digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

domingo, fevereiro 25, 2007

Erudição médica

A depressão é uma dor ligeira que se apodera das pernas e as impede de caminhar. Esta doença fornece vida própria aos membros inferiores, mas retira-lhes a autonomia simultaneamente.

A cidade












Tenho a vida toda na rua. A minha vida não é a rua. Não me faço de tijolos e alcatrão e vidro. A tinta das paredes serve-me de papel e de assinatura e de pastel. Sou da cidade. Pertenço à cidade como os bancos, semáforos, mercados, autocarros, gares ferroviárias, metropolitano, engarrafamentos, acidentes, rádios, anonimato, polícias, plantas de localização, jornais, sida, táxis, antenas, portos, telhados, discussões e jardins. Só há jardins nas cidades, porque no campo há o campo.
Porque sou da cidade só posso viver na cidade? Como a mulher fidelíssima! Como sou da cidade, que amo devotamente, posso viver até no campo. Posso amar a cidade, amando-a à distância breve e próxima. Não muito longe nem muito distante, por causa do sofrimento. É na cidade que danço e amo. Tenho a vida toda na rua. A minha vida não é a rua. E também não sou a cidade.

sábado, fevereiro 24, 2007

Amor sem memória

Ninguém escreveu o nosso amor e, por isso, nasceu imprevisto. Amontanhou-se de trás da transgressão com a naturalidade de todos os sorrisos e terminou na colisão de dois TGV desabridos.
Do nosso amor não veio luz ao mundo nem Deus o iluminou com o seu olhar nem o amparou com a mão. Até o Diabo o ignorou, sem desdém.
Enquanto viveu, viveu livre, o nosso amor, só nos tendo aos dois como limite e balizas, até ao dia do embate dos combóios. Dos escombros não restou sangue nem piedade para contar a sua história.

Vivência

Vivo com os meus pais em casas separadas.

Insolação

Está um Sol capaz de me matar.

S.O.S. inútil

Há um petroleiro acostado no cais e não é por isso que o Tejo se sente mais sujo.

sexta-feira, fevereiro 23, 2007

Sedução


Fiz a rua abaixo por tua causa. Desci-a por um sorriso e agora olhas-me com o mesmo susto das minhas gatas quando fumo um cachimbo. Não me digas que não fico sedutor depois dum tinto de calibre profundo e aroma nobre...
Tenho as mãos mais macias da metrópole e a voz de quem sabe e pensa, mas, acima de tudo, desci a rua por tua causa. Não me digas que resistes ao meu sorriso...

quinta-feira, fevereiro 22, 2007

Cruz

Desconheço a cruz e passava sem ela. Não vejo a que carrego, sinto-a. Amo-a? Quero-a! Quero? Tem de ser. Tem? Descarregá-la é uma fuga: Uma corrida para parte incerta, um voltar atrás para regressar ao mesmo.
Às vezes pergunto-me pela minha cruz, não sei dela. Depois, penso e penso e penso e descubro-a nas pequenas coisas. Reconheço-me mais vezes repousado no Calvário do que a carregá-la.
Às vezes nada me faz sentido e não vejo nem cruz nem Calvário nem caminho nem mundo nem nada onde pôr os pés. Só não largo a cruz, porque não a vejo nem sei como a largar. Como perder o que não se sabe que se tem? Às vezes nem a falta de sentido faz sentido.

Ingratidão

Não me me escutaste os olhos rasos de água. Não me me viste tristes, os olhos alegres. Fugiste cobardemente da minha dor, como sentisses mais sofrimento do que eu e o teu coração sangrasse mais do que o meu.
Não importa se estavas saciada quando saiste a meio da noite. Não importa, porque já não te lembravas de quando estiveste faminta. Esqueceste o alento, a comida e a água. A gratidão só importa enquanto existe memória.
A gratidão e a memória são loucuras passageiras. Assim são ainda a compaixão e o amor. Não me escutaste os olhos rasos de água nem os pensamentos desalinhados. Não viste o corpo encaracolado em silêncio. Não consolaste o corpo nu aos gritos. Não viste tristes, os olhos alegres.
Nas horas difíceis da solidão há ausências mesmo na multidão. Fica quem está e se dá de presente. Fica a gratidão de quem fica. A memória de quem está. A água de quem a dá de beber. Não me viste tristes, os olhos alegres.

