digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

quarta-feira, maio 31, 2006

Sede em dia de calor

Perguntaste-me por bebida e sirvo-te fresca para te acalmar do calor. Vieste com uma salada que chamaste algarvia. Não sei o que seja, mas imagino-a fresca... como tomate, cebola, pepino e pimento assado... até talvez com oregãos. Sim, claro que com azeite e vinagre.
- O que é isto?
- É bom, não é? É vinho rosa, chama-se rosé ou rosado. Faz-se com uvas tintas, mas por ter tido pouco contacto com as películas a cor fica, assim, descorada. Experimenta.
- Achas? É bom?
- Ainda há preconceito, mas têm aparecido uns vinhos muito bons e bebem-se muito bem no Verão. Fazem sonhar, esquecer os problemas e sublimam a alegria... Se forem bons, claro. Os tintos, agora, ficam pesados e tão facilmente andam quentes e se tal acontece tornam-se aborrecidos e desgostosos, desperdícios de tempo e de vinho. Lá dentro encontram-se, muitas vezes aromas e sabores de morango, cereja e groselha... juro! Experimenta um rosé, depois testa outro, depois prova outro, depois ensaia outro, vais ver que é muito fácil.
- E se eu não gostar? Que bebo com a minha salada fresca?
- Se não gostares dos rosés, degusta Vinho Verde alvarinho, que vem de Monção e Melgaço. Há bom e há menos interessante, mas não me lembro de nenhum ser intratável. Mas, deixa-me dizer-te, que o rosé tem tanta graça...

terça-feira, maio 30, 2006

Calor, calor

Não devia haver calor! Só devia haver calor nos sítios correctos! Para que serve o Verão numa sociedade civilizada? O Verão é bom na praia! Não há melhor do que um areal com o Sol a bater quente na proximidade do mar refrescante.
O calor serve perto duma piscina, com sombra e refrescos vários. Esses tancos põem-se onde se quiser e têm uma forma qualquer. Dizem que dão trabalho, mas aliviam muito mais!...
No campo, o Verão talvez faça falta à natureza. Seja! Desde que perto da casa corra água ou ela se espelhe para os corpos mergulharem, por mim está bem.
Fora desses mundos, o Verão é uma canseira! Só devia haver Verão na praia... na piscina... ou no campo junto à água! Aí pode haver calor com fartura! Na cidade, o estio é um fardo e um desperdício de temperatura. Porém, na cidade é que não! O Verão devia ser proibido na cidade! Abolido! É contra os Direitos do Homem!

Cavalarias

Tenho andado todo o dia atrás de cavalos. Já me doem as costas e a boca anda seca do pó do campo. Penso não tardar muito para aparecer trajado de calça justa e polainas afiveladas, protegido de chapéu redondo de aba larga. Não custa muito o cheiro e estes animais são de fácil afeição. No domingo ainda visto a jaqueta e vou janota para a feira.
Se fosse toureiro, toureava sempre de tricórnio e não me vergaria à moda de ir para a arena em cabelo com trajes bordados e punhos de renda. Punha-me ali na frente da cara do toiro e a minha montada confiante bailaria e faria bonitos e volteios, especialidades de escola antes de eu estocar o adversário. Se eu fosse toureiro montava de tricórnio posto!
Gostava de consquistar o mundo a espalhar a paz, sem um tiro, sem um ferido e sem dores. Em cada terra forçar as portas e as muralhas com abraços de fraternidade. Seria um general orgulhoso montado frente à cidade sitiada, pronto a entrar em desfile, em que mandaria beijos às mulheres debruçadas nos balcões, que me retribuiriam com flores. Não há vitória nem glória sem um triunfo montado num bom cavalo!
Contudo, estou com as costas desarranjadas de perseguir as manadas. Não me aguento muito tempo na sela. Tem sido todo o dia de hoje a querer saber mais dos puros-sangue lusitanos e do seu bom carácter, sua fácil montada e grande versatilidade. Todo o dia atrás de cavalos. Já me farta, mas gosto! Até sonho cavalgadas...

segunda-feira, maio 29, 2006

Mais sopas

Por mim comia só sopa e nem trincava grande coisa. Para além de tudo está um calor que ferve só de mastigar. Para já é um Inferno a escaldar na pele mal se sai à rua e uma sauna dentro de casa.
Hoje vai ser sopa fria para arrefecer os demónios que me andam a atormentar. E para os evocar vou esfolá-los ou simular um cozinhado de diabretes, bastam-me tomates bem maduros a dar a cor. Vão fugir de medo para tão longe e tão depressão este estio não me escalfará. Corto uma cebolita e deixo-a ficar transparente numa frigideira com azeite, deito-lhe o tomate e deixo-o ficar até se desfazer e tudo ficar uma só coisa. Quando arrefecer hei-de juntar água fresca e orégãos. Não preciso de muito mais para ser feliz neste dias de impossibilidades.
Quem se quiser estafar mais um pouco tem sempre a opção dum gaspacho, que é infalível e está absolutamente determinado a lutar contra o calor. Dá mais trabalho, mas o efeito é duradouro e reconfortante. E há tantas maneiras do fazer que se pode comer dele todos os dias sem nunca o repetir. Mas, o mais importante é derrotar o Verão abominável. A sopa fria faz milagres!

Sopa neste calor

Como sopa mesmo com este calor. Arrefeço-a com bocadinhos de pão. Não sopro, ensopo-a. Por isso é que se chama sopa à sopa. Mesmo no calor vem-me a sopa. Pode vir só de legumes e viria com filhos do mar não fosse a intolerância ao peixe. Pode vir quente, espero que arrefeça ou ensopo-a. Não sopro. Mesmo com calor como sopa. Gosto de sopa.

