digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

quinta-feira, outubro 30, 2014

Dieta, disse-me o doutor

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A um copo de vivo espumante branco da Quinta das Bágeiras junto doces de tomate, chila e abóbora. Derreto-me de sono como o Queijo da Serra de pasta mole e elevo-me com a macieza da carne tenra e branca dum pão a cheirar a forno a lenha, como escorregasse numa cama de lençóis antigos de linho e bem engomados. Para quê dormir, se apenas poderei sonhar? Antes vivo, e alimento a alma.

Para que nunca se esqueça - Aristides de Sousa Mendes


quarta-feira, outubro 29, 2014

Repousando vou-me

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O sono deve ser a melhor chatice da vida.

Quase trinta anos depois descobri como te chamas e ainda assim nunca quis

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Uma fotografia agarrou-me os olhos e puxou-os como se fosse um buraco-negro. Agarraram-se estes à memória. Fui caindo acelerado, notando que há pessoas que entraram pelas vistas sem chegarem a deixar cair uma pestana no tempo-lembrança. E ainda assim emergem, como um corpo-de-mito duma entranha da natureza, escorrendo água milenar ou rompendo desde as rochas escondidas.
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Nota: O Facebook é… nem sei…

sexta-feira, outubro 24, 2014

As janelas

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Que tristeza sente um homem pelo aplauso por ter morto outro homem?
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Nota 1: Repare-se na tristeza dos olhos deste soldado, por ter cumprindo a função e violado a alma.
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Nota 2: Notícia da versão online da BBC US & Canada
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Ottawa shooting: The victim and the sergeant-at-arms
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Canada is in shock after a gunman killed a soldier at an Ottawa war memorial and rampaged through Canada's parliament before being shot dead. The BBC profiles the soldier who was killed, and the sergeant-at-arms who stopped the gunman.
The victim: Cpl Nathan Cirillo
Cpl Nathan Cirillo, a soldier guarding the Ottawa war memorial, died from his injuries following the gun attack.
The 25-year-old, who had a six-year-old son, grew up in the Ontario city of Hamilton.
His classmates described him as "a real class clown" who "always wanted to serve his country".
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Cpl Nathan Cirillo was a reservist with the Argyll and Sutherland Highlanders
Friends said he had always wanted to join the military, and became a member of his local reservist regiment, the Argyll and Sutherland Highlanders, while still a student.
Cpl Cirillo was a fitness instructor before he joined the military. He was also an animal lover, posting photos of his dogs on his Instagram account.
"He always had a smile on his face; he was always walking around giving people handshakes," his friend Peter DiBussolo told the Ottawa Citizen.
"He was an outgoing person; he knew how to have fun."
His aunt, who asked not to be named, told the Globe and Mail he was "into being fit. And being a father and son".
She added: "He was a wonderful young man. Not an enemy in the world."
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Kevin Vickers is in charge of parliamentary security and was credited with shooting the attacker
Sergeant-at-Arms Kevin Vickers
Witnesses identified the parliamentary Sergeant-at-Arms, Kevin Vickers, as the man who shot dead the attacker.
Mr Vickers, 58, took up his role in 2006 after 29 years in the Royal Canadian Mounted Police (RCMP) and a year as the head of security at the House of Commons.
His role involves "safeguarding the authority of the Houses of Commons" and "the safety and security of the Parliament buildings and their occupants".
At the time of Mr Vickers' appointment, he was praised for the "loyalty, distinction and honour" he had displayed in his career.
In his previous role with the RCMP he led several high-profile investigations, and was involved in the development of policies reaching out to leaders in Canada's Muslim community.
He also provided security for high-profile guests, including the Queen and Prince Andrew.
He last made headlines in 2011 when he supported the right of Sikhs to wear ceremonial daggers in the House of Commons.
After the gun attack on parliament, politician Glenn Thibeault described Mr Vickers as the "nicest guy you'll ever meet" and "our hero".
Mr Vickers' brother John told BBC Radio 5live's Breakfast: "With that event unfolding, he would be the man you would want to protect you. He's just an exemplary guy and we're very, very proud of him."
In a statement on Thursday, Mr Vickers said he was "very touched" by the attention given to him, but said he had the support of "a remarkable security team".
He said he was proud of the "professionalism and courage" of his colleagues during "extraordinary circumstances".