Bom dia, bom dia

Por alguma razão não consigo parar de dar os bons dias. Faço-o repetidamente e de forma alegre, com um genuino sorriso e brilho no olhar. A serotonina corre feliz no meu cérebro e a dopamina também saltita... sei lá que outros químicos carburam livres e soltos na cabeça.
Bom dia! Bom dia! Bom dia! Bom dia! Bom dia! Bom dia! Bom dia! Bom dia!
Há sumo de laranja! Faz Sol! Chove a rodos! Tanto faz! Há contentamento no voos dos pássaros. É Inverno! É Primavera! Tanto faz!
Bom dia! Bom dia! Bom dia! Bom dia! Bom dia! Bom dia! Bom dia! Bom dia!
São amores novos! São amores antigos! São amores nenhuns! Tanto faz!
Bom dia! Bom dia! Bom dia! Bom dia! Bom dia! Bom dia! Bom dia! Bom dia!

A pandilha

Em mim há um remoinho que me puxa para a mesa. À volta amigos e galhofas, além de confidências e uma continuidade de travessas de bifes e garrafas de Vinho de Colares. Mesmo que fôssemos treze, sentariamos a superstição e ela jantaria connosco, mas ainda há o Sr. António que bem pode juntar-se a nós e aliviar os mais aflitos de alma. É difícil uma alegria assim tão simples!

quarta-feira, fevereiro 21, 2007

Uma surpresa de vinho

O vinho é um livro vivo. O que se bebe hoje é diferente do que poderia ter sido bebido há um ano e daquele idêntico guardado para daqui a uns anos. Quando só se tem uma garrafa apenas se conhece o vinho dum momento e não o vinho que nela vive, pois para isso seria preciso tê-lo bebido desde a sua infância e guardá-lo e bebê-lo a espaços até que se revelasse apenas senil, época em que se saberia ter passado para o outro mundo. Conhecer um vinho é tê-lo bebido muitas vezes e ter dele memórias.
Infelizmente, julgo não ter de nenhum vinho um vínculo que me permita ter essa perspectiva, mas uma garrafa que me trouxeram fez-me pensar: O que terá sido este vinho no ano em que saíu para a rua? Não arriscaria muito se apostasse como o terei bebido. Porém, à data não fazia apontamentos... infelicidades que agora lamento.
O que posso agora dizer deste vinho tinto? Que estava belíssimo, em boa forma e que bom prazer me deu. Muito elegante e macio. Para que se Saiba foi um Vila Santa de 1992, um vinho Regional Alentejano, de João Portugal Ramos.

Realezas

Nenhum monárquico ama um soberano usurpador nem auto-coroado, mas pode amar a arte que o torna divino aos olhos dos seus súbditos.

segunda-feira, fevereiro 19, 2007

Promessas

Ainda que fosses sozinha para o café não te tornarias visível a meus olhos. A tua frieza não te tornou sólida, antes esfumou-te. A insensibilidade é a maior estupidez das pessoas. Hoje não deposito margaridas nos teus seios nem te beijo as coxas.
Mas não! Não vais sozinha para o café nem te tornarás invisível a meus olhos. Porém, jamais te verei, porque não te quero ver. A tua frieza gerou a incandescência da minha raiva. A solidez da tua decisão é tão dura quanto a minha e não há espaço para ar pelo meio das duas. A insensibilidade é maior estupidez das pessoas. Não deposito margaridas nos teus seios nem te beijo as coxas.

sábado, fevereiro 17, 2007

A normalidade

A minha vida é duma completa normalidade. É tão absolutamente normal que é anormal alguém ter uma vida como a minha.

Nota: Este edifício, situado em Praga e abaixo catalogado como Dancing House, é conhecido também como Ginger e Fred.

Afecto quadrúpede

Uma noite sem as gatas e são oito horas de sono de solidão e tristeza.

quinta-feira, fevereiro 15, 2007

Facto desconcertante

Estou confuso: as pessoas cá de casa insistem em andar de quatro e em miar...

Evidência eclipsada

A espera é tão inquietante que duvido da minha própria natureza. A impaciência faz esquecer que por mais negro que seja o momento, a alma duma ovelha negra é igual à das alvas... e nunca será igual à dum lobo.

Uma infeliz certeza

Conceptualmente sou perfeito. Em teoria não há em mim vislumbre de rugosidade ou imperfeição. As experiências práticas e o quotidiano demonstram lamentáveis fragilidades e deficiências.

Uma agradável certeza

Não há limite para o disparate!

