digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

quinta-feira, julho 30, 2015

Sossegadas

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Parem quietas, não vos consigo segurar.

E há uma igreja com a torre no lado errado

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O tanque grande não era piscina, o tractor verde segurava um vespeiro e não havia cavalos na cavalariça. Havia uma igreja que foi decepada. As maiores aranhas que vi, cor da palha do trigo, os louva-a-deus arrepiantes e as melhores laranjas – as pêras, as piores. Está o alpendre e recordações. Saudades da Lupi.
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Fotografias roubadas no blogue http://sai-tedaqui.blogspot.pt/
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Nota: aldeia de Santa Bárbara de Padrões.

Sem horas de voo

Quero quase tudo! Quero Nova Iorque em Lisboa. Deixo Paris, Londres e Roma. Deixo Edimburgo e Colónia. Que sejam isso, quero todas as avenidas e meio país como vizinho. Com Tejo e Bugio.Que retratos se fariam se tivessem a luz que Deus nos deu como privilégio.
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Fotografia de Corbis.
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Fotografia de James Leynse.
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Fotografia de Michel Setboun.
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Fotografia de Yoann Jezequel.

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Lá.
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Eu por cá. Fora da caverna mas com pouca luz. Não é só o Inferno que é fundo.
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Se não bastasse, os aviões passam depressa e os anjos invisíveis.
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Não há corda que chegue e subindo com dor nem esticando os braços num pulo os alcançaria.
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Lá e eu por cá.
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Nota: Irrita-me tanto a falta de respeito de tanta gente para com quem cria e vê além. Várias aparições na internet e ninguém foi capaz de escrever o nome de quem fotografou. Quem souber da autoria, por favor informe-me, de modo a poder colocar os créditos.

Melancolia pacata

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Onde estaria se na melancolia houvesse uma porta? Subindo à altura por degraus inventados e lá nadar sem ter pé. Depois como voador-planador. Não tocar, respirar contidamente e ir, sem me ter de pé. E ir. E ir sem descer.

Letra Q

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Quioto é uma palavra bonita.

O que beber com James Bond

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Depois de se terem conhecido na Praia da Terra Estreita, James Bond e uma enófila portuguesa, cuja identidade estou proibido de revelar, foram jantar a um recanto invisível nos guias de gastronomia.
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O agente britânico ouvira falar do sítio, mas… Acabados de chegar e de se sentarem, antes que alguma coisa viesse para a mesa, ela levantou-se da mesa para segredar ao escanção que servisse um determinado vinho, mas oculto.
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Voltou para a companhia de James Bond e pouco depois chegou o vinho. Provou-o ela e James Bond levantou ligeiramente o sobrolho, subindo um sorriso difícil só no lado direito do rosto – sinal de algum desagrado por não ser ele a sentenciar.
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Com o vinho no copo, perguntou-lhe:
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– Senhor Bond, é capaz de adivinhar que vinho é este?
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– Huumm… belas notas aromáticas, é um branco com evolução. Muito elegante…
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– O que me diz?...
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– Diria mil novecentos e noventa e oito… e esta frescura…
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– (…)
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– Bucellas Garrafeira 1998… certo?!
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– Estou impressionada…
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– Os diamantes são eternos.

quarta-feira, julho 29, 2015

Corneta-acústica

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– A casa é grande, mas a vizinha de baixo é muito surda. Ouve-se aqui a novela.
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– O quê?!
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– Muito surda.
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– Não percebo... o quê?!
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– Muito surda.
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– Ai, estou mesmo surda...
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– Muuuiiito suuurda!
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– Não consigo entender. Diz mais de vagar.
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– MUITO SURDA!
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– Ai, não consigo mesmo…
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– Oh! MUITO SURDA! MUITO SURDA!
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– Não é por gritares que vou ouvir… diz lá devagarinho para ver se entendo.
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– (…)
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– Ai, diz lá...
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– (Deus me dê paciência) (...)
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– Ai, Jesus. Diz lá. Tens de ter paciência comigo.
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– M-u-i-t-o s-u-r-d-a.
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– Quem é que é muito surda? Eu sou muito surda? Pois sou.
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– A minha vizinha de baixo.