Emigrar para o Inverno

A minha carne suada quase me torna vegetariano e este calor faz-me vegetar. Duvido que esteja vivo e desconfio que a alma está a despegar-se do corpo e sinta os calores da decomposição. Caso esta hipótese não esteja certa, penso emigrar para um país onde só haja Inverno. Não sei se há vida no Verão! As hipóteses de sobrevivência no calor são remotas.
Agora estaria na praia. Numa em que o mar batesse com força e tocasse bombardas. Onde o vento se fizesse sentir e trouxesse as vagas e as despedaçasse na linha de terra e empurrasse as nuvens aquíferas para perto dos homens. Um céu carregado de negro-chumbo a resgar-se em águas e a precipitar-se na humanidade. Um frio de gelo, talvez neve ou granizo, no mínimo chuva bem fria. Isso sim, agora, era a minha felicidade!

domingo, maio 28, 2006

Domingo, estúpido domingo

Mesmo que não fosse domingo, ainda que houvesse praia, em que estivesse todo este calor, tudo em mim seria igual: as mesmas indecisão, culpa, tristeza nostálgica, vazio, buraco na alma e solidão de mim.
O ano está a chegar ao tempo do sem retorno. A partir de agora já não volta para trás. Os dias vão esticar-se nas horas e acalorarem-se absurdamente. Até se estoirarem. Não há maneira dos travarem. Não há água que caia do céu para apagar esta opressão doentia. O Verão é vingador, tirânico e temperamental.
É domingo e está uma sensação quente de culpa. Hoje é um dia estúpido de cheiros abafados na rua e ainda estão para vir o Santo António, as sardinhas e os caracóis. É uma tontura que atira o corpo para a cama a suar. É um abafo que atira o corpo para a rua. O tempo faz-se de momentos semi-perigosos.
Este maldito vazio de palavras e a indecisão quanto a amanhã. Não há dor maior! Quem me dera os meus amores juntinhos!... Todos numa jarra para não morrem de sede. Está um tempo de quase morte, uma opressão doentia e uma despreocupada entrada de Verão.

sexta-feira, maio 26, 2006

Piano

Corda percutida. Martelo. Martelinhos. Não sei tocar os martelinhos, mas quase imito, horrivelmente, metade do princípio do começo da Für Elise. Não é um cravo nem um clavicórdio, é um piano. Não se afina um piano com um diapasão. Um afinador de pianos não é um carregador de pianos. O piano é fundamental, mas não faz parte da orquestra. Tenho tanta pena de ti, piano.

quinta-feira, maio 25, 2006

A voz soprano

Na orquestra, os tocadores estão bem à frente, à direita do mestre. O seu primeiro é o primeiro na linha de sucessão. O objecto tem quatro cordas brilhantes e ao chegarem-se-lhes o arco ou os dedos dão de cantarem entre o estridente e o quase quente. Às vezes são capazes de galopadas, talvez por no passado se terem feito com as crinas de cavalos... ou porque quem as toca tenha ter os dedos desenfreados duma loucura auditiva e uma frenética ânsia de conseguir tocar no imaterial... no som.

Quinta-feira despida

Cristo subiu ao Céu numa quinta-feira. Foi numa quinta-feira dum ano incerto. Foi há muito tempo, anteontem. Todos os anos, muitos que não fazem nada por se melhorarem dizem palavras em nome do Cristo e batem com a mão no peito: vão à missa, comungam, celebram o Natal e até jejuam. Todos os anos acontece a evocação, sempre num dia diferente, porque o importante é o simbólico da Ressurreição. Não acredito nesse momento-acção, mas aceito que quem a quer e tem por certa. Custa-me é que se diga com os lábios o que se não entende com a alma, não se sente com o coração nem se faz com as mãos.
A Quinta-Feira de Espiga é hoje... uns tantos dias depois da Páscoa... e melhor seria se fosse Quinta-Feira Despida. Despida de falsidades e rituais, despida de festas e folclores, despedida de repetições e versos, despida de ignorâncias e cegueiras, despida de preconceitos e artimanhas. Queria uma Quinta-Feira de Natal onde coubesse a caridade e a amizade, onde houvesse um verbo chamado solidariedade e todas as pessoas se conjugassem auxiliadas com amor. Que Quinta-Feira de Espiga seja Despida como um nu carente e esse precisado fosse coberto, limpo e alimentado, porque é Natal.

Nota: Muitas destas críticas faço-as para mim, porque desejo um mundo melhor, mas faço parte da imperfeição e dos cegos-indiferentes.

Fumo

Vivo no meio do fumo dos meus pensamentos. São tantos que tenho de queimar alguns. Muitos fervem outros são pestilentos e alguns aproveitam-se. As ideias estão guardadas dentro da cabeça e o seu fumo, quando libertado, solta-se como palavras, risco, imagem fotográfica ou cozinhado. Se acontece aspereza não vem como fumo, mas na substância doutras matérias.
Vivo no meio do fumo dos cigarros dos outros. Chamam-me mau porque quero ter a minha judiaria de ar livre. Ainda assim invadem-me o curto rectângulo com qualquer pretexto mínimo e escusa minúscula, porque é rápida e passageira a passagem, ignorando deliberadamente que fica o fumo, o hálito, a presença e a indisposição. Chamam-me mau porque defendo-me da agressão no meu canto do refúgio.
Vivo no meio do fumo das preguiças transportadas nos carros e nas riquezas simples e quotidianas do Ocidente e do hemisfério Norte. Encosto-me na maioria e fujo para dentro da multidão onde buzino. Atesto o depósito e vou depressa ou quase quieto ajudar a encher o ar de fumo.