Nota: Disparate no sentido bonito, no sentido de criatividade e imaginação. A ilustração chama-se «O monstro a fazer o Hamlet»

Vontades

Às vezes apetece-me andar à pancada com Deus!

terça-feira, fevereiro 13, 2007

À espera do amor

Só espero mais seis minutos pelo amor da minha vida. Se até lá não aparecer vou-me embora sem o conhecer e fico viúvo para sempre.

A abominável

Fórmulas matemáticas em poliuretano. Projecções estatísticas em latex. Construções de equações em PVC. Não aguento mais a maldita matemática! Há um gás que não me deixa respirar. Sinto os anéis duma serpente constritora a apertarem-me o corpo. Estou encadeado pela luz opressiva de faróis potentes. Tentam levar-me a personalidade lavando-me o cérebro, fazendo-me crer que o quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos catetos. Não sei fazer contas com fracções, mas sinto-as a subtrairem-me minutos de vida. Quando sinto a sua presença fico com demência mórbida. As minhas contas obecem a mistérios numéricos, oiço-as sussurrarem coisas no género: k=\frac{1}{1+rate}...
Porém sei, que além de toda a bestialidade da matemática há a poesia, a arte e a alegria. Ainda que saiba que é uma doença que vive em tudo, fito-a nos olhos e não a desafio. Sorrio-lhe e volto-lhe as costas. Sou muito feliz sem ela. Hoje e amanhã.

O direito à tristeza

A lancinante dor da existência. O mundo ordena que todos têm de ser felizes. Um enxame de gente voa em volta do deprimido ordenando-lhe que sorria. A felicidade é tão obrigatória quanto a proibição da chuva e do Inverno. Há sempre um enxame de envangelistas da alegria a querer escancarar a bocarra do deprimido para o fazer engolir uma dose de bem-estar. Mas há uma beleza no triste, que talvez só este entenda. Não haverá um direito à tristeza? Por que há-de a sociedade fazer da felicidade um estado totalitário?

O sítio perfeito

A felicidade está na areia da praia e no toque macio e húmido do momento da penetração. A felicidade é uma alegria simples: a língua que se enrola noutra língua, os olhos que se encadeiam e os racicínios das crianças... Não importa qual é a cor, mas o seu traço! Que importância tem o tempo, o que conta é a intensidade.
Tenho os pés na areia duma praia onde não vejo o mar. Faço amor com uma mulher sem rosto. Escuto a sabedoria intemporal duma criança que não conheço. Posso saudar a vida.
Há anos que vivo com a mesma pessoa. O mesmo amor mansinho. Há anos que amo sem cessar o tempo eterno do afecto. O prolongado beijo sem prazo. Ali à frente há azul ou cinzento: É uma praia. Faz-se amor no mar, abraçados a sorrir, saltitando com as ondas, a escutar o burburinho das risadas indiferentes das crianças a brincar no areal. É o Paraíso!

O sítio impossível

Não fui eu quem bebeu demasiado, mas a realidade que me minguou o corpo perante o álcool. Habito uma casa onde não partilho confidências, situada num bairro onde as intimidades não são as minhas e onde os gritos das pessoas me atravessam.
Não sou esta casa, apenas estou nela. Estou há uma eternidade à espera que se desfaça de mim, que me expulse. As gentes do prédio, da rua e do bairro são tão diferentes como venusianos. Por isso, embriago-me em todos os entardeceres para que, quando a luz fica parda, eu e todos os diferentes que aqui se intoxicam nos tornemos pardos e os nossos olhos tolerem este sítio medonho.
Não bebo demasiado, apenas medico-me contra a tristeza da vida para que a tolere. O relógio de pêndulo da sala ora está insuportavelmente activo, cansando com a sua batida, tanto certo como coxo, ora é totalmente mudo e inútil. Nas jarras estão adormecidamente mortas flores e as mesas estão cobertas por toalhas com nódoas de vinho que ninguém substitui. A casa não muda. Não troco com ela olhares nem palavras nem confidências. Ela nada me diz. É toda uma loucura donde quero sair, mas não me deixam.

A espera

Tenho confiança nestas quatro paredes e em ti. Tenho fé em Deus. Espero a Lua favorável e que as dores não me sejam insuportáveis. Peço noites calmas e amenas. Peço um bebé perfeito, que queres que seja rapaz. Para mim tanto faz. Só peço noites calmas e sem choros. Tenho fé em Deus e rezo muito para que haja saúde e abundância, felicidade a rodos. Tenho confiança em ti e uma calma quente para a espera.