Zero-infinito

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A conversa não tinha interesse, algo irritante e todo o tempo é perdido. Nem conhecia o adversário, que chateado me mandou ir dar milho aos pombos. Fui, mas não dei milho aos pombos, deixei que me bicassem a alma triste. Porque infelizmente teimo em ser a criança que quer ser amiga de toda a gente.

Capitão-de-mar-em-terra

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Vento e água salgada pela frente, na pele e na boca. Às vezes, de noite num cacilheiro, se pingar ainda melhor, sonho-me marujo – não capitão do mar-oceano, mas solitário grumete que no escuro segura a roda do timão, enquanto o resto da tripulação ressona em camaratas com cheiro a mofo. Não fosse o peixe… nem é verdade, antes disso tenho uma saudade da minha terra ainda antes de partir. Marujo sim, se o barco fosse de pedra cravada na rocha. 

Claudia Schiffer

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Disse:
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– A Claudia Schiffer é linda!
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Disse-me:
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– Não é linda nem bonita. Parece estúpida e alguém que parece estúpido não é bonito.
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Reconheci-lhe razão e contudo.
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Já passaram mais anos do que aqueles que tinha, e ainda.
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Nota: Lembro-me de comprar o jornal e ler que uma jovem modelo de Dusseldorf estava a causar sensação no mundo da moda. A notícia estava ilustrada com uma foto, quase uma vinheta, duma menina doce com vinte e um anos. Eu tinha vinte e um anos e ia para Dusseldorf.
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Não fantasiei nada. Embeveci por uma má fotografia a preto e branco impressa em papel de jornal. Não fantasiei, mas pensei.

A árvore dos rubis

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A maçã é a fruta da Árvore da Ciência do Bem e do Mal – disse um velho sacerdote impotente e infértil de nascença, parco e austero nos comeres.
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As uvas, disse o bêbado. As uvas, repetiu outro bêbado. Nâo!... As uvas, pôs outro bêbado fim à discussão.
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Morangos, exclamou a donzela apaixonada, de peito apertado, mais pela paixão do que pelo espartilho, ainda soluçando do Champanhe que bebera antes de conceder a honra.
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Figos!... nada mais doce do que um figo maduro – garantiu um camponês.
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Para a madama, as bananas. Gargalhando alto, para que se ouvisse em tom de aleivosia.
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Maracujá, para o marujo que nunca saíra da cidade natal e aportara longe, depois das gangrenas, do sal, do vinagre e da urina.
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Desconfio da romã. Difícil de começar, sangrando como a virgindade, tinta que não sairá, doce e lenhosa como a vida a dois, prazer e luta, e dando tanto para nascer.
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O ouro não oxida, o diamante é eterno e a romã é arte.
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Tanto quanto sei, Deus fez tudo menos a arte e o bronze. Porém, criou a romã.
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Nota: Longe de ser um pensamento profundo ou uma fé, este texto é a legenda desta escultura de vidro e bronze.

