Não há tristeza que me chegue pelo arrastar do arco nas cordas do violoncelo. Chega-me uma luz amarela fraquinha e uma visão do alto, do sítio das maravilhas. Chega-me o sorriso da minha avó, que não me lembro. Chega-me o sorriso do meu pai, que é igual ao dela. Chega-me a memória contaminada por proximidade ou simpatia do Vinho de Carcavelos. Chegam-me muitos tique-taques e muitos tique-taques parados.
No lugar dos livros e do pó havia quadros e uma ou duas armaduras, havia lustres, havia um casarão encaixotado ou abandonado e esquecido. Pelo arrastar do arco nas cordas do violoncelo vem uma memória cinzenta e um tempo parado.
O som do violoncelo da minha memória é mudo, porque no lugar das maravilhas o instrumento jazia fechado no seu sarcófago. O arrastar do arco nas cordas traz-me o sorriso da minha avó e o ar grave do meu avô. Lá dentro: A vista de cima para baixo pela janela de vidrinhos e a luz amarela fraquinha. Lá fora: a luz forte do Sol e a visão de baixo para cima. O telefone antigo e negro, como se fosse feito de carvão. O burburinho de tique-taques e pêndulos, o silêncio doutros relógios.
O sítio das maravilhas: A memória do sorriso da minha avó que não conhecia, a luz amarela fraquinha e o violoncelo em seu sarcófago.
Nota: Para que não se pense, a minha avó não é a senhora representada no retrato. A senhora retratada é a violoncelista portuense Guilhermina Stuggia e o quadro encontra-se na Tate Gallery, de Londres.
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