A brincadeira

A serenidade do teu rosto é uma falsidade. Não digo que seja por mal, porque sei que não é. A serenidade do teu rosto é uma armadilha. Inocente? O que há de inocente nas brincadeiras de um felino? Tudo nele é mortal. Os teus olhos são os de um predador e o meu coração está já cativo, como se esses teus gomos fossem as patas potentes do predador e o meu músculo a desvalida gazela. Se me importo? Não, entrego-me deleitado... ao teu prazer e brincadeira, inocente?

Nota: Retrato de Maria Carolina de Boubon Duas-Sicílias, duquesa de Berry. Devido a tratarem-se de diferentes reproduções, as tonalidades não são as mesmas, sendo que parece claramente mais fiável a versão do pormenor.

segunda-feira, fevereiro 12, 2007

Longevidade

Só contigo sou feliz, porque só tu me compreendes os dias felizes. Quando numa feira tirámos um retrato juntos tivemos a prova de todas as nossas diferenças: eu sou homem e tu és mulher.
Antes de chegares à minha vida já te sabia. Conhecia-te doutros tempos, duma vida antes da vida. Antes de chegar à tua vida também me conhecias... do mesmo sítio. É por isso que ficamos tão bem juntos nos retratos e gostamos de passear sem ser de mãos dadas. Sei que não és a mulher da minha vida! És a pessoa das minhas vidas!

O limite de chuva

O limiar da chuva é a minha fronteira contigo. Aqui chove sempre e aí faz sempre Sol. Caminho a pé vestido com uma gabardina. Tenho várias: azul escura, cinzenta-clara e preta. Caminho com a cabeça à chuva ou protejo-a. Tu viajas de descapotável vermelho ou qualquer coisa no género.
Ambos vamos à praia... conhecemo-nos lá: chovia sobre mim e raiava um Sol esplendoroso em ti. Eu estava macilento e esverdeado. Tu, dourada e viçosa, sorrias. Um mesmo lugar e dois sítios distintos. Frente a frente não estamos diante um do outro, vemo-nos através ou à transparência.
Onde és concreta, sou fantasma. Onde existo, nunca estás. A chuva é a minha fronteira. Está sempre Sol em ti. Para ti a sombra é uma consequência da luz e nem imaginas uma vida escurecida, onde a sombra é a ilusão dum vulto, uma aparência difusa.
Exiges sorriso como se houvesse a obrigação da cor. Obrigas o estado sólido à água e desconheces que nessa situação fica gélida. Desconheces a ausência do som e a flutuação forçada, porque no teu lado da vida há sempre uma brisa fresca que alivia a dor.
A minha fronteira contigo é o limite da água. Passa um rio entre nós. Dum lado a vida e do outro um estado febril e doentio, que não é morte ou coisa alguma. Aqui chove e apenas isso. Aí está sempre Sol.

A aproximação e a queda

O pequeno gesto. O fio de ar pela mão, pelo dedo. A linha do olhar. A boca colada à pele. A multiplicação dos beijos. Uma colecção de pedrinhas. Um novelo de cabelos. O aroma da cama depois do sexo. Sumo de laranja. O esboço do sorriso. O riso. A cumplicidade. A diferença e a semelhança. A inteligência e a escuta. O alaranjado a ficar tórrido, vermelhão, escarlate, rubro... O amor em ebulição.
O grande gesto. A decisão. A omnipotência. A prepotência. A desistência. A punhalada. A discussão. As discussões. O cheiro enjoativo da cama. O cheiro repulsivo da cama. A insuportável presença do outro. As palavras como facas. As conversas obtusas e a surdez. O rubro da raiva, o roxo da asfixia, o azul da frieza, o verde da frigidez, o amarelado da separação.

A luz diferente

Abraço sem tempo à luz. Abraço sem luz nem tempo. Silêncio de afectos, espera de palavras, incerteza de espaço.
Uma luz diferente. Nítida diferença diante dos olhos. Olhos claros e sábios. Mãos certas no mundo. A forma duma cama. A forma do mundo. A forma do amor. A forma da amizade. A luz diferente diante dos olhos claros.
Um abraço sem tempo. O afecto adiado. A incerteza do tempo. Uma luz diferente diante dos olhos claros.