Conversas do nunca

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Faço de conta que aconteceu e que estive lá, porque era tradutor, lacaio ou mosca.
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António Salazar dificilmente contendo-se para não gargalhar ao ouvir Benito Mussolini, num encontro em Roma.
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Adolf Hitler e Benito Mussolini entusiasmados, cada vez a falarem mais alto, adorando-se ouvir e ignorando o outro. O aluno condescendente para com seu mestre, afinal intelectualmente balofo. Algures na Áustria… Tirol.
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Josef Stalin ouvindo atentamente Adolf Hitler, deixando-o falar. Adolf Hitler deixando falar Josef Stalin. Ambos tentando compreender a outra parte, percebendo que tudo foi um erro, reconhecendo que serem amigos bêbados e à pancada. Algures na Prússia Oriental.
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Josef Stalin a fechar a porta na cara de Francisco Franco. Em Hendaya.
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Josef Stalin a rir às gargalhadas, na cara, dos disparates de Benito Mussolini. Numa breve visita a Roma.
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Benito Mussolini e Francisco Franco sentados horas de quase silêncio, de quartos de conversas de meias frases… nem de futebol, nem de mulheres nem do melhor vinho… apenas entediados a fazerem horas. Numa esplanada algures no Norte de África.
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Josef Stalin a dizer à secretária para transmitir ao doutor Salazar, que ele próprio segurava o auscultador do telefone, que mandava dizer que não estava. Um em Moscovo e outro na casa rural de São Bento, em Lisboa.
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António Salazar impávido a escutar com muita atenção – interiormente estarrecido pela estupidez – Adolf Hitler e seus sonhos grandiosos. Provavelmente na… Suíça.
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Francisco Franco cheio de soberba dissertando, mal escondendo a vontade de tomar Lisboa em cinco dias, e António Salazar pensando que o espanhol não passaria na sua cadeira na Universidade de Coimbra. Numa repartição pública em Badajoz.
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Adolf Hitler queixando-se a Francisco Franco da tortilha estar demasiado oleosa e enjoativa e que não gostara dos camarões da paelha. Em Maiorca, antevendo que a ilha seria o décimo sétimo länder da Alemanha Federal.
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Benito Mussolini desprezando António Salazar, por ser demasiado padreco. António Salazar desprezando Benito Mussolini por ele se considerar tão professor, embora do ensino primário, quanto ela, que ministrava finanças em Coimbra. O italiano falava e o português pensava em mandar comprar milho para dar às galinhas da capoeira da casa de São Bento. Numa esplanada no Estoril.
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Mao Tse Tung amoado por não ter ninguém com quem falar.
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Heroíto aborrecido por ninguém o entender, nem mesmo os seus súbditos.
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Porque sou português, estive mais atento ao ambiente em torno de António Salazar.
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No final, Josef Stalin perguntou a um assessor:
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– Que língua falam em Portugal?
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No fim, Adolf Hitler perguntou a Martin Bormann:
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– Que língua falam em Portugal?
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Após o encontro, Benito Mussolini disse baixinho para ser ouvido:
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– Por que é que estes gajos não falam italiano… ou, pelo menos, espanhol?
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Ensimesmado, Francisco Franco murmurou:
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– Como é que estes gajos ainda não falam espanhol?
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Heroíto lembra-se de lhe terem dito que «arigato» vinha de «obrigado», mas que só podia ser mentira.
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Mao Tse Tung sonhou ansioso com o dia em que a China conseguisse fazer sapatos com a qualidade dos botins de António Salazar.
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De todas as conversas, António Salazar reteve:
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– Pouca escola preserva a pátria.
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O mais estúpido de todos foi sem dúvida o mais inteligente. E o contrário?

quinta-feira, outubro 23, 2014

Rosa, nunca

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Ainda hoje não te disse como és bonita. Se disse, não foi o suficiente.
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Sei da temperatura dos teus lábios e do teu olhar brilhante, no escuro ou vencendo uma ofuscante bola de luz.
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É tão piroso dizer que a pessoa amada é uma rosa. Jamais te direi tal coisa.
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Mimosa quando estás triste, da laranjeira na alegria.
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Por tanta coisa, tanta que não sei explicar por que te amo.
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Fico com o mistério, que me prenderá sempre mais.
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Como explicar?
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Sei que a romanzeira enxerta a laranjeira, mas a laranjeira não enxerta a romanzeira.
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Assim me explico-te. Assim me explico-te-vos.

Mar

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– Viste hoje o mar?
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– Sim, vi o mar. Há bocado.
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– Não viste como estava especial?
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– Não! Estava especial como de costume.