Sabat

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Era domingo de manhã e não me esqueço de ter visto cinzas de lenha, algumas pepitas de carvão, tições agonizantes, pingos de sangue, pegadas de galinha e de cabra. Não tive medo, mas as saudades que se sentem antes de ter ou de ir. Quero a infância, troco por tudo o que sei e conheci.
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Nota: Não confundir o sabat das bruxas com o sabat judaico nem com o pagão europeu de génese céltica. Penso que a designação de sabat para assembleia de bruxas com Satanás deriva de prática de propaganda negra, de há séculos, praticada pelo clero católico romano contra a comunidade judaica e populações ainda ligadas ao paganismo. Em paralelo, pela liberdade de culto e de reunião, hoje podem os praticantes de paganismo europeu, de base céltica, realizar os seus sabats, em que assumem a pratica de magia, mas não de missas-negras, recusam qualquer relação com culto ao Diabo e não se vêem como inimigos do cristianismo. Todavia, há cultores do Demónio, cujas reuniões designam também por sabat. Pela acção do tempo, existe esta divergência de conceitos, resultando em três vocábulos homófonos e homógrafos. 

Meia-noite e gin tónico

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A meia-noite de Junho em Lisboa. As horas longas dos dias longos, as paisagens cálidas e o fogo para as sardinhas e os pimentos. A luz, os azuis e os brancos, sempre vento. No Verão os aviões aterram vindos de Sul. Meia-noite sem inveja donde se vêem as estrelas, mas umas saudades – como sentidas antes de chegar ou ter – duma piscina para se fazer o dito e sabido, com música e gin tónico.

Um dia para não falar de amor

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Dá-me um beijinho, estou piroso. Mas hoje não é dia para falar de amor, está calor para nhoqui-nhoqui, e sim desde que no final haja água gelada ou tisana fresca sem açúcar. A cidade vazia e luz por toda a parte – abre-se a janela e deixam-se os estores semifechados. Na sala abandonada ficou um disco de mantras e paus de incenso fumegando. Não se janta, porque é sede.
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Nota: Não sei que tipos são estes, digam-me se souberem, por favor. Por favor… e pelo amor da Santa.

Fazer Nova Iorque

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Não seria capaz de desenhar Nova Iorque recorrendo a outra coisa que não riscos – vi. Corre-se, o céu é riscado e gatafunha-se a relva de Central Park. Uma multidão de riscos atravessa as zebras e a cocaína e também o pudor. Num papel, amontoados e desconexos, bem vincados, os algarismos da sessão de NYSE e os de orgasmo ou impotência do Dow Jones e do NASDAQ 500. No final, o corretor fita melancolicamente os valores, mais velhos e escritos suavemente a encarnado, dos fechos de Londres, Frankfurt, Paris e Milão. Que se lixem – e até amanhã – os mercados asiáticos. Risca-se a lápis, no cartão reciclado da base dos copos dum bar, as cervejas bebidas como massagem. Nas conversas ninguém diz dos jactos que mudaram o mundo. Tudo diferente, até a quinta-feira negra de vinte e nove. Eram de riscos e orgulho. Com três riscos se desenham N e Y.

O que beber com Yanis Varoufakis

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Sentado a meia distância da mesa, escorregado numa cadeira torta, observo o jogo de damas que Yanis Varoufakis disputa consigo, levantando-se e sentando-se à vez, discorrendo dois monólogos como um diálogo. Num lado, fuma e cheira cocaína. No outro bebe compulsivamente absinto só com uma pedra de gelo. Olha-me e chega-se à janela e grita o segredo que me queria contar.

