digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.
quarta-feira, janeiro 31, 2007
A iminência do rio
Um rio de dúvidas. Uma noite de medos e a sombra arrastada até ao céu. Uma sede maior do que o rio.
Numa margem, a ignorância de si. A dúvida e a inconsciência da vida.
Noutra banda, a dúvida e a inconsciência da vida. Meia viagem até à outra margem. O disparo.
A decisão. O disparo. O drama. O alívio. A inconsciência da vida.
Meia viagem até esta margem. O trajecto forçado de volta. As dores: da prepotência e da impotência. Sempre o drama.
O rio está aqui. O rio está sempre aqui. As viagens sempre por fazer. As viagens têm de se fazer. Somos de viajar. Somos de ir e de voltar. Cada meia viagem é uma viagem adiada. Cada meia viagem são lágrimas. Somos de ir e voltar e o rio está sempre aqui.
Nota: Este quadro intitula-se «Man-dog» e não retrata o drama do aborto. Contudo, a sua poética ilustra com imagens as palavras que quis escrever sobre a interrupção voluntária da gravidez.
O sítio das maravilhas
No lugar dos livros e do pó havia quadros e uma ou duas armaduras, havia lustres, havia um casarão encaixotado ou abandonado e esquecido. Pelo arrastar do arco nas cordas do violoncelo vem uma memória cinzenta e um tempo parado.
O som do violoncelo da minha memória é mudo, porque no lugar das maravilhas o instrumento jazia fechado no seu sarcófago. O arrastar do arco nas cordas traz-me o sorriso da minha avó e o ar grave do meu avô. Lá dentro: A vista de cima para baixo pela janela de vidrinhos e a luz amarela fraquinha. Lá fora: a luz forte do Sol e a visão de baixo para cima. O telefone antigo e negro, como se fosse feito de carvão. O burburinho de tique-taques e pêndulos, o silêncio doutros relógios.
O sítio das maravilhas: A memória do sorriso da minha avó que não conhecia, a luz amarela fraquinha e o violoncelo em seu sarcófago.
Nota: Para que não se pense, a minha avó não é a senhora representada no retrato. A senhora retratada é a violoncelista portuense Guilhermina Stuggia e o quadro encontra-se na Tate Gallery, de Londres.
terça-feira, janeiro 30, 2007
Incompreensível luz
Não sei se as memórias são para perdurar ou para se apagarem.
Não vou dizer que te amo, porque não entendes. A vida é pesada. A vida foi pesada para o nosso amor.
Não me entendes que te ame e eu também não te sigo o raciocínio quando me explicas o caminho por onde queres seguir.
A vida foi pesada para o nosso amor. Eu, não sei se sobreviva.
Amores aos molhos
Não vivo só, em minha casa há sempre flores. Cada uma tem um nome, uma evocação.
Os dias são povoados por mil mulheres. Todas breves. Todas lindas. A cada uma, uma flor.
Os dias são de silêncio. Na minha cabeça, as vozes de todas as que amei. Até das que me desamaram e das que destratei. No escuro dos quartos e da minha alma não há memória das traições.
Os dias são de silêncio. Não há dias dias absolutamente felizes nem assumidamente tristes. Só nostalgia.
Os meus amores foram todos frágeis. Os meus amores foram todos pequeninos. E nem por isso foram belos. Faço molhos de pequeninos amores para que juntos pareçam que tive um grande amor.
sexta-feira, janeiro 26, 2007
Hálito fresco: sexo e coentros
Depois de teres estado intimamente em mim dás-me um beijo fresco. Escuto o fervilhar do cozinhado enquanto preguiço como todos os machos. Recebo feliz o beijo fresco e o hálito lavado pela menta. Quase que me excito tão repentinamente por ainda trazeres o peito ao léu e esse sorriso magnífico.