Gatos

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À noite a casa é dos gatos.
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Quando olho para um gato tenho a sensação que me lê o pensamento.
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O cão é óbvio! Percebe tudo e é mais generoso com quem ama do que consigo mesmo.
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O cão sente-se culpado e o gato tanto pode ser o Rei de Copas como o Xá da Pérsia.

quinta-feira, outubro 16, 2014

Sou translúcido

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Contudo, houve a guerra que queimou a alegria. Apesar do Inferno, sobreviveram o amor e os amantes, ternuras e cantigas. Sem entender um verso, alegro-me e desejo-me suavemente embriagado seduzindo enquanto danço com pouco tino.
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Nota: O título parece ser «Para mim, és translúcido». Porém, a tradução foi feita de iídiche para português e via alemão. De toda a forma, traduz exactamente o sentimento e o momento que escrevi.
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E infantilmente, vinho

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Antes de pôr a casa, meditar. Antes de pôr a casa, ter uma natureza. Depois da natureza, ter lavoura. E infantilmente pensar que se é Deus.
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E infantilmente pensar que não morro. E infantilmente pensar haver um fim.
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E infantilmente acreditar em Deus e infantilmente negá-lo.
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Acredito na Lua porque se vê e também nas estrelas cadentes.
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Antes de pôr a casa, deito-me ao relento contemplando o céu – cinema da humanidade.
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E infantilmente não acredito em unicórnios, sereias, gigantes e dragões… e infantilmente também de gnomos e duendes. E infantilmente nego a magia, as fadas e as bruxas.
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Porquê jejuar? Não alegra a ninguém nem faz pensar melhor. Porquê sacrificar um animal? Para que honre quem me dá vida. Porquê a arte? Porquê ser um ser humano?
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Antes de pôr a casa, pôr uma natureza. Bosques, floresta e ribeiras. Toda a espécie de bicheza e viventes.
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Antes de pôr a casa, ter uma montanha, um cone alto e largo, e no chão, toda à volta, uma planície para tudo.
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Pôr salgueiros junto das ribeiras, onde cresce a eruca, o mastruço e o agrião, talvez saramagos.
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O chão de seixos. O chão de areia pingada de sal. O chão de xisto. O chão de granito.
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Antes de pôr a casa, pôr o bosque: amoras, framboesas, groselhas, mirtilos, morangos, medronhos e zimbros. E pôr também kiwis e melancias de casca preta
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Pôr outro bosque, de silvas, esteva, tomilho, cidreira, bela-luísa, alecrim, estragão, hipericão, carqueja, lavanda, hortelã, salsa, coentros, hortelã, orégãos, manjericão, poejo, salva, funcho, verbena, azedas, espargos, urtigas, azedas e papoilas… papoilas para se ir para a floresta.
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Antes de pôr a casa, pôr uma floresta. Sobreiros, acima de todas as lenhas. Azinheiras, castanheiros, nogueiras, avelaneiras, amendoeiras, pinheiros mansos, pinheiros bravos, eucaliptos e alfarrobeiras.
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Antes de pôr a casa, pôr um pomar: romanzeiras, marmeleiros, maçãs de muitas caras, peras de muitas caras, laranjeiras da baía, limeiras, limoeiros, toranjeiras, cerejeiras, ginjeiras, uveiras e figueiras.
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Antes de pôr a casa, uma horta de gaspacho.
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Antes de pôr a casa, pôr a paz, todas as oliveiras que Deus criou ou deixou inventar. Delas tirar azeites doces e picantes e os que mais houver.
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Antes de pôr a casa, pôr vinhas. Cada trepadeira com seu rincão, decidido pela natureza que mais lhe fala a bem e faz amizade.
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Que pôr? Baga e ramisco, juntas em barricas e em garrafas, rezar para que os trinetos já as consigam beber.
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Para ouvir violinos, viosinho, rabigato, encruzado, gouveio, malvasia fina, côdega do larinho, síria, bical, cercial e verdelho.
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E infantilmente, rufete porque rima com clarinete.
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Que mais fazer? Um vinho para acreditar em Deus: touriga francesa, touriga nacional, tinta barroca e tinta roriz.
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Que mais fazer? Um vinho para o Diabo, que não existe, mas que se existisse mataria a sede com veneno de antão vaz e vinhão. Nessas vinhas abraçadas piquenicar – desprezando o medo e a fealdade – e ouvir a música dos arrepios do castelo do Drácula.
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Que mais fazer? Um vinho parvo… bastardo, borrado das moscas, rabo de ovelha, tinto cão e esgana cão.
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Rir muito, deitado a adormecer ao relento de estrelas.
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As duas cores separadas e fazer palheto com a leviandade dos adolescentes.
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Pôr a casa e dentro da casa um claustro, um jardim árabe e sua água corrente pelos azulejos, e ciprestes e tamareiras.
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E lá me deitar numa sombra deleitando-me, comendo pães de searas de trigo e de centeio que o vento agita e a abetarda faz aeroporto.
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Parto os pães com as mãos, porque melhora o seu sabor. Em fartos miolos agasalho os queijos. Côdeas indefesas para trincar e tantas azeitonas.
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E infantilmente pensar ter a árvore da ciência do bem e do mal.
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E infantilmente pensar ser tudo isto possível. E infantilmente pensar que não se dorme.
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Nota: Derivado à limitação do número de caracteres da caixa das etiquetas, escrevo aqui alguns dos créditos referentes às obras incluídas.
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1– Pintura de Roy Hodrien.
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2 – Música de Frédéric Chopin – Nocturne opus 9 número 2 – por Marten Altrov.
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3 – Imagens de cachos e parras retiradas do sítio Wines ofPortugal.
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4 – Tocata e fuga em D menor BWV 565 – pela Royal Philharmonic Orchestra, dirigida por Andrew Litton.
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5 – Pintura de Michelangelo.