Fogo

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Dizer e persistir, esquecer persistentemente e não ignorar e nos remorsos dizer alto a promessa para que Deus oiça e o coração sossegue.

Terra

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O que se guarda entre dois e insuspeito de falha do óbvio.

Água

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Existirei ou sou um conjunto orgânico de somatório de afirmações – certezas, descrenças e ilusões – e uma confusão de afectos?

Ar

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O outro existe ou devo olhar o universo na solidão desamparada onde tudo é próximo que não se quer tocar?

domingo, julho 26, 2015

A arte e o Soviete Supremo

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Não, é demasiado bom para não ser naïf – um galicismo, por ter tanto de ternurento e tão pouco de ingénuo – que alcança o patético… Engano!
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O que ainda se guarda do academismo, patrioteirismo e serventilismo nos confins da antiga União Soviética. Não consegui encontrar o nome do autor, apenas que esteve entre as finalistas para uma exposição de Centro de Belas Artes da República de Basquíria, situado em Ufa.
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Oportuníssimo, o artista. A obra – não fora pintada a acrílico e ainda estaria em mutação oleosa – mostra ao mundo cinco chefes de Estado no Zen dum amanhã cantor.
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A querida Dilma Rousseff, a brasileira que desconhece e maltrata a língua portuguesa, sorri como nunca… o som das palavras cínico e cinismo lembra-me russo. Conjecturas infundadas.
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Narendra Modi e o ar bondoso de todos os chefes indianos. A calma, a serenidade, a bondade e tranquilidade…
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Um certo racismo na falta de espaço para o sul-africano Jacob Zuma, que sorri mal como numa fotografia de modelo sem fotogenia, acentuado pelo puxar do braço encolhido de Xi Jinping, com o olhar vazio e silencioso dos secretários-gerais do Partido Comunista Chinês.
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Ao centro, puxando pela China e pelo Brasil, deixando o indiano atrás sem espaço nem jeito para colocar as mãos, o russo Vladimir Putin. À frente, com pose de gelo militar e olhar de sedutor esclarecido.
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Pombinhas brancas esvoaçam em paz e alegria, dando vida ao compromisso pela fraternidade e o trabalho... um ícone naïf... 
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O soviético Vladimir Putin. Tudo aqui conta que o gigante euro-asiático tem as feridas quase saradas, não as lambe e lhe apetece afiar as garras.
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Na Ucrânia, nada de novo.
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Pode não ser uma obra-prima e obra de arte até pode ser também um exagero, mas conta muita coisa, como as peças dos grandes mestres.
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Nota 1: Se alguém conhecer o nome do autor desta obra que fará história, por favor informo-me para lhe atribuir o crédito nas referências.
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Nota 2: A exposição foi organizada no âmbito da reunião, de 8 e 9 de Julho, dos BRICS (sigla em inglês do grupo do Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), em Ufa.

Dança-se até depois de se apagarem as luzes

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Entre o ir e o como ir e o deixar ir e o deixar-me ficar. Quando se dança não se anda. Quando se tropeça não se dança. Andar aos tropeções, já muitas vezes. Os dentinhos e o coração, parti-os sempre.
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Quando não bate aqui é porque bate noutro lado ou para outro lado, o meu bate fraquinho, dorido de arritmia, não marca dança por cansado de desamor… mais fraco e mais fraco. Se ainda o oiço lamentando-se é porque ainda estou por ficar. Um dia fica pelo caminho.
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Matando-o devagarinho, com beijos e crueldades. Da surdez e dos olhos que batem, dos ouvidos falsos e da boca vingativa. Não importando se em dor ou de amor esforçado e tão cansado que.
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Numa rajada de pregos, abraçou-os a todo chorando. Perdição terem sido só verbos e seus sopros, guardados por chamas frias de gelo escaldante.
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O coração aconchegou-se, engoliu-os e um nó desceu pela goela. Perdição ter sido por dentro, e por não ser também corredio.
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Cansado de cansaços e no repouso, o rebuliço por qualquer coisa que se ouviu e começou por um pedido de desculpas.
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Não é amor. Não é. Amor não morde. Fica-se para se pouparem lenços de papel e finge-se mais um bocado, sabendo que adiante haverá um castigo, ainda que. E até possa que.
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Não é fita e avista-se:
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– The End.
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Não se acaba, adormeço antes do final palerma.
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Paragem cardiorrespiratória, dir-se-á do amor sem fôlego.
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A flor dos olhos vai perdendo a luz.
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E as pessoas morrem aos momentos.