Madeira ao almoço

O improvável aconteceu-me. Serviram-me vinho abafado para regar a refeição e o dito cansou-me a sede. Na verdade, não foi um generoso, mas quatro. Flutuei sentado na cadeira a beber Vinho da Madeira. No nariz festejei com os aromas quentes e diferentes do quarteto e na boca exprimentei as mestiçagens com as diferentes comidas. Todos vieram da casa H.M. Borges.
Primeiro veio um Harvest Sercial de 1995, de trago seco e ácido, mas a enrolar-se macio e suave dentro de mim. Quando lhe encostei uma salada de tomate e courgette com espargos, então, começou a cantar alegrias.
Encanto maior mostrou o Harvest Colheita Boal de 1995... que delícia elegante no nariz e prazer na boca! Este é um Vinho da Madeira capaz de trazer fama e fazer renascer um espírito cansado. Visto a olho nu era apenas vinho num copo, mas quando se soltava na boca e se lhe juntava a mousse com avelãs e foi-gras havia brincadeiras desenfreadas e alegres.
A coisa acalmou com o Harvest Colheita de 1995, feito só de uvas negra mole, e embora não sendo de mau fundo não brilhou por causa dos manos. Nem mesmo com a carne de vaca macia, a batata desfeita e os legumes verticais o fizeram subir a grandes alturas. Mas não envergonhou o nome de família.
A fechar a festa veio uma sericá com mel escoltada por um Harvest Malvazia 1998 e o júbilo foi notório, tanto da parte da noiva, como do noivo, como durante toda esta boda. Por mim, este foi a melhor núpcia da época e a beleza líquida mais fácil e encantadora. Perdi-me de amores por ela.
Espantoso ainda foi o chefe, o alcoviteiro que inventou os casamentos dos vinhos com os pastos. Foi tarefa de esforço, engenho e sabedoria. Porém, saí-lhe em destino e desafiei-o com a minha intolerância ao peixe. Saiu-se bravamente, improvisando uma cartinha só para mim, coisa revelada de maravilha nas papilas e saciante na gula.
Hoje é dia de festa, canta a minha alma!

Vento educado

Ontem vi um vento levantar um papel do chão e mete-lo num caixote do lixo. Se há ventos educados... Há poesia nas coisas concretas, na vida comum e nos gestos simples. Lembrei-me de ti, Rosalia, sempre menina. Só espero que o papel não tivesse palavras escritas importantes. Certamente que não tinha... um vento assim educado teve o cuidado de ler o papel antes de o deitar fora.

A bandeira do falso sonho na cidade depois do pesadelo

Quando pensava em liberdade trouxeste pesadelo. Em vez dum beijo mordeste com traição. Aos sinistros passos sucederam sinistros passos. Aquele desejo de Paraíso era afinal o Inferno e a sua morte trouxe uma loucura doentia. Medicaste remédios tão louçãos que matavam aos bocadinhos... cortaste durante anos fatias finas de carne e de pele como quem prometia beijinhos. Dizias que era o melhor enquanto queimavas os olhos, ainda assim não percebesses quando todos continuaram a ver. Ainda hoje não percebes que o comunismo morreu e não presta o que dizes... e não presta o que sempre disseste, que é veneno mal-cheiroso e com sabor a merda.
Como eram bonitos os teus olhos quando prometiam liberdade e como eram vermelhas de sangue as tuas mãos depois de fazerem o que faziam todos os dias! Como estavam cheias de povo as tuas palavras e como o trincavas quando te desobedecia!
Como foste engano... mentira doentia, fedor nojento e vómito imundo! E houve quem desfraldasse a tua bandeira nas praças e ruas das cidades livres!... Tantos enganos!... Mentistes mais a quem iludiste liberdade!

Vou de tubo

Vou num tubo até ao Japão e de mota até ao Sião! Mentira! Fumo um charuto e sigo em frente e pulo de contente, aos saltinhos, sorridente. Mentira! Descanço encostado à parede e dou com a cabeça para que acorde, já é dia e sou crescido. Mentira! Vou num tubo até ao Japão e vou mais veloz do que no Concorde, porque quero e porque sinto... e porque sou o maior da minha rua. Mentira! Levo pancada de todos os miúdos e até há raparigas que me chegam. Mentira! Vou num tubo até ao Japão e encontro petróleo no Irão! Saio de lá preto que nem carvão e sou explorado, porque sim, porque sou do lado errado do mundo. Vou num tubo até ao Japão e lá julgam-se superiores! Lá só querem saber duma coisa... levaram com uma bomba em 1945 e não têm culpa de nada! Não vou de tubo até ao Japão! Nem de tubo nem num jatão!

quarta-feira, maio 24, 2006

1918

Há números mágicos simples como o 3, o 7, o 9 e o 12. Pois eu quero um mais complicado. Um que seja tão absurdo quanto aqueles, mas menos óbvio. Incerto do critério a seguir fui ver o número de visitas do blog e descobri a razão de ser do Universo... ou pelo menos da magia encerrada dentro dum número. Dediquei-me à investigação cabalística do 1918 e tive a certeza que o meu número não é mágico por acaso!
A Lituânia declaroua a independência da Rússia em 1918.
Os turcos incendiaram a biblioteca de Bagdade em 1918.
Nicolau II, czar de todas as Rússias, foi assassinado em 1918.
A Primeira Guerra Mundial terminou em 1918.
Max Planck ganhou o Prémio Nobel da Física em 1918.
Ingmar Bergman nasceu em 1918.
Gustav Klimt morreu em 1918.
Sidónio Pais, o único Presidente da República decente que houve em Portugal, foi assassinado em 1918.
Por estas e outras razões, 1918 é um número mágico. São tão mais válidas do que as tolices que sustentam as inevitabilidades sobrenaturais dos algarismos do costume.
Se somar o um com o nove fico com dez: e um com zero é um - o início de tudo. Se somar o um com o oito tenho nove - o fim de tudo. Se somar os dois resultados tenho dezanove, o que dá um mais nove, ou seja dez. Mais uma vez o resultado é um - o início de tudo. Raciocinando o conjunto: princípio, fim, princípio, significado tangível que o Universo é redondo. Por este absurdo idiota afirmo e garanto desgoelado que 1918 é um número mágico. Tão mágico quanto qualquer outro. Tão absurdo nesse propósito quanto um pão com manteiga ou um gato a miar à Lua.
Detesto superstições!