David Almeida – 1945 - 2014

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No museu de Deus, no de eternidade, estão todas as obras. Ateus, crentes, agnósticos e descrentes são o que querem. A galeria não tem fundura, vai duma ponta a outra do universo, como se tivesse. A morte não existe.

Conversa de surdos

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Disse-lhe:
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– Sei que tens seios lindos.
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– Sei que és parvo.
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– Apostamos… abre a blusa.
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– Não querias mais nada?
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– Sim, que parasses de fumar e fizessemos amor.
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– …
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– Que me dizes?
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– Passa-me aí o isqueiro, por favor.
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– Vais fumar outro, de seguida? Em que pensas?
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– Nada. Vejo só o fumo. Vês os efeitos que faz e para onde vai, sem que haja vento.
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– Preferia ver-te os seios.

Fumo

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Disse-lhe:
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– Não sei se reparaste que o cheiro da cinza do cigarro é profunda.
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– Cheira mal. Não gosto. Não gosto do cheiro dos cigarros acesos e ainda menos o dos cinzeiros sujos.
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– Não percebes a poesia da espera e da morte, do prazer e seu falecimento, do cadáver repousando à espera da terra, da ansiedade a sossegar-se.
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– Não tens medo de ter um cancro? Não te preocupa prejudicares os outros, os fumadores passivos?
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– O meu cansaço pede-me para ir e o tabaco não acelera os minutos para que, à velocidade necessária, chegue onde todos chegaremos.
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– Isso é uma parvoíce! Sem comentários!
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– Não! É odor profundo.

Lume

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Disse-me ela:
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– Aqueceste-me a boca e incendiaste-me o corpo.
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Não lhe disse nada e ela continuou.
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– Preciso dum pouco de frio para voltar a aquecer.
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Fui lavar os dentes com pasta dentífrica de menta.
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Disse-me:
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– Não percebeste. Preciso de me apaixonar, só o amor não basta.
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Deitado na cama, acendi um cigarro. Sem dizer, levantei-me, vesti as cuecas e a roupa, e saí.
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Ligou-me mais tarde a dizer que não tinha percebido.
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Respondi-lhe:
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– Se a menta não te arrefece e o lume do tabaco não te aquece, que farei da minha vida para te não perder?
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Fez-se um silêncio longo. Desligou a chamada.
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No dia seguinte não lavei os dentes e deixei de fumar.
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Mandei-lhe uma mensagem a contar.
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Não voltou. Não insisti.
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Sei que começou a fumar.

