer e as mãos escrever. Quero ver a cabeça dum poeta triste.
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