digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

quinta-feira, maio 11, 2006

Exotismo das ilhas

Outro dia bebi um vinho exótico. Bebi-o com muita amizade e sem preconceito. Preconceito, pergunta-se. Pois que sentido faria beber um vinho do qual se desconfia? Para mais com muita amizade a envolve-lo... O melhor é narrar a estória com todos os tintins e pontos nos is, para que se perceba o que quero contar.
Em Janeiro, mês de muita chuva, celebrei aniversário em folguedo com muitos amigos. Um dos presentes na festa ofereceu-me uma garrafa de vinho raro por estas bandas: uma garrafa de vinho feito na ilha do Fogo, em Cabo Verde. Desconhecia que se fazia vinho em tal latitude... mas faz.
Reconheço que desconfiei da qualidade da bebida por puro preconceito continental. Um vinho africano, sem ser da África do Sul, é coisa suspeita, além do mais nascido das uvas de cepas enterradas nas encostas vulcânicas da ilha do Fogo!... Porém, fiquei muito feliz com o exotismo e até curioso com o vinho, que antevi mais próximo dum elixir do que dum néctar.
Mais tarde propus à ofertante um jantar em que a goelas se refrescassem naquele tinto do Fogo. Contudo, o preconceito dela foi maior do que imaginei e escutei um «Deus me livre» desistente. Conformei-me com a resposta e triste fiquei a pensar como iria vencer o preconceito étnico-vínico para poder servir a beberagem.
Num jantar na semana passada, entre uns torresmos e um vinho alentejanos, calhou em conversa o tema dos territórios e dos seus sabores. Veio, então, à lida o dito vinho que não tem outro nome que não Vinho Tinto do Fogo. Vi nos olhos da Inês e do Paulo um brilho tão bonito e logo os desafiei para desarrolhar a garrafa o mais breve possível. Mas haveria de ser com quê? Com uns feijões adubados, disse ele, explicando-me que é um prato típico alentejano, uma feijoada campesina com calda onde se escalfam uns ovos para acompanhar. Assim foi e aconteceu logo no dia seguinte o manjar regado com o vinho do Fogo.
Desarrolhada a garrafa veio uma surpresa assustadora. Disse-me a Inês que os vinhos não têm cheiro, têm aroma, mas este tem cheiro. E que cheiro! Nada mais, nada menos, do que a loja de cabedais do Norte de África misturado com flores velhas, lá mais ao fundo. Aquele soco no nariz quase dá para desistir de beber. O contra-rótulo bem avisava, suavemente, que tinha um aroma peculiar... um eufemismo, uma verdadeira nota de humor.
No entanto, na boca, o vinho é tão macio, aveludado e quase elegante. Apetece tê-lo e apreciá-lo com calma. O problema é mesmo dissociar o aroma do paladar. O drama é aproximar o copo e sentir a agressão do cheiro, que a Inês, sem pudor nem travão, qualificou brutalmente de cheiro a sujo ou a suor entranhado. Disse ela, com sabedoria, que é para beber três dias depois de aberto. Talvez seja. Exotismos. Por mim, apesar de tudo, quero repetir.

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