quarta-feira, outubro 15, 2014

Bacalhau cozido com todos e bem regado com azeite

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Subia a rua e descia um camarada.
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Disse-lhe:
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– Vou votar no CDS.
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Espantou-se, inclinou-se para trás, num espanto que lhe esbugalhou os olhos. Voltou à compostura e gracejou.
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É difícil explicar que não se come bacalhau cozido.
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Seguiu feliz por tudo estar afinal na mesma.
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Não como bacalhau cozido.
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Nota 1: Para os meus leitores não portugueses, o CDS – Centro Democrático Social – é uma força política que, na génese, era de inspiração democrata-cristã. Após a revolução democrática, que depôs uma ditadura de extrema-direita, «ninguém» ousava proclamar-se de direita. Mais tarde, assumiu-se como Partido Popular (CDS-PP). Esse partido não quero, é uma direita que embora democrática nada ou pouco tem do substrato fundacional.
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Nota 2: Um grande abraço, amigo Alfredo Sousa – um grande camarada.

O que é ou não é provável?

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Disse-me:
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– Dá-me o vinho.
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Dei-lhe. Com as duas mãos segurou o jarro e com a boca sorriu.
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Não agradeceu. Como se o vinho lhe fosse devido por direito, não por ser rei, por ser homem.
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Percebendo, não lho pedi por favor, e com as mesmas mãos, segurando uma vida, me passou o jarro.
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Não agradeci, porque a franqueza não se agradece.
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Não gosto do neo-realismo!

Um poema sem ideia

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A.
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Pablo Neruda dixit: Escrever é fácil: começa com uma letra maiúscula e termina com um ponto final. No meio coloca as ideias.
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Nota: A pintura é um verso dum poema de al-Mutanabbi – poeta árabe, nascido no actual Iraque, que viveu entre 915 e 965.

sexta-feira, outubro 10, 2014

Legendas duma viagem ao Douro

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Na paisagem, divido-me entre o Alentejo e o Douro. No vinho encanto-me na fonte da touriga francesa.
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Rufete soa a instrumento de sopro, pode ser o silvo do sisão, que vive a Sul e a Norte.
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No Alentejo o azeite é doce e no Douro espevita um leve picante.
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O rio podia ser de ouro, mas é Duris, é mais do que raro.
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Entre Tejo e Guadiana quase todo o ano. Mandaram-me ir dar uma curva... Não dei, deu-me o Douro.
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Vantablack e o Paradoxo de Olbers

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O negro nem o cinzento se fizeram para caminhar. De ir é o azul, seja para o céu ou para o mar, com solar.
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Como se fosse possível anular todas as cores ou juntá-las numa coisa.
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Olhos aprisionados pela luz.
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O negro ao luar. A transgressão de andar.

Dependerá do tempo

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Há tempo para tudo e tempo para nada. O tempo para nada desassossega, o tempo para tudo é nada.
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Estou pronto a morrer pela pátria!
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Se a pátria não o quiser, morro à mesma.
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Se não puder ser heróico, que seja trágico.
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Que sobre mim caia um pano de veludo pesado e carmesim, franjado de ouro, e o escuro se faça.
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Não prometo ser fantasma nem prometo não o ser.
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Dependerá do tempo que tiver.