De Istambul a Compostela

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Até Istambul sobrevoando as estrelas, por cima, por cima, e as constelações e as luzes da cidade, que reluziu ainda de ouro. Por cima, por cima, como o espírito liberto. Por cima do mundo e finalmente voando, e finalmente em recta, fora do peso, fora do redondo. E por cima.
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Por cima, quembaixo estão as dores das desilusões e só uma chegava. Grito a sorrir e sei que os da liberdade me amam e sem me ouvirem gritam:
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– Por cima! Por cima!
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– Por cima! Por cima!
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 Respondo-lhes como um cometa. Que os da liberdade são e os outros ficam e se deixam.
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Até Istambul, até ao Cairo. De Santiago a Compostela. De Miami a Cantão. De Belém a Lisboa.
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Por cima, por cima.
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– Quem me verá depois?
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– Diremos, mais uma estrela…
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Por cima, por cima. E que tão tarde se parte para onde nunca é cedo para se chegar.

Pior

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A pior forma de morrer é a que não permite morrer.

A culpa é sempre dos estúpidos

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Farto de gente estúpida e como a culpa não é de ninguém, que seja minha, pois poupo-me a prolongamentos e – já por previdente estupidez – assumi minha qualquer coisa que ainda. Como nunca basta, estúpido ninguém é, pois fique também. Não por adjectivo, por manifesta substância.
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Ou isso ou pregar pregos de aço na parede com a testa. Dói mais, mas passa-se a maluquinho. Toda a gente sabe que os malucos não têm culpa e o seu problema não é de estupidez.
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É claro que se fosse inteligente saberia que há formas de pregar pregos de aço na parede sem ser com a cabeça. Se fosse inteligente e tivesse literatura.
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E se fosse inteligente, nunca teria culpa. Há sempre um estúpido que salta de trás no borralho, como um coelho tolo, disponível para arcar.
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Se fosse inteligente e tivesse literatura.
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Fico então no dilema entre o ser e o pregar prego de aço com a cabeça.

O leão é o Rei da Selva

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Se as bestas não fossem os humanos e o leão seria o Rei da Selva.

sexta-feira, julho 24, 2015

Letra G

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Nota: Se alguém souber da autoria da fotografia, por favor informe-me. Se alguém souber da autoria da escultura, por favor anuncie-se ao mundo.

quinta-feira, julho 23, 2015

Letra G

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Nota: Se alguém souber da autoria desta fotografia, por favor informe-me. Se alguém souber o nome do gato, por favor anuncie-se ao mundo.

sexta-feira, julho 17, 2015

Escala dos escuros

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Suicídio, morte, ausência, preto, negrum, negro, negrume, desamor, solidão, telefone mudo, escuro, penumbra, lusco-fusco e sombra.

Da esperança à desilusão

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O dia já perdido e digo já porque nem o tentei tornar útil pois a derrota é em mim e as esperanças da infância e as vontades adolescentes e as estrelas da inicial maioridade passaram a fronteira com um sítio de cama-prisão no interior dum cubo de negrum fechado por fora e como já perdido o dia recolho-me aos aposentos donde fingi ter saído porque perdida vai a vida.
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Nota: Se alguém souber da autoria desta fotografia que me informe, de modo a citar a autoria.