Vinho

Tenho provado vinhos. Ando a conhecer-lhes os encantos. Deixo-me tomar pelos aromas e domar pelos sabores. Sou a mulher e ele o homem. Eu sou a amante possuída e apaixonada, a virgem amantíssiva, fervente de desejo. Gosto da aventura, porque cada golo é um novo pecado. Cada trago é um desafio ao saber certo dos homens da Santa Madre Igreja, e cada descoberta uma blasféfia. E já que se fala de dogma, afirmo bem alto: O vinho não é o sangue do Cristo!
Tenho provado vinhos. Enrolam-se na boca, brincam com a língua, sobem-me ao nariz, escorrem-se-me, embriagam-me quando os deixo à solta. Torno-me arisco e já não deixo qualquer um aproximar-se... como dantes. Têm chegado doces e de pasto, combinações algébricas e inícios da cabala. Gosto dos provar sem querer adivinhar. Só pressentir.
É bonito brincar com Baco e atirar-lhe baguinhos. Correr à frente dele sem o deixar apanhar. É bom fazer amor depois de provar vinho e falar de amor enquanto se prova. Às vezes é bom ficar ébrio e falar alto, derramar alegria sobre a mesa e afirmar disparates entre amigos. Tenho provado vinhos. Ando a conhecer-lhes cada vez mais encantos.

terça-feira, maio 23, 2006

O meu avião Comet

Tenho um avião de prata que fura nuvens como o meu dedo fura-bolos fura bolos. O meu avião corta o ar e risca o céu e fá-lo assobiando onomatopeias como os miúdos quando brincam com aviões de brincar. As vigias do aparelho são pequenas e a cabeça lembra a duma cobra. É veloz e brilha muito quando o Sol lhe bate de chapa na chapa. O meu avião é a jacto e pode levar muita gente dentro, mais de cem pessoas. Gosto de lhe ouvir o motor a aquecer e do ver avançar de vagar na pista antes de correr para levantar vôo. Tenho um avião de prata que fura nuvens e risca o céu. É veloz e assobia quando voa depressa no ar.

Estrela inquieta

Disseram-me que era aziago. Vejo-os e não os sinto funestos. Longe disso. Coisa tão rara só pode ser presságio de sorte. Por que não?
Por mim, gosto de cometas. Uma bola de fogo furiosa e o seu rasto, como uma estrela com cauda, que vai sorrindo pelo universo. Uma estrela inquieta a espalhar luz e desassossego aos astros conformados. É a juventude celeste à procura dum lugar.
Os cometas são os cavaleiros do céu que galopam a espalhar as notícias, levam e trazem ideias, e se no vazio houvesse som teriam a voz de mil trovões entoando afinados os cânticos da corte do Deus Thor. Não seriam os rugidos guerreiros de Odin, mas as bombardas graves de Thor.
Os cometas são uma alegria em movimento bela de se contemplar na pradaria do firmamento. Por que haveria de ser sinistra a sua passagem? Por mim gosto de os ver passar. São estrelas inquiestas em virtuosa velocidade, feitos de vertiginosa ânsia de chegar e de magnífica luz presa.

segunda-feira, maio 22, 2006

Às vezes a fé vacila-me. Não aprendo facilmente. Puxo-me as orelhas. Puxam-me as orelhas. Apanho sustos. Dão-me sermões. Aceno com a cabeça. Às vezes a fé vacila-me. Nem sempre sou muito inteligente. Sou até esquecido... às vezes esqueço-me da luz que vi. Peço desculpa a Deus por ser tão prosaico.

Depressa

Gosto de andar depressa. Não consigo estar quieto nem empastar os passos. Gosto de ir contra o vento, de correr ou de andar até que me doam os músculos. Não consigo estar parado. O tempo morre na quietude. A juventude é eterna no movimento. Quero ser sempre jovem e não me importa o que me possa acontecer na velocidade. Gosto de ir depressa e não percebo como se possa ir doutra forma. Saiam da frente, arredem, deixem-me passar, quero ir à velocidade do relâmpago ou pelo menos tentar. Não quero saltar nem pular nem exultar, quero ir com o vento pela frente ou correr com ele por trás, ultrapassa-lo, vencê-lo. Não se pode estar parado. Quero e vou depressa. Não me importa o perigo. Não percebo como se pode ir doutra forma sem ser depressa.

domingo, maio 21, 2006

Maio de chuva

Quando chove em Maio fico feliz. Recordo o tempo que passou e alegro-me com o que há-de vir. Lembro-me de ti e de estar deitado sem nada para fazer. Só quando faziamos amor. Fazíamos amor porque estava a chover e não se podia fazer mais nada. Quando chove em Maio fico feliz. A água deste mês refresca o calor já vindo e molha como uma bênção. Fazíamos amor por tudo e por nada. Depois havia preguiça, conversa, silêncios, confissões, juras e beijos. Fazíamos amor porque chovia e não havia mais nada para fazer. Ainda hoje gosto quando chove em Maio, mesmo que não faça amor contigo e já não saiba amarrotar lençóis.

sábado, maio 20, 2006

Jeanloup Sieff




Desculpa ter-me esquecido de ti quando escrevi sobre os meus fotógrafos da vida. Ensinaste-me que o erotismo é inteligência e nem tudo o que há para ver é para se mostrar. Gosto de ti porque sabes do preto e do branco muito mais do que há cores para ver. Há quem tenha fotografado nessas duas cores porque não tenha tido outra hipótese ou não se tenha sabido adaptar. Tu viveste e respiraste sem cor, não precisaste delas e deste-as ao mundo. É por isso que gosto de ti.

sexta-feira, maio 19, 2006

Tempo de palavras

Não tenho tido tempo para escrever cartas a quem gosto. Se tivesse escrevia-te uma. Tenho tanto para te dizer. Quando não se sabe por onde começar, começa-se por um lado qualquer. É como um lago quase a transbordar. As palavras quando enchem acabam por brotar pelo lado mais raso e daí fluem como um rio e já não há como as parar. Quando há muito para dizer pode não dizer-se nada. Uma piscina molha tanto como um oceano. As frases guardam-se uma a uma, formam conversas para se terem e, às tantas, são serões em claro para contar as novidades e as antigas confidências que nunca o foram. Não tenho tido tempo para escrever cartas a quem gosto, mas quem sabe se um dia não transbordo de palavras e te escrevo uma?