domingo, outubro 05, 2014

Manifestação estética acerca do 5 de Outubro

Hino da Carta – Música de Estado até 5 de Outubro de 1910.
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Dom Pedro de Alcântara foi muita coisa e preferiu ser «coisa nenhuma». Foi o Imperador do Brasil, embora o seu pai, Dom João VI já o tivesse usado como honraria. Aí reinou de 10 de Março de 1822 (data do falecimento de seu pai) até 7 de Abril de 1831, quando abdicou a favor de seu filho, que viria a ser Pedro II do Brasil.
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Armas do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.
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Armas do Império do Brasil.
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De convicções liberais, cruzou o Atlântico para defender o direito da sua filha, que seria Dona Maria II, em herdar o Reino de Portugal. Reinou de 10 de Março de 1826 a 20 de Maio de 1826, após a derrota de Dom Miguel, seu irmão e usurpador. Tornou-se regente até 1834, quando o golpista assumiu a derrota. A 26 de Maio de 1834 Dona Maria torna-se a segunda monarca a usar o nome da mãe de Jesus.
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Em 1826, Dom Pedro escreveu o poema e a música do Hino de Portugal, que estaria em vigor até 5 de Outubro de 1910.
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Com a sucessão resolvida, quis ser apenas Dom Pedro de Alcântara. Duas vezes recusou avançar para ser Rei de Espanha, numa até subiram a parada para o título de Imperador. Recém libertados da ocupação otomana, o primeiro nome que os gregos se lembraram para reinar foi o de Dom Pedro, que não aceitou.
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Hoje é 5 de Outubro, data duplamente histórica:
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Em 1143, na Conferência de Zamora, o Rei Dom Afonso VII de Castela (Afonso VII de Leão e Imperador da Hispânia) reconhece a independência de Portugal, tendo-se assinado o Tratado de Zamora.
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A 5 de Outubro de 1910 foi implantada a República em Portugal.
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Não irei argumentar e contra-argumentar acerca das vantagens e desvantagens de cada regime, nomeadamente tendo em conta a forma como é chefiado, se com carácter governativo ou de política discreta de bastidores.
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Importa apenas que o «Hino da Carta» é mais bonito, em poema e música, do que o «A Portuguesa». Importa que a bandeira nacional que vigorou até 114 anos era muitíssimo mais elegante e bela do que «a coisa» escolhida na Primeira República.
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Nota: A data da independência de Portugal não é consensual, uma vez que Dom Afonso Henriques assumiu, em 1128, a liderança do território, sem autorização do seu suserano, na sequência da Batalha de São Mamede, que ocorreu a 24 de Junho desse ano. Outra data surge, no dia de Pentecostes de 1125 armou-se cavaleiro a si próprio, à moda dos Reis germanos. A idade rondaria os 16 anos (a data de nascimento é incerta).
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Poema do Hino da Carta:
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I
Ó Pátria, Ó Rei, Ó Povo,
Ama a tua Religião
Observa e guarda sempre
Divinal Constituição

(Coro)
Viva, viva, viva ó Rei
Viva a Santa Religião
Vivam Lusos valorosos
A feliz Constituição
A feliz Constituição

II
Ó com quanto desafogo
Na comum agitação
Dá vigor às almas todas
Divinal Constituição

(Coro)
Viva, viva, viva ó Rei
Viva a Santa Religião
Vivam Lusos valorosos
A feliz Constituição
A feliz Constituição

III
Venturosos nós seremos
Em perfeita união
Tendo sempre em vista todos
Divinal Constituição

(Coro)
Viva, viva, viva ó Rei
Viva a Santa Religião
Vivam Lusos valorosos
A feliz Constituição
A feliz Constituição

IV
A verdade não se ofusca
O Rei não se engana, não,
Proclamemos Portugueses
Divinal Constituição

(Coro)
Viva, viva, viva ó Rei
Viva a Santa Religião
Vivam Lusos valorosos
A feliz Constituição
A feliz Constituição