Tragam-me vírgulas se quiserem porque como se me fizessem falta mas não pois prefiro a apneia

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Quem quiser vírgulas que as vá buscar que agora não posso respirar e digo tudo até o fôlego me deixar e depois calo-me porque ainda vou tendo pontos finais.

A sonolência da derrota e da desistência e da inteligência indigente e da ilusão e a da tristeza e do erro que me sentencio e que só deitado sei esperar porque o todo já dito

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Estúpido porque não escrevo para estúpidos e os outros são poucos e com pouca paciência e muitas vezes distraídos e muitas vezes míopes e muitas vezes erram e talvez me julgue mal e afinal talvez escreva para estúpidos e só eu me entendo porque uns são estúpidos e outros sabem-me inútil.

Pergunta sem resposta, sem fim

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Como deixar de mim porque em novelo desastrado me tornei e se em novelo desastrado me tornei. 

Na fronteira sem documentos

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Incompleto porque não deixo. Completo na razão e vazio no coração. Quase vazio por birra. Completo e a teimosa dúvida. Incompleto por zanga, pela obrigação da teimosa dívida. Incompleto porque olhos de olhar negro. Completo porque há azul e raro o vejo. Incompleto por imemória e esquecimento. Frio na fé porque a dívida. Vazio na escuridão vai para onde levarem e de negro e se vê o negro. O coração vazio, a índole desilusória, o carácter fraco, a consciência com vergonha, a derrota na boca, a alma transtornada, o pensamento estúpido, a acção depois do cálculo – o pensamento estúpido. O impulso, o salto e o assalto. A alma se livre, no negrum ainda que luz tão perto. Mas incompleto por ausência de calor fora do conceito – frio faço estéril.

Ida-e-volta

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Bilhete-de-ida-e-volta, o tempo passa, nascer, morrer, renascer, morrer e não se sente além da dor. Iguais até ao primeiro pousar no berço. Iguais até à primeira pazada de terra. O tempo passa, tentativa e erro e adiante, que o tempo passa. Porque o tempo passa somos, à vez, corpos diferentes e de vidas inigualáveis. Passa o tempo entre o nascer e o falecer, iguais nas chegadas às duas luzes, a da noite e a do éter. À vez, pessoas diferentes.
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O que beber com a memória


Letra F

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Nota: Se alguém souber da autoria desta fotografia que me informe, de modo a citar a autoria.