quinta-feira, maio 18, 2006

Ainda agora

Ainda agora aqui estavas e já partiste. O rosto modificou-se um pouco com o tempo, mas sempre o mesmo olhar esperto e quente, como uma mãe e uma amante. Sinto-te a presença não muito distante, mas não te vejo. Ainda agora aqui estavas e já partiste. Deixaste o sorriso na memória e sei que abalaste a chorar. Não queria que nenhuma lágrima me pertencesse. Sinto-te não muito distante e sei que se alçar do braço não te alcançarei nem mesmo tocarei. Andas esquiva e sentida, como uma amante ferida e abandonada. Não queria que nenhuma das tuas lágrimas fosse minha.
Espero-te bem e sorrindo, nadando em pétalas de rosas vermelhas a cantar a felicidade dos dias azuis. Não sei se estás em festejos e folguedos, mas desejo-o. Por ignorância dos teus humores limito-me a aspirar que te encontres de saúde e em alegria. Sonho então e digo: É com contentamento que oiço as notas piadas pelos bandos vindos do Sul. Não há calor como o do Verão nem mar mais enrolado além desse onde mergulhas sem remorsos. Desejo tudo isso para ti.
Ainda agora aqui estavas e por bem te querer estás sempre comigo.

Sol de fantasia

O meu Sol é como eu quiser e os seus raios têm fantasias. Brinco com a luz abrindo e fechando os olhos. Claro e escuro. Piruetas e padrões luminosos. Fogo distante, calor amigo e divina sabedoria. O Sol é como eu quiser e a sua luz reina em toda a parte. Não há recanto onde não chegue. Onde está faz volteios e maneirismos. A luz é como se quiser. Luz ogival, luz rococó, luz minimal. O meu Sol é como eu quiser.

quarta-feira, maio 17, 2006

Fantasma paranóico

Há fantasmas que vêem fantasmas em todo o lado e se pudessem ver-se assustavam-se mais. Por não terem corpo perderam o reflexo. Pobres coitados, esses fantasmas.
Há fantasmas que choram as suas amarras e não sabem que só eles as podem desprender. Esses têm medo da sua sombra e fogem velozes a olhar para trás. Têm tanto medo que só olham para trás e nem olham para a frente.
Há fantasmas tão cobardes que se agacham escondidos de todos quantos os enfrentam nos olhos e os podem desafiar.
Há fantasmas mesquinhos e que ligam às coisinhas pequeninas, sem querer saber da vista geral. Se o pormenor é como querem pouco importa se tudo o resto é diferente do que afirmam.
Há fantasmas que são tudo isto: paranóicos, falsos, cobardes, assustados consigo mesmos, lamuriosos e manipuladores. Cuidado, eles andam por aí! Espalham um fedor parecido com charme, mas com alguma atenção percebe-se sempre o seu choro de correntes arrastadas. Dizem mentiras como quem seduz. Perseguem as vítimas de forma doentia dando conselhos sorridentes. Parecem felizes, mas são tão doentes. Por favor, façam uma oração por eles. Eles andam por aí.

terça-feira, maio 16, 2006

Capitais

Haverá uma linha invisível que guie os sonhos das cidades mais bonitas? Os pensamentos soltam-se e vagueiam a uma velocidade impronunciável pela voz e inteligência da noção humana... juntam-se em bolas de luz de beleza sobre as cidades. Unidas por uma felicidade desenhada, as cidades dão-se em passos amados. Só as vêem quem as sabe ver. A dúvida é se haverá uma linha que guie os sonhos das cidades. Tudo o resto é real.

Limão

Não há fruta mais simpática nem talvez mais feliz. Amarelo, amarelo-claro, amarelo-clarinho, verde-forte. Chá verde. Chá com limão. Torta de limão. Uma tarde bem passada. Tarde de calor. Praia. Limonada fresca. Frescura na salada. Tarde de Inverno. Resfriado com tisana de casca de limão, sumo de limão e mel. Tremideira na pálpebra pelo ácido, arrepio e sorriso. Tardes bem passadas. Amarelos. Não há fruta mais simpática.

segunda-feira, maio 15, 2006

Que vitória foi essa?

Diz-me o que ganhaste com isso? Dum lado e do outro. Numa e noutra guerra. Em todas as guerras. Que estrondo fez a tua queda e quanto ou entesourou o vencedor com o sangue de tanta gente. Diz-me o que ganhaste com isso? Estás mais feliz com quem mataste a pesarem-te nas costas e diante dos olhos? Quanto vale uma bala, o que vale uma vida e o que significa um cigarro pró soldado? Doeu-te o tiro que levaste e cansaram-te as pernas e o sono? Sentiste perder a tua razão por teres perdido a guerra? Valeu a pena lutar? Se ganhaste não mudaste a cabeça de quem perdeu, dobraste e partiste, mas não mudaste a cabeça. Não sei se importa a justeza da luta quando se mata. Dum lado e do outro. Diz-me o que ganhaste com isso?