Pergunto se queres ajuda. Para quê, perguntas-me. Para quê, pergunto-te. Recebo-te feliz, quase erecto pelo teu peito pequenino estar a saltitar nu à minha frente. A tua pele está luzidia pelo sexo acabado de fazer. Os nossos olhos não o estão menos e os estômagos anseiam pela comida que dá sinal de vida na cozinha. Não há limite de tempo. É uma hora comprida, com princípio e sem fim.
O sexo pretérito é anúncio de que a intimidade e o afecto serão presente e que a hora será só uma, em muitas luzes. Voltas para a cozinha e fico saciado e feliz como todos os machos. Virá a comida antes de novas alegrias corporais.
Quem vê a nossa casa de fora só pressente: estores corridos e o vapor e o fumo a sairem da chaminé... talvez algum odor a sexo e a coentros.
quinta-feira, janeiro 25, 2007
Folhas de papel, folhas de tabaco
Um amor grande pode não ser absoluto. Romeu amou Julieta como esta o amou a ele, até ao êxtase e à imensidão. O limite foi o fim. Pode morrer-se de amor como de cancro do pulmão. Não consta que nenhum deles tenha fumado charutos.
Sancho Panza amava Don Quixote? Era seu escudeiro, carregava-lhe a vida, aturava-lhe a loucura, sonhava-lhe a fortuna e uma vida melhor. Nunca lhe deu a fumar um charuto.
Amor, desamor, intriga, traição e vingança... houve de tudo na vida de Edmond Dantes, conde de Montecristo. Nas linhas que narram todo o seu sofrimento não consta o do fumador nem o desejo de alguém por um charuto.
Que graça têm as folhas de tabaco enroladas? Tanta quanto um soco bem assente. Será essa a relação entre um murro e um charuto?
Há coisas quase imortais na vida, esquisitas, que gostam de se arrimar. Por interesse? Por genialidade? Tanto faz!
Aguarela perdida
No lago Lucerna fizemos amor nos botes, invisíveis a todos os olhos e todo o frio. As flores das margens enfeitaram-te o cabelo ondulados a imitar os corpos, o teu e o do espelho de água. O nosso amor durou uma temporada: cada um foi ao seu destino, esquecido de escrever postais de recordação do amor passageiro.
Nota: A Galeria Tate, de Londres, lançou um movimento para comprar a aquarela The Blue Rigi, de William Turner, e evitar que saia do Reino Unido. É interessante constatar dois aspectos: o apego que os britânicos e as suas instituições têm ao seu património cultural; e a diferente postura que têm face ao património cultural de outros povos, que mantém em seu poder, saqueado no tempo do poder colonial e hoje solicitado pelos Estados ao abrigo do seu direito ao passado, à história e à cultura.
terça-feira, janeiro 23, 2007
Pianista
Não sei que concerto era. Sei do piano e da respiração do pianista. E da respiração do piano. Música com carne. Não sei se é bom a música ter esta carnação toda. Não gostei do concerto por causa daquele respirar. Tocou-me fundo a humanidade. Não gostei.
Depois, às vezes, surgiam umas cordas... de um violoncelo ou dum contrabaixo. Não sei, o meu ouvido é mau, já o disse. Surgiam umas cordas arrastadas, como um sussurro. Repare-se como a palavra sussurro é uma onomatopeia... Porém, este sussurro não era. Este era um arfar. Doía ouvir aquelas cordas, como magoa escutar alguém com asma.
Hoje ouvi vozes. O que importa o concerto?! O que interessa quem compôs o quê?! Aquilo foi interpretação em grande nível, mesmo que eu não tenha gostado... ainda que eu desconheça quem tocou e respirou.
Nota: Foi entre as 19h10m e as 19h30m de hoje na Antena 2, estava eu no trânsito de Lisboa.
segunda-feira, janeiro 22, 2007
A espera
Um copo de whisky com gelo aquece-me nas mãos. Se soubesse esperar teria escolhido Cognac, para não ter pressa ou ansiedade. O pendulo do relógio bate-me cada vez com mais força na cabeça. O frio entra-me pelo corpo dentro, tal como o escuro que me cerca.