Letra L


Um mês de trabalho contado no Tarô

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Vinte e dois dias úteis tem o mês, os mesmos se forem inúteis. No final serão trinta ou trinta e mais um, mas há Fevereiro. Todos sabemos que em Fevereiro chove muito em Portugal. Ou chovia, pois desde que mexeram no céu as estações do ano andam esquisitas.
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É assim a vida… mais sete mil milhões de pessoas, quase todas pobres ou muito pobres e pouquíssimas ricas, que podem comprar os sonhos. Sonho com um Learjet, um Bentley Continental descapotável, um conjunto de canetas Mont Blanc, relógios para cada dia do mês, todos mecânicos e complicados, comprar roupa em Milão e Roma, ter uma varanda em Miami, um apartamento na George V, um ninho de amor em Chelsea, dormir nas suites do Waldorf Astoria, de Nova Iorque, fumar charutos de Vuelta Abajo, acompanhados por grandes vinhos ou na preguiça duma rede no iate ao largo de Monte Carlo.
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Acordo abruptamente e sonho mais baixinho. Para não ter de contar os trinta dias do mês, às vezes mais um e menos dois em Fevereiro. Roda o mundo, com mais de sete mil milhões de pessoas.
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Faites vos jeux
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O dia um do mês foi uma segunda-feira e do baralho do Tarô tirei uma carta.
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No dia dois, do baralho tirei uma carta – o melhor pela frente, tudo seria capaz e em tempo.
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Veio o terceiro, o quarto, o quinto e sexto dias, para cada um tirei uma carta e a mesma calhou. Por ser essa, soube que não o haveria de ver nem ouvir – para alívio exclamei para que me ouvisse que não tinha medo dele.
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Dois dias para descansar, com a semana passada na cabeça e a próxima no fígado.
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O dia nove foi segunda-feira. Do baralho tirei uma carta e calei-me sabedor de que reparavam no meu esforço, empenho e competência.
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Já na terça-feira cheguei feliz com o Sol na mão. Nada a relatar, escreveria no diário, se o tivesse.
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Mas no dia seguinte veio-me a Lua, uma dúvida de quatro faces em desinquietação. Pensei que a indisposição psicológica derivava de mal-estar físico, por causa aquelas lulas de caldeirada com picante que jantara. Até me tinha levantado a meio da noite para beber uns sais-de-frutos.
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Que sinal, o que dizer? O que fazer? Lentamente passou o dia num instante. São esses dias que nos fazem velhos.
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Quando na sexta-feira a carta deslizou do conjunto tive a certeza que tudo corria bem, ainda que.
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Dois dias para descansar, com a semana passada na cabeça e a próxima no fígado.
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Na segunda-feira acordei tarde e não tomei duche para não me atrasar mais. A porra das segundas-feiras! Vi a carta de fugida e corri até ao carro com um croissant de plástico na boca. Três minutos antes das nove horas, por um triz. Fui chamado à chefe, que me disse várias coisas que não entendi, nem por si nem em conjunto. A fulana é estranha!
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Levantei-me preguiçoso e ao pequeno-almoço, com os dedos molhados de manteiga quente, que escorrera da torrada, tirei a carta diária e sem perceber a conversa da véspera percebi o dia pela frente. O senhor doutor quis conversar comigo.
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Depois de ter sido chamado ao gabinete do patrão achei que iria ser aumentado. Palavras macias deixam antever mais uns cobres. Na pior das hipóteses seria graxa para trabalhar mais, mais papéis e horas, sem receber mais por isso, mas estrada certa para a promoção. Talvez um bónus no fim do ano. Saí de casa muito saudável e pensando que à hora de almoço poderia comprar um fato novo, de melhor fazenda. Fui ao quiosque e comprei um jornal económico, sentindo-me já quase chefe, e um maço de cigarros, que informava do perigo de morte, lenta e dolorosa. Lembrei-me que não tirara a carta. Veio a mensagem do pacote.
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Acordei cedo, despachei-me depressa e o caminho, contra o trânsito da hora-de-ponta, fez-se sem ultrapassar os cem quilómetros por hora. Tranquilo, entrei talvez dez minutos antes do horário. Do bolso tirei o baralho e pelas costas escolhi uma… parecia bruxedo… a chefe não me dirigiu a palavra.
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Sexta-feira com Sol e disposição de querer conquistar o mundo. Finalmente sexta-feira. Do baralho veio suspiro aliviado. Nada de preocupações, apenas sobressaltos vagos e véspera de vontade livre.