quinta-feira, outubro 02, 2014

Nova Grande Loja Maçónica nasce em Portugal

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Fui convidado por três vezes para a Maçonaria. A cada convite respondi com um redondo «NÃO» e quase com uma gargalhada.
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Quem se lembraria de me convidar para a Maçonaria? Nem gosto de tijolos e as únicas coisas que construí foram castelos de areia na praia, mesmo assim com recurso a uma forma.
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Peço desculpa aos meus amigos maçons, cujo número total desconheço, mas essa coisa de cerimoniais, simbolismos estranhos, leituras densas para se poder fazer o exame de admissão lembra-me sempre um clube de adolescentes.
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Quem me conhece muito, pouco ou quase nada sabe que gosto do desconstrutivismo e do brutalismo. Penso que tais estilos arquitectónicos devam arrepiar os maçons.
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Todavia, de pedreiros só têm o nome. A Maçonaria foi sempre um clube de elites – raras excepções. Pedreiros porque foi a única guilda que os aceitou. No entanto, há quem sonhe com catedrais medievais, com a Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão – comummente conhecida por Ordem dos Templários – e até com os construtores das pirâmides do Egipto Antigo, erguidas no século XXVI antes de Cristo.
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Quanto a mim, a Maçonaria nunca teve nada a ver com pedreiros e buscou referências para uso simbólico quanto à construção dum mundo mais evoluído. Essa é matéria de debate com membros doutras organizações e nem me meto.
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Até reconheço que não entendo se os maçons acreditam em Deus. Lá têm o Grande Arquitecto, o que me soa a divindade. Se assim é nem sei por que embirram com eles e por que foram os maçons adversários de cristãos.
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Não percebo nada e sinceramente nem me apetece. Gostava de assistir a uns cerimonias, pelo carácter mágico que parecem encerrar. Reconheço que sinto pela Maçonaria – tal como outros grupos com rituais, simbolismos, formas de cumprimento, números, graus, títulos, adereços e vestimentas – o mesmo carácter adolescente.
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Para adolescência já basta a minha. Não resolvida em muitos aspectos, mas em relação a clubes identitários está satisfeita.
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É claro, que os veneráveis irmãos não andam a brincar. Todos sabemos da influência que têm e tiveram ao longo dos anos. Juro que não compreendo por que tanto é secreta como discreta… claro que é secreta, embora tenha irmãos discretos… alguns só lhes falta um letreiro luminoso a anunciar a militância.
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Todavia, acabo por ter uma nostalgia dum tempo que não tive, os anos que não pertenci à Maçonaria e que – nem tenho dúvidas – me valeria uma mais confortável vida económica.
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Com o devido respeito e atrevimento, apresento hoje a Grande Loja dos Enófilos de Portugal. É para levar a sério, porque o vinho é um exemplo do que se pode chamar de agricultura inteligente. O vinho sacia, inebria, é sagrado e profano.
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Espero que veneráveis lojas, com outras filosofias, entendam esta nova confraria. Porém, sei que seremos perseguidos pelo longo braço da lei, nomeadamente nas operações stop e teste de alcoolemia.
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Espero contactos para novos membros para o templo, a Grande Adega Lusitana. Como sou modesto e nestas coisas de Maçonaria há que haver respeito, embora irmão fundador, adopto o número 0,75. O grupo pode ser aberto ou fechado e os irmãos podem embebedar-se em segredo, às escondidas em locais públicos.
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Quanto aos graus, os irmãos aprendizes têm diferentes títulos, mas não lhes é atribuído qualquer numeração, ostentando apenas uma imagem gráfica alusiva à sua categoria. A Grande Adega Lusitana tem dois irmãos com funções de chefia, cuja numeração é de cinco centenas para o Mestre e de dez centenas para o Grão Mestre.
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Os títulos são os seguintes e por ordem crescente: Porta enxertos, Vide, Uva, Mosto, Depósito de Inox, Barrica de Quarto Ano, Barrica de Terceiro Ano, Barrica de Segundo Ano, Barrica de Primeiro Ano, Copo de Três, Cálice, Meia Garrafa (0,375), Meio Litro (0,50), Garrafa (0,75), Litrosa (1), Magnum (1,5), Jeroboam (3), Réhoboam (4,5), Matusalém (6), Salmanazar (9), Baltazar (12), Nabucodonosor (15), Solomon (18), Sovereign (26), Primacy (27), Adegueiro (500) e Enólogo (100). Veneráveis Irmãos que não tiveram funções específicas usam o título de Vinhas Velhas. Antigos Mestres ostentam, conforme a antiguidade, os títulos de Ânfora e Talha.
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O grande momento cerimonial acontece no Dia de São Martinho e consiste numa bebedeira que, pelas dimensões, oblitera a consciência e a memória, pelo que será sempre secreta.
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Além de Mestre, existem as funções – não títulos – de Pipa, Barril, Balseiro, Tonel e