Tempos

Algumas areias não conhecem o mar e outras ondas não chegam à praia. Ondas curtas de areias revoltas. Ondas menores. Longe do mar há marés de areia. Vagas secas. Areia diagonal. À beira do mar escrevem-se poemas de amor para a água levar. Juras e promessas. Enquanto escreverem junto à água salgada não há lágrimas que os amantes derramem. São longos os beijos dados no tempo de maresia. Há amores que terminam como estouram as vagas nas rochas. Há ondas que não chegam à praia e areias revoltas longe do mar. Há corações a bater em uníssono sem nunca se encontrarem.

domingo, maio 14, 2006

A canção da Maria

Gostava de ter uma canção nossa, algo a que me pudesse agarrar e tivesse a cor do teu cabelo e a doçura dos teus olhos. Não temos uma canção. Não fizemos uma. Só partilhámos afectos. Não namorámos. Consumimos dias apaixonadamente. Os dias foram queimados como um cigarro, à velocidade do relâmpago e com a crueldade do incêndio. Há um ano éramos tão jovens e felizes. Clareiras na floresta, onde a luz solar vem pouco filtrada pelas folhas e piares dos pássaros. Não tenho nada teu a que me agarrar. Nem uma canção. Gosto do teu cabelo e da doçura dos teus olhos. Não me desculpes por me lembrar de ti todos os dias, condena-me por não ter uma canção tua, só nossa. Não tenho nada teu a que me agarrar. És feita de espuma e de fumo. Gosto do teu cabelo e culpo-me por há um ano só ter tido olhos para ti e não ter ouvido nada que a ti se colasse e agora me valesse. Gostava de ter uma canção nossa, tua.

sábado, maio 13, 2006

Orgasmos

É estúpido, mas esta imagem não se parece nada com um orgasmo! Por que espécie de analogia se compara o dito a fogo de artifício?
Os meus não são tão ruidosos e não aprecio partilhas de intimidade com a vizinhança nem com a criadagem. Manias! Quando me calharam estarolices tratei de controlar a menina tornando-me impotente: Se queria telefonia que ficasse em casa a ouvi-la! Barulhagem é na discoteca e o meu membro não agride ninguém para merecer destrato ruidoso.
Gosto de chinfim quietinho, com classe e sossego, no recato do quarto, coisa que se escute dentro das paredes da câmara e com o ouvido encostado à porta.
Quem foi que comparou o orgasmo a fogo de artifício? Imagine-se alguém a luzir no escuro ou atordoar gritando? Fogo sim, mas preso, quente e suado, jamais a estalar ou a queimar. Prefiro amores discretos.

A bomba e outras violências

Quando estou zangado, estou mesmo zangado. Nunca fico mais ou menos zangado. Ou se está zangado ou não se está zangado. Sou temperamental e colérico!
Já tentei convencer psiquiatras e psicanalistas para me atestarem o uso de metrelhadoras e granadas de mão, afiançando iniputabilidade. Contudo, ainda não fui convicente ou persistente o suficiente. Bem sei que a morte não leva a coisa nenhuma nem é um fim... mas as explosões podem aliviar muito, sobretudo se subtrairem os incómodos... não sei se me faço entender.
Por mim, há coisa que eram resolvidas à bomba... algumas greves, crenças, ortodoxias, teimas, mentiras, patranhas, gamanços, demagogias e outras parvoices sistemáticas. Alguns ditadores simpáticos deixariam de o ser... passariam só a ser simpáticos. Alguns povos conflituosos poderiam ser alcatroados com bombas e estava o problema resolvido. Ficava um país a menos e um jardim a mais, garantindo até, quem sabe, uma melhor biodiversidade.
Por mim, há coisas que se resolvem à bomba. O problema é que tenho eu tanto o direito de pensar e defender isto como o meu vizinho da frente ou o país do lado, o que é um aborrecimento. Isto das ditaduras e dos desmandos só da jeito quando se está do lado de cima. Pensando bem, é melhor guardar a bomba.

A vingança dum homem morto

Tens umas pernas lindas, uns olhos de encantar, um rosto que é tal qual um sei lá o quê e a voz do deleite de antes e durante aquilo que todos nós gostamos. Apaixono-me por ti a cada instante e cada vez mais, sempre que olho para ti. O teu corpo é um conjunto de pecado em forma de mulher e não sacia como água, mas como vinho fresco... bebe-se por gula e veterania, jamais por necessidade.
Apaixono-me por ti até conhecer alguém, outro alguém tão desejosamente belo, que me faça querer aquilo que quero contigo agora. Não, não tenho qualquer tipo de respeito por mim nem pelos meus sentimentos e desconheço quem sejas. Estou somente apaixonado por ti, por esse teu corpo e olhar em deleite... ai se pudesse ir aí!... Perdia-me e não sei que mais perdições haveria de ver!... Faria amor contigo como um desvairado, como um possesso que te satisfaz, mas também como alguém que quase vinga todos os homens que se perderam de amores pelas belas mulheres que não os souberam amar!... Desgraçava-me, antes de me fartar, vestir e ir embora. Desculpa, mas sou mesmo assim!

Sim, sou um drácula

Sou um vadio! Não tenho coração e o que tenho não tem ninguém. Julgo que nem bate. Vivo sozinho e para mim. Os outros servem-me, porque alimentam-me. Não há diferença entre mim e um vampiro! As pessoas servem-me e delas tiro proveito e pouco me importa o que pensam ou sentem. Sinto-me bem quando as tenho e manipulo. Tiro-lhes vida... tiro-lhes tempo e atenção, que é a mesma coisa... ou é uma forma mais moderna e polida de lhes tirar vida ou sangue. Sim, sou um vampiro! E pouco me importa que me achem simpático. Apenas uso a simpatia como um isco para caçar a atenção com que me alimento. Tudo o resto pouco me importa. Sou um poço de egoismo e de egocentrismo. Sou um drácula educado, mas não deixo de ser um drácula.

Quem me dera

Quem me dera ser anjo e saltar para poder ser homem! Quem me dera ser homem e tornar-me anjo!... não pulando, porque ninguém cresce a pular. Quem me dera não ser tão pequenino!... Quem me dera ser pequenino e ter colinho! Ai, quem me dera ser anjo!

sexta-feira, maio 12, 2006

Anda cá!...