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Dois dias para descansar, com a semana passada na cabeça e a próxima no fígado.
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Quando o despertador tocou, naquela segunda-feira, deitei ao chão as cartas, que estavam, fora da caixa, sobre a mesa-de-cabeceira. Caíram todas de costa para cima, menos a do Sol. Alegria! Bons tempos aí à frente. Tive azar, apanhei um mega-acidente na auto-estrada. Liguei várias vezes à chefe, mas primeiro não me atendia e depois desligou-me mesmo na cara. Quando cheguei à minha secretária, e ia para me sentar, chegou-se e disse-me ralhando que se não lhe estava a atender é porque não podia, que não tinha de insistir, que fui incomodativo e, já agora, disparou-me a acusação de que chegara tarde. Embargado, expliquei-lhe do acidente e que era essa a razão do atraso e da insistência na chamada. Virou-me as costas e mentalmente mandei-a ir à merda… o que me contive!...
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As terças-feiras são o princípio do fim da semana de trabalho, quando se respira antes de mergulhar na quarta e na quinta. Tudo bem, sem stress. Veio-me à mão uma tranquilidade. Era mentira, uma ironia. Todas as questões que coloquei à chefe ficaram sem resposta ou com um lacónico dizer que mais tarde se veria. Lembrei-me de que na véspera a mandara mentalmente à merda e mandei-a mais três vezes, embora com menos veemência no asco.
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Assim se fizeram as coisas. Então o destino mandou-me a Torre. Impercebi quando dois colegas me vieram pedir três processos que tinha entre mãos. Não me pareceu ser ajuda, e em substituição não veio nenhum email com ficheiro Excel para ver e  verificar nem me pediram um Powerpoint com urgência de anteontem. O destino mandou-me a Torre, mandou-me dela abaixo, daquela que já se derribava.
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A quinta-feira foi morna em tudo, do acordar até ao final do dia. Estava sem quase nada para fazer e sem perceber. Pedi trabalho, mas a cabra – nesse momento já baixara na escala da condição de afecto – murmurava enfadada que, de momento, não tinha nada para me dar. Um dos colegas, um dos que ficaram com pastas minhas, veio ter comigo. Puxou uma cadeira e pediu-me que o ajudasse a perceber umas situações. Ali estivemos, talvez meia hora ou quarenta e cinco minutos de secura e indiferença. Outros colegas passavam e olhavam como bovinos ou desviavam os olhos, como fazem as adolescentes quando se cruzam na rua com o miúdo mais bonito da escola. Uma agulha picou-me, comecei a sentir-me corno.
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Cansado tomei o pequeno-almoço no café. Um quarto Vigor, como se a marca atestasse a função da poção de exorcizar, e uma sandes de presunto – da perna para que te quero, que sou carne para canhão. Levei a mão ao bolso e o Zero. Nesse dia fui chamado ao departamento de pessoal, donde me mandaram passar pela tesouraria. Disseram-me que escusava de ir trabalhar na semana seguinte, pois todos os assuntos estavam tratados, as pastas passadas, nada pendente – além de mim, é claro.
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Veio sábado, veio domingo e todos os dias seguintes tiveram a angústia dos domingos das semanas indesejadas e fígados de segunda-feira.
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Dia vinte e oito foi uma segunda-feira e acordei às horas de ir trabalhar, sentei-me cristalizado em frente à televisão, que transmitia as habituais informações de trânsito – pensei que ainda bem que fazia o percurso em sentido contrário ao movimento da hora-de-ponta, suspirei triste. Não tirei nenhuma carta, não fosse dizer coisas tristes.
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Na terça-feira tomei duche, mas não fiz a barba. Decidi deixar de fumar. Com o dinheiro poupado faria um mealheiro, ferramenta para se tivesse o azar de não conseguir emprego até chegar o final do subsídio de desemprego.
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No dia trinta – esse mês mancava um dia – levantei-me como na véspera da inspecção do serviço militar obrigatório. Um duche quase frio, barba feita e perfume suave. Ciente de que iria esperar e esperar e esperar que me chamassem para falar com o técnico do instituto de emprego, comprei um maço de cigarros para devorar nas horas mortas. Fumei mais um e meio. Lá se foi o mealheiro.
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Cinquenta e dois dias tem o ano, tantos quanto as cartas dos arcanos maiores. Dias a fazer paciências para não rebentar de impaciência e a fumar mais, com o olhar nas mamas das miúdas das fotografias que o choninhas lá do trabalho me passou a enviar para me animar... quem diria, que o choninhas gosta de pornografia. Não lhe disse que não gosto de mamalhudas de silicone, ele é tão simpático. Às vezes almoçamos para recordar os nem bons tempos.