A visão desfoca-se por enamorada pelo whisky. Algum calor permanece, tal como o escuro que me cerca. O telefone não toca nem surge a tua silhueta atrás da bandeira da porta em vidro martelado. Se soubesse esperar estaria com um balão de Cognac na mão em vez deste balde baixo com três pedras de gelo a aquecer-se na minha palma. O pendulo do relógio distancia-se às vezes, mas regressa para me agredir a ansiedade.
Se soubesse esperar não teria à frente uma garrafa de scotch que esvaziarei até às primeiras horas da manhã. Vou adormecer à tua espera ou do teu telefonema. Quando aconteceres estarei a dormir ou ébrio ou duas coisas. Maldita ansiedade... e tu que não vens.
Igual
sábado, janeiro 20, 2007
Segredo
A minha carne é igual a toda a outra carne e os meus segredos são só meus, mas são feitos do mesmo material de todos os segredos. Apenas mostro o íntimo mostrável e o que não revelo não é mais belo nem mais feio nem diferente daquele que vê a luz do dia ou do de toda a gente.
Esta paisagem diz-me muito. Tem uma lembrança e uma memória. Ainda que contasse o segredo por detrás das árvores ninguém a entenderia, porque só os meus olhos, pulmões, fígado, cabeça, pernas e pénis e tudo o resto que é meu sabem e fazem parte do mesmo conhecimento.
Não há verdadeiramente segredos. Mas há segredos verdadeiros. Os meus estão comigo como os vossos estão convosco. Não é por se exporem que se dissipam na luz. Não é por se calarem que estão escondidos, em absoluto e definitivo.
Fiz amor nesta seara e beijei encostado junto a estas árvores. Pronto, contei. Já não é segredo? Importa dizer o nome dela? Não, não importa. Porque ficará sempre por explicar o sentimento. Não há palavras para os desenharem, nem memória eterna. Contudo, o que teriam de diferente dos gestos feitos noutros quartos com outras amantes? Que diferenças houve dessas tardes face às noites de amor doutros casais?
Posso contar toda a minha vida aqui, nunca se verá a minha intimidade. Todos os meus segredos estão desnudados e invisíveis, mas são palpáveis e banais...
quarta-feira, janeiro 17, 2007
Intervalo
Faltam rostos e sobram fantasmas. Lá fora tudo pode ser. Cá dentro acontece o que está dentro do dentro. Cá dentro espelha-se qualquer coisa parecida com uma alma.
Se não sair acaba-se por ficar encarcerado, como Narciso preso à sua imagem. Há uma teia de pensamentos e um vácuo de realidade. Um mar de questões e uma multidão de fantasmas.
A cadeira da cidade
A natureza não é para mim. Não gosto de bicharocos nem de ervas altas ou rasteiras. Não gosto de água ou vento ou céu. Só as vistas da cidade me completam.
Não gosto da chuva nem do vento, porque me despenteiam e desarrumam as esplanadas onde me sento. O vento não me leva as pernas e continuo cansado. Não me sento numa pedra nem num parapeito, nenhum deles tem vista para a cidade.
terça-feira, janeiro 16, 2007
Lobotomia
À noite sonho com o lago Baikal e com as neves eternas dos Kilimanjaro. Desço o Orinoco e penduro-me nas maravilhas edificadas da Europa. À noite sonho, porque os meus dias de glória terminaram. Dói-me o cérebro.
A vida custa-me e desejo uma nova ou então uma lobotomia. Parece que já não se fazem lobotomias. É lamentável! Há tanta coisa inútil que se faz e muitas mais hediondas que persistem!... Preciso só duma lobotomia ou qualquer coisa que me arranque esta dor ou esta vida.
A parte boa da vida é o sonho: o largo Baikal, as neves eternas, a corrente do Orinoco, o telhado da Catedral de Santo Estêvão, os geisers da Islândia, as árvores gigantes da América, os grandes felinos, as empadas, os vinhos e muitas outras coisas e fantasias.
