digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

domingo, abril 23, 2006

Peste-negra

Hoje não durmo por causa das comichões dentro da cabeça. Tenho as ideias agitadas. Malditas moscas dos pesadelos, que não há meio de se enxotarem para fora do meu quarto, para fora da minha vida. É tudo muito complicado! Anda aí uma peste-negra a fazer banquetes com as minhas dores. Chego a pensar que vim ao mundo para alimentar cadáveres.
Hoje não durmo por causa de duas ou três frases malditas há uma semana e mais uns cubos de gelo pela camisola abaixo que provei hoje. Não consigo dormir com o gelo que vai nesta casa. Depois há as infatigáveis moscas dos pesadelos que me atormentam e não deixam o sono pegar. Já percebi que vou ver o Sol nascer e tombar na desistência. Estas comichões dentro da cabeça são pavorosas e agarram-se às ideias. Torna-se difícil pensar ou fazer qualquer coisa a não ser ter pesadelos... os malditos pesadelos e suas sarcásticas dores. Anda aí uma peste-negra desde há uma semana.
Anda aí uma peste-negra a alimentar-se de mim e já fui ao médico e já enxotei as moscas transmissoras dos pesadelos e já pedi perdão e já perdoei e não sei o que mais possa fazer para que parem as tenebrosas comichões dentro da cabeça. Disse-lhe que queria calor e experimentei o ardor dos cactos e a virtude do ácido nas feridas. Uma semana depois, julgando que melhorara, disse-lhe que queria a paz e gelou-me o corpo todo. Maldita sina esta. Não será possível a peste-negra passar?
Hoje não durmo por causa das comichões que tenho dentro da cabeça. Na testa despontam-me hastes córneas, como um touro. Torno-me cornudo, porque não posso ser um tigre. O que importa quanto se viveu e o que se viveu? Há vida nova e os beijos antigos esquecem-se e perdem a cor no fundo das gavetas. No fundo do coração está uma pedra amarrada ao amor-antigo, a prova que foi afogado... afogado em lágrimas. Maldita peste-negra! Torno-me cornudo, porque não posso ser tigre.
Todo o meu passado não interessa. Não interessa a ninguém. O meu presente pode servir de acendalha nas lareiras e como não está frio nem para isso dá jeito, vai para reciclar. Coisa assim não tem futuro. Não tenho futuro. Torno-me cornudo, porque não posso ser tigre.
Hoje não durmo com comichões dentro da cabeça. A peste-negra fez das suas. Eu alimentei-a, mas não o fiz sozinho. Hoje não durmo até ser dia.

2 comentários:

Anónimo disse...

Morbidamente bem escrito!

Anónimo disse...

João querido... um beijo enorme.