Há um sono e um frenesim por aqui!... Se me aparecesse um bolo de iogurte pela frente despedaçava-o à bruta, comia-o com a boca e pouca ajuda das mãos, como um alarve, como um monstro. Divertido. Anda cá, faço-te o mesmo com beijinhos e mimos, abraços e festinhas. Ainda me lembro como é. Sei onde tens cócegas e onde gostas que te conte segredos. Se me aparecesse um bolo de iogurte pela frente, ou outro bolo fofo, comia-o satisfeito feito alarve feliz e rir-me-ia muito para escândalo de quem visse. Sei que irias detestar ver. Por isso teria de te recompensar com mais miminhos. Sei que sabes que sou um monstro. Divertido! Anda cá!...

Mapa mundi

Ando há anos a desenhar um mapa-mundo. Não tem nada a ver com a Terra, mas tem tudo a ver com o mundo. Nele há continentes e montanhas e rios que, por vezes, parecem desafiar a gravidade. Ando há anos nisto... Gosto de moldar-lhe as formas e das desenhar no papel, de pintar os mares a azul e de fazer riscos da mesma cor a simbolizar os rios. Se bem que as texturas da natureza são belas e variadas, o que me dá mais prazer é traçar descontinuo e pintar a cheio as nações, e nelas salpicar pontos de vermelho-escuro ou de negro: as cidades. Quando acho pronto o meu mapa-mundi disperso alfinetes coloridos a fingir de exércitos e brinco às guerras e anexações. Canso-me depressa e vejo as imperfeições do meu mapa e das suas nações. É motivo suficiente de enfado e ânimo para desenhar outro. Ando nisto há anos.

Torreira

Quando está calor apetece-me uma pinga de água. Se o Sol escalda e arrepanha a pele, apetece-me senti-la regar-me. Gosto de tirá-la dum poço, porque a profundidade, a escuridão e a pedra fazem-na fresca. Não há nada melhor do que água. Nem mais franco e aberto.
O Sol não queima a água e quanto muito fá-la voar, mas nunca a dos poços. Essa é sempre fresca e não fosse o abandono e a estupidez estaria sempre viva.
Contaram-me dum homem que adormecia à sesta deitado numa sombra sobre o gargalo dum poço. Não tinha medo de cair. Um dia tombou mesmo, mas salvou-se. Não foi por isso nem por estar bêbedo que a água ficou pior. Difícil foi tirá-lo de lá. Contaram-me.
Quando está Sol só apetece uma pinga de água. Não há bebida mais franca. Tomara fosse tudo tão simples na vida.

quinta-feira, maio 11, 2006

Exotismo das ilhas

Outro dia bebi um vinho exótico. Bebi-o com muita amizade e sem preconceito. Preconceito, pergunta-se. Pois que sentido faria beber um vinho do qual se desconfia? Para mais com muita amizade a envolve-lo... O melhor é narrar a estória com todos os tintins e pontos nos is, para que se perceba o que quero contar.
Em Janeiro, mês de muita chuva, celebrei aniversário em folguedo com muitos amigos. Um dos presentes na festa ofereceu-me uma garrafa de vinho raro por estas bandas: uma garrafa de vinho feito na ilha do Fogo, em Cabo Verde. Desconhecia que se fazia vinho em tal latitude... mas faz.
Reconheço que desconfiei da qualidade da bebida por puro preconceito continental. Um vinho africano, sem ser da África do Sul, é coisa suspeita, além do mais nascido das uvas de cepas enterradas nas encostas vulcânicas da ilha do Fogo!... Porém, fiquei muito feliz com o exotismo e até curioso com o vinho, que antevi mais próximo dum elixir do que dum néctar.
Mais tarde propus à ofertante um jantar em que a goelas se refrescassem naquele tinto do Fogo. Contudo, o preconceito dela foi maior do que imaginei e escutei um «Deus me livre» desistente. Conformei-me com a resposta e triste fiquei a pensar como iria vencer o preconceito étnico-vínico para poder servir a beberagem.
Num jantar na semana passada, entre uns torresmos e um vinho alentejanos, calhou em conversa o tema dos territórios e dos seus sabores. Veio, então, à lida o dito vinho que não tem outro nome que não Vinho Tinto do Fogo. Vi nos olhos da Inês e do Paulo um brilho tão bonito e logo os desafiei para desarrolhar a garrafa o mais breve possível. Mas haveria de ser com quê? Com uns feijões adubados, disse ele, explicando-me que é um prato típico alentejano, uma feijoada campesina com calda onde se escalfam uns ovos para acompanhar. Assim foi e aconteceu logo no dia seguinte o manjar regado com o vinho do Fogo.
Desarrolhada a garrafa veio uma surpresa assustadora. Disse-me a Inês que os vinhos não têm cheiro, têm aroma, mas este tem cheiro. E que cheiro! Nada mais, nada menos, do que a loja de cabedais do Norte de África misturado com flores velhas, lá mais ao fundo. Aquele soco no nariz quase dá para desistir de beber. O contra-rótulo bem avisava, suavemente, que tinha um aroma peculiar... um eufemismo, uma verdadeira nota de humor.
No entanto, na boca, o vinho é tão macio, aveludado e quase elegante. Apetece tê-lo e apreciá-lo com calma. O problema é mesmo dissociar o aroma do paladar. O drama é aproximar o copo e sentir a agressão do cheiro, que a Inês, sem pudor nem travão, qualificou brutalmente de cheiro a sujo ou a suor entranhado. Disse ela, com sabedoria, que é para beber três dias depois de aberto. Talvez seja. Exotismos. Por mim, apesar de tudo, quero repetir.