A mim bastava-me uma lobotomia. Uma pluma, uma brisa...
segunda-feira, janeiro 15, 2007
Género friorento
Sonho feliz de luar
O aroma salgado da tua pele, profunda e misteriosa, cujos segredos e reentrâncias conheço, lembra-me o daquele mar nas noites de Verão, quando dançávamos amorosos e sem limites. Tu és tudo e o todo.
Confundes-te com o Verão e a memória feliz dos dias. Ainda que hoje as feições estejam diferentes, és a mesma menina feliz e sensual que me inquieta o corpo e assalta a respiração.
O sonho feliz tem-te sempre dançante, encostada a mim ou fintando-me, seduzindo-me. Tem-te com esse odor de mar e é sempre noite, é sempre a nossa noite de núpcias e há sempre a promessa de felicidade eterna. A vida não mente: fomos feitos um para o outro e nunca nos desiludimos. Nem mesmo em sonhos.
Cartas de amor
Tenho olhos que vêem além desta escuridão como se fossem os dum gato e não vislumbram outros amores que não os passados. Tenho cartas vazias prontas a enviar, mas faltam-me destinatárias.
O meu coração está, felizmente, em Edimburgo, imune a desaires e paixões. A minha alma vive em Colónia numa insónia indiferente. Só o meu corpo pode sofrer as amarguras da paixão. Os meus olhos não vêem e nada em mim sente. Tenho cartas vazias e continuo a escrever palavras de amor a mulheres incertas.
Vivo na escuridão e não diferencio os meus dedos do resto do meu corpo, apesar dos meus olhos de gato verem mais do que os de uma pessoa. Não se vê nada no sítio onde estou. Aqui há só negrume e amor nenhum pode medrar aqui. Ainda bem, porque não tenho comigo nem alma nem coração, só tristeza e solidão. Sou mais negro do que o breu que me rodeia.
domingo, janeiro 14, 2007
Sonâmbulo
Sei sempre os passos que dou vivo. Sei sempre os passos que dou morto. Não sei os passos que dou a dormir.
O meu corpo ganha vida. Tem vontade além da minha vontade e crença. O que posso fazer?
Tremem-me as mãos quando falo disto e envergonho-me do que não me lembro. Será que sou eu no tempo em que não me lembro? Não sei os passos que dou a dormir.
sábado, janeiro 13, 2007
Depois da caça
Chego a casa ébrio. Hoje é de vinho, poderia ter sido sangue. Chego a casa depois da caça.
Saio do corpo e vejo-me chegar a casa. Sempre ébrio. Sempre no limite da violência. Depois da caça. Saio do corpo ao deitar-me.
Saio do corpo e vejo-me como fui e sei como me desejei. Todos os dias chego ébrio e saio do corpo. Vejo-me depois da caça, ensanguentado de vinho ou de sangue. Todos os dias, depois da noite.
sexta-feira, janeiro 12, 2007
Vanitas
Na verdade, ainda vivo. E espero. Espero pelo baile e pelos convidados. Pelo menos, julgo-me respirar. Tenho a certeza da vida. A minha única certeza, a eternidade.
quinta-feira, janeiro 11, 2007
Pratos de pequeno porte
Enrolei tudo numa frigideira quente com pouco azeite, que depressa passou a emitir os aromas transformados.
Tenho prazer com os tachos, mesmo com pratos de pequeno porte. Ainda não sei fazer sopa... fiz só uma e correu bem.
Não sei onde a minha mãe guarda o encanto para fazer sopas tão comestíveis... tão deliciosamente comestíveis. O curioso é que a minha mãe não é dotada de mão de cozinheira... mas faz contentamentos de pequeno porte. A comida da minha mãe deve ter a ternura de todas as comidas de mãe, por isso é tão boa.
quarta-feira, janeiro 10, 2007
Intranquilidade
Só a noite traz uma certa calma, porque o sono deixa-me ir até à morte. Volto pela manhã ao corpo repousado na cama. Adormeço ansioso, desejoso que cada sono seja o último duma vida. Desiludo-me nos despertares e vejo toda a dor em mim. Sou cego de esperança. Não vejo além da parede, limite do desassossego.