O tédio

Não tenho vontade nem coragem para ir nem para ficar. A normalidade é um tédio e não se pode viver fora do concreto.
Um dia vou a Londres. Um dia mostro fotografias da minha vizinha a passear o pato. Um dia volto a sair à em roupão. Um dia deixo de tomar banho. Um dia dou um tiro na cabeça e continuo vivo. Um dia compro um quadro muito caro. Um dia mudo-me para uma quinta com vinha.
Ou então vou a Londres. Não cumprimento a vizinha porque sou puritano. Só saio de casa bem trajado. Andarei sempre barbeado e lavado. Nunca darei um tiro na cabeça e prometo morrer um dia. Nunca comprarei arte. Viverei sempre num apartamento burguês ou no palácio da família.
Entre uma coisa e outra há coisa nenhuma. Não tenho coragem para ir nem para ficar. Talvez pudesse vestir-me de careto e montar-me num camelo na Segunda Circular. Talvez pudesse criar arte e vendê-la muito cara ou a preços acessíveis e democráticos. Talvez pudesse vender o palácio da família e comprar uma quinta com vinha. Entre uma coisa e outra, coisa nenhuma. Coisa nenhuma. Falta coragem para ir e mais ainjda para depois voltar se quisesse. A normalidade é um tédio.

sábado, fevereiro 10, 2007

Vida comigo a cavalo

A vida é pouco mais do que um instante e sempre repetida. Às vezes vai a galope, e tão depressa vai que parece estar parada.

Nota: O filme chama-se «Cavalo em movimento»

sexta-feira, fevereiro 09, 2007

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Aceitam-se salários para adopção.

Nota: Não, não gosto do realismo socialista.

Barafustão

O Barafustão é uma terra sempre em protesto.

Nota: Quadro «A Liberdade conduzindo o povo». O tema tratado no quadro não é propriamente o mesmo a que se refere este aforismo-trocadilho da minha autoria, apenas achei que esta era a imagem que melhor poderia ilustrar a ideia.

A maldição de Narciso

O encanto é como um espelho, quando se quebra nunca mais volta ao que era.

Minha mulher, meu amor

Eu, omnipotente, desconhecia-a. Espantei-me ao vê-la emergir sem ser criação minha. Eu vivia feliz sem ela. Elevou-se diante de mim e indiferente. Eu, omnipotente, curvei-me para a conhecer e encantei-me. A fragilidade dela tornou-se na minha fragilidade. O meu músculo másculo ergueu-se em sinal da minha fraqueza.
Muito mais do que carne. Muito mais do que objecto de desejo. Toda ela uma esfera: completa diante de mim, imperfeito. Muito mais do que meia Lua, ela mostrou-se todo o panteão de divindades pagãs, nas suas virtudes e defeitos, toda ela apaixonável. Muito mais do que Vénus. Eu, omnipotente, verifiquei-me impotente.
Toda ela uma esfera: completa diante de mim, imperfeito. Ela toda enigma e eu já sem certezas. Ela pragmática e espiritual. Eu sonhador e materialista. Aceitando-me as limitações e as parecenças, sabia-me comum. Tomando-a por idêntica tropecei na individualidade. Vislumbrando-a distinta notava-a completamente igual. Toda ela feminina.
Eu, impotente, amo-a. Ela é mais do que objecto de desejo. Toda uma esfera. Todo o panteão de divindades pagãs. Eu sou humano, omnipotente como todos os homens. Ela é divina e humana como todos os anjos.

Nota: Os homens não percebem nada de mulheres, porque talvez não haja nada para perceber nas mulheres. Cada uma é diferente da outra, sendo que todas talvez formem um padrão. Porém, a aplicação duma generalidade é obrigatoriamente desastrosa.

O retrato

Entre o que sou e o que gostaria de ter sido há um latifúndio de diferenças. Quando pergunto quem sou ao espelho não sei se oiço a verdade ou apenas o sussurro de quem julgo ser. Se questiono as paredes não sei se escuto o eco das minhas palavras ou se respostas verdadeiras das coisas. Dos outros não sei se tenho a verdade ou aparência dela ou torsos torcidos por bem e por mal.
O meu retrato é a visão do artista e é um momento. A fotografia é só um instante e um golpe de alma. O espelho é breve e nele estou com os meus olhos. Se me esculpirem um busto, o que poderei dizer? Que sou de alabastro? Frio e fixo num só jeito?
Sei que não sou quem gostaria de ser e muito menos quem gostaria de ter sido. Nos meus dias moldo mais do que o corpo. As minhas noites ocupo-as com insónias. As minhas manhãs são de sono profundo. A minha imagem é diferente da do espelho e da que sinto. Não sei para onde vou e muito menos para onde quero ir.