Estranheza

A solidão é uma cena estranha: há quem diga querer ter grandes amigos e os recuse quando estes se aproximam e os trate mal e os renegue e os trate com brusquidão e use da ingratidão e tenha falta de memória. A solidão é estranha e leva à actos insensatos. A solidão resfria e torna estúpidas pessoas muito inteligentes.

quarta-feira, maio 10, 2006

Xadrez

Andar a brincar ao xadrez. Saltar as casas brancas. Saltar as casas pretas. Como-te a torre, ameaças-me com o cavalo ou com o bispo. - Xeque!
- Ai!... Que me morro... Ai! Que me matas! Quem és tu?
Andar a brincar ao xadrez e largar enigmas num tabuleiro de ébano e marfim à espera de decifração é um jogo maldoso. Quem és tu?
- Xeque!
- Mas não é mate. Tenho escapatória. Não sei se quero. Quero saber. Diz-me. Diz-me quem és. Deixa mais um recado no tabuleiro. Queres que jogue o teu jogo e eu jogo. Jogo, embora deteste charadas. Faço-te essa vontade, porque este meu lugar é público. Aqui dou-me. Se sou de todos, sou de ti também. Vamos jogar. Diz-me quem és.
- Xeque.
- Fujo com o Rei e posso ainda tapá-lo com muitas pedras. É esse o meu segredo. Nem tudo o que se vê no meu tabuleiro é meu e nem é o meu jogo. Xeque, dizes tu. Não estou a jogar xadrez. Jogo poker. Vá, jogo o teu jogo: diz-me quem és.

O corredor

Nunca mais chega o momento em que me possa deitar. Os passos pesam-me e sinto as pálpebras salgadas. É isto desde que me levantei, já ontem foi assim, anteontem também e acontece há já mais de três meses, quatro meses, mais. A cabeça pensa com intervalos, momentos em claro, raciocínios vagos, confusões e imprecisões. Preciso duma cama.
Hoje acordei cansado e não tenho feito muito mais coisas do que estar cansado. Entre o trabalho e a exaustão sobra algum tempo para o lamento. Há tanta coisa para lamuriar quando é tempo de tristeza. Preciso de me deitar e adormecer sem ter de acordar ou de me alimentar. Não é a morte a minha busca, apena o descanso. Até ía de férias, se pudesse... ía por todo tempo que me deixasse sossegado, entre o tédio do ócio e a preocupação metálica. Não posso ir. Este ano não vou. No ano passado fui sem ir. Não se vai de férias com a trela do dinheiro a esganar na partida ou com este já findo. Não vou e estafo-me mais. Preciso duma cama, pede-me o corpo e a cabeça.
Esta noite não dormi. Outra vez sem dormir. Anda a acontecer. Os assaltos dão-se muitas vezes, mas nem sempre para não me habituar às vigílias, para a tortura ser mais eficaz. Esta noite voltei a não dormir e não sei quando começou a não acontecer o sono. A ansiedade assume-se como um exército revoltoso a tomar uma cidade. Acontece pela mesma razão por que não posso ir de férias.
Preciso duma cama. Estou de maneira que preciso de duas camas. A minha vida desenrola-se num longo corredor circular com portas desacertadas à esquerda e à direita. Na teoria posso entrar em qualquer uma, mas limito-me a andar à volta sempre no mesmo sentido e sem mais sentido nenhum. Por vezes passo portadas mais largas, centrais, como se passasse para outro lugar. Mas é um engano, nunca saio da casa e do seu corredor circular, com uma luz feia que vem do tecto e uma outra variável vinda de fora, de janelas com vista para lado nenhum. São sempre as portas à esquerda e à direita. Em alguns momentos tenho um reflexo, um impulso, e abro uma: dá para um quarto vazio... ou então abro sempre a mesma. Ando às voltas e já não distingo as cores com a exaustão. No corredor não se dorme nem se brinca, anda-se à volta e escolhem-se portas para entrar. Às vezes abro, mas nunca entro, por não haver dentro da câmara uma cama para me deitar. Continuo às voltas.

Dormir

Hoje era capaz de adormecer no mar com o Sol a bater-me na cara, embalado pelo suave mar chão. Era capaz de só acordar com o luar e o seu cinzento alto marítimo. Era capaz de ir parar à América ou a África ou a lado nengum. Era capaz de ficar no meu do Atlântico para amanhã voltar a adormecer embalado na toada sonolenta das vagas e com o Sol a bater-me na cara.

Aqueles dias

Há dias em que me apetece abraçar os amigos e adormecer com a cabeça no colo de alguém. Infelizmente não amo. Gostava de amar. Há dias de estranha ternura onde o afecto quer sair e expressar-se livremente: desatar aos beijos e aos abraços a quem gosto, pedir desculpa pelos gestos menos bonitos tidos, perdoar sem restrições nem condições e espalhar sorrisos. Esses são dias de calma felicidade. Não deixam de ser estranhos. Porém, estranhos são os outros dias, os dias das agressões.

terça-feira, maio 09, 2006

Gozos

Gostava de gozar com o destino. Mas não o faço, porque sei que quem faz o meu destino sou eu. Acabaria sempre por gozar comigo.

O que não entendo

Há coisas que não percebo. E o que não entendo consegue deixar-me um nadinha irritado. Confesso. Confesso que me irrito um pouquinho. Mas o que hei-de fazer? Complica-me cá dentro.
Leio por aqui umas coisas sobre as minhas palavrinhas e não percebo. Não sei se não me compreendem ou se não sei ler o que me querem dizer. As minhas palavras vêm desvendadas e as outras estão tantas vezes com véus anónimos ou tapadas com pseudónimos, desconhecidos e conhecidos. O que mais me intriga são as palavras que deixam e não entendo. Nunca fui grande coisa com charadas e dou comigo a matutar na batida das letras, no ritmo das frases e nos conselhos deixados. Há enigmas por desvendar e muitos rostos tapados por véus. Não desgosto de ninguém, nem me parece mal o que me dizem, apenas há coisas que não entendo.
Com as minhas palavras dispo-me como quero. Nas palavras dos outros sou um boneco e podem despojar-me de tudo como entenderem. Não sei das palavras dos outros. Nelas até me podem pôr outro corpo e nova nudez, mantendo apenas o meu rosto. Talvez não por mal, supondo até que me despem apenas por num relance me terem visto nu. Não faz mal. Gosto que me comentem e agradeço, mesmo que não entenda tudo o que sobre mim escrevem. Por favor continuem a comentar e muito, é só um desabafo!