Não tenho piedade de mim, tenho pena. Choro-me pela loucura, pela certeza das dores e cegueira de esperança.
Azul tardio
Os minutos vão curtos, levados pelo vento de gotícolas salgadas. Os minutos vão dolorosamente curtos, avivando as cores da vida, dizendo-me que vou baixar-me à terra antes do fim da noite.
Ainda ontem fui ao Bugio a pé e já é hoje pelo fim da tarde. O céu limpo é agora uma maravilha autoritária. Todos estes anos voaram leves com o vento e uns tantos mais irão escoar-se céleres. É uma agonia de vida, a vida.
terça-feira, janeiro 09, 2007
Fotocopiável
Nota: Pintura de Grant Wood, ilustração de Kris Lo Kascio e instalação de Larry Moss. Este quadro, intitulado «American Gothic», conta com inúmeras reinvenções, desde a substituição das duas figuras (a filha e o pai de Grant Wood) por negros, índios e até animais.
segunda-feira, janeiro 08, 2007
Deuses
domingo, janeiro 07, 2007
Declaração
sábado, janeiro 06, 2007
Potência
Estou cansado de amar. Não, não é da rotina do café da manhã ou dos acordares ou das despedidas diárias ou dos reencontros tardios ou dos jantares em silêncio ou das conversas banais ou das confidências ou dos segredos ou das festas ou das cedências ou das partilhas. Estou cansado de amar.
Não deixei de te amar. Amo-te cada vez mais. Sei que tu por mim darias o fígado e os dois rins. O que se passa então? Nada que envergonhe e ofenda... apenas uma sonolência por excesso de amor.
Sempre que fazemos amor disparo um jacto de vida contra ti e tu recebes-me com alegria e tanta ou mais vida. Além de nos conhecermos bem, os nossos corpos conhecem-se bem. Quando fazemos amor, os nossos corpos também fazem amor. É toda essa sintonia de amor que me cansa.
Já não sei se sou tu e se tu és eu. Amo-te como quero a minha própria vida. Sei de ti o mesmo que de mim. O teu sangue corre em mim e o meu no teu. Temos filhos com os nossos sangues e humores. Nada tenho para te dar já nem nada a receber. Só amor. Só ainda e mais amor. Estou muito cansado!
sexta-feira, janeiro 05, 2007
Amizade
E se por um momento eu ficasse calado com as mãos e me sentasse apenas a ouvir. Será que sei ouvir?Será que sei perdoar os erros dos outros? A amizade é uma coisa bonita e as palavras são para saborear.Se ao menos eu soubesse ficar com as mãos caladas... por uma só vez... e ficasse sentado a ouvir.
Burburinho
Nas minhas bodas só vou faltar eu... tal como no meu funeral. Tanto num como noutro, não faço lá falta, basta que lá esteja o meu corpo.
Agora que dizes o quanto me amas posso deixar de ouvir a música e levar-me pela toada das palavras. Já nada tem sentido, tudo é som. Ninguém se importa com o vinho entornado nem com a cabeça ébrica nem com a voz zombeteira nem com as orações. Nem importa o burburinho. Por mim fico-me com o amor dito pelos teus lábios, abafado pela pequena multidão sentada ao redor da comida e da mesa. Amas-me, é o que importa!
quinta-feira, janeiro 04, 2007
Caminhos divergentes
Ser e estar
A banalidade dos meus dias não se faz com os pés enterrados no barro vermelho. Não sei abraçar árvores, nunca repousei o corpo nos seus troncos e não as julgo mães.
Nota: Pintura de Mondrian.
Morte complicada
O suicídio dos meus dias não acontece por impossibilidade corpórea. É triste! Ainda que tivesse pescoço... o que me aconteceria? Morreria? Morre-se quando não se tem coração ou quando este ficou esquecido sob uma pedra ou escondido numa cidade mais a Norte?