quinta-feira, fevereiro 08, 2007

A casa feliz

Tudo é luz. A janela está aberta e frente há todo um Tejo azul ou cinzento, sempre igual ao céu. A luz entra de duas maneiras: como uma recta, vinda de cima, ou como um triangulo com vértice na água. Toda a luz é livre de sair pela vidraça que serve de telhado.
Tudo é calor. As paredes de cores quentes são cobertores e fixam a temperatura do Sol e das palavras. A mesa posta está sempre à espera que a ela se sentem em fraternal satisfação. Flores e frutas insistem. Há uma cidade sob as janelas.
Não imagino outra casa que não esta nem outra cidade. O tempo não tem pressa e à conversa bebe-se Vinho de Colares ou Vinho de Bucelas. Há arroz de berbigão e pastéis de bacalhau ou iscas. Há sempre a luz do rio e do céu e a vista até além. A nostalgia é tão obrigatória quanto a felicidade das calçadas.

Luz de pedra

Emanação de vida, curva terrestre. A sete passos para dentro há um tempo de eterna madrugada: rocha cinza. A inteligência e a mão hábil: rocha azul. Terra-mãe, abraço de terna memória: rocha amarela. Um arbusto incandescente, uma levitação amorosa: rocha translúcida. Uma gravidez escondida, uma gravidez declarada: rocha rosa.

Nota: Vénus de Willendorf

quarta-feira, fevereiro 07, 2007

Caixa mágica

O perfume que tenho nas mãos é um corpo estranho, um prolongamento de lugares fora de mim. Hoje basta-me para casa uma caixa de vidro ou uma armação para arrumar toda a inquietação. Se olharem só me vêem o corpo, não a inquietação. Sem mim dentro, a estrutura espelha o meu permanente vazio e o sentimento de culpa. Dentro estou escondido.
Deitado ainda sobra espaço. Cabem os meus pensamentos, os olhares dos outros e este perfume imposto por estranhos a mim.
Deitado não serei objecto de adoração nem de comiseração nem de arte. Deitado estarei em casa, quem olhar verá a minha cozinha, o meu quarto, as minhas intimidades visíveis. Nada que nenhum tenha. Mas lá dentro estará toda a minha inquietação ou o espelho do meu vazio.

terça-feira, fevereiro 06, 2007

Nudez descoberta

A minha casa é o recipiente da minha nudez.
O meu silêncio expande-se e derrama-se. A minha cabeça transborda e a casa é o lago que o recolhe. As coisas são inexistentes, o silêncio esvazia tudo e nele afogo as horas e a solidão.
A porta da minha casa dá para dentro de mim. Passando-a tem-se acesso ao meu estômago, baço, fígado, cérebro e todas as vísceras. O meu amor passeia-se nu dentro de mim.
Tenho as janelas sempre abertas e as cortinas escancaradas, porque essa é a forma mais plena e certa de esconder as partes pudendas. Passeio-me nu pela casa, porque não tenho ninguém de quem me esconder. Todo o espaço basta-me. Nenhum espaço me é suficiente.

A construção do amor

O meu amor não acaba, está sempre em construção. O que sinto hoje é já diferente do que foi ontem. Gostava de te amar duma só maneira para que soubesses sempre com o que contar. Não posso. Não sei amar doutra forma que não diferentemente.
O meu amor por ti é de aumentar e sucumbe, ciclicamente, ao seu peso e dimensão para renascer dos escombros e edificar-se mais forte. Sempre diferente. Sempre novo. O passar do tempo dá espessura ao afecto. O amor torna-se num lugar de encontro, num lugar comum, comum aos dois. Num lugar sempre em construção.

Uma transcendência

O céu é indiferente tal como a ponta da seta. A carne não é a essência e o mistério da dor é uma transcendência. A paixão não é alegria e assim como o martírio tem beleza.
Onde estão os olhos? Por onde corre o sangue? Onde fica a dor? Fosse nosso o corpo... Fosse nosso o corpo e levá-lo-iamos para todo o sempre. O amor está na alma.
Antes da queda, a elevação. A oração mais alta. Há mistérios, haverá sempre. Até ao dia da compreensão.