Não sei se tenho mais dias à frente do que tenho para trás. Sei que a vida pertence-me, mas não o meu corpo. Não posso estragar nem acabar com ele. Preciso dele no dia-a-dia.
Vou parar de respirar a ver se morro... Das duas uma: ou desmaio e volto a respirar ou passo-me e continuo a viver. Posso cortar-me e esvair-me, tombar-me sem sentidos. Dirão que estou morto, mas continuarei vivo. Porque a maior injustiça da vida é não se poder morrer!
Cor impossível
Quero uma noite cor de noite para as minhas noites e um frio ventoso para que me enrole e aninhe. Não há paz nem sossego no estio.
Velo ansioso. Espero sinais luninosos e sonho de olhos abertos ao passar das estrelas candentes. Se ao mesnos as flores da minha árvore desabrochassem de noite... poderia acreditar na vida.
Quero uma cor impossível para os meus dias possíveis, na impaciência e na resignação. Se ao menos as flores da minha árvores desabrochassem diante de mim e os pássaros, felizes ou assustados, debandassem em voo... Se ao menos houvesse uma ventania de esperança em vez das ilusões e das dores... Se ao menos o céu tivesse uma cor impossível...
A cor das azeitonas
terça-feira, janeiro 02, 2007
Carta de mar
Não passo mais de sessenta segundos sem pensar em ti. Não passa um minuto em que o Verão não aporte trazendo lembranças dessas praias e dos frangos comidos depois de nos escaldarmos como lagartos. Por que é Inverno? Por que um Outono interrompeu os beijos? Não há um minuto que não traga o odor do iodo.
Quando terminar de escrever estas linhas terão passados os três minutos... seguirá pelo correio normal a encomenda do meu desejo e a declaração de todo o meu afecto. Não vai registada, para que não a possas recusar quando o carteiro te bater à porta. Vai chegar-te silenciosa à porta, talvez com dias de atraso... mas vai chegar. Sei que abres a caixa a dias espaçados... não tem prazo de validade, a oferta.
Os minutos passaram. A água do mar está no sobrescrito, com alguma areia, muito Sol e todas as memórias e afecto. Dentro de dois ou três dias estará na tua caixa de correio. Um dia abrirás e saberás a verdade. Podes entornar e recolher ou desperdiçar ou mergulhar novamente. A carta já segiu...
Queda
Cair da imaginação. Cair por misericórdia. Cair por decência. Cair na indisposição. Saturação dos dias. Infelicidade na felicidade quotidiana. Todos os tédios.
Cair de lado nenhum. Desconhecer o destino. Amarrotar o corpo. Esquecer a alma. Encontrar os outros, os esquecidos, os partidos, os desejados, os não-lembráveis. Cair, porque sim. Cair por cair.
Cair porque não se voa. Cair para fingir voar. Cair. Sonhar. Urinar nos lençóis. Gritar de voz calada. Cair. Embater no chão. Amarrotar a alma.
Teatro astrológico
Descobri astros espalhados no papel, trastes desajustados, adereços de teatro. Já se disse que tal é a vida. Não sei quando entrar nem por onde. Hoje acordei:
Manhã cínica de azul intermitente. Preguiça sem capricho. Dor de memória. Terei uma tarde indecisa e uma noite ansiosa.
Todo este peso... toda esta sofreguidão em viver e em sair da vida. Um pesadelo em que não se sabe se acordado ou dormente, se vivo ou se morto.
Está tudo escrito nos três horóscopos amarelecidos. Estava tudo previsto há muito. Sou o bobo da peça da vida.
O odor do palco vicia. O da pele, sacia. Vou ficando por aqui à espera dum final qualquer, duma revelação, agora que um ano acabou e outro está a ser encetado. Os dias não deram por nada. Está tudo escrito nos três horóscopos. A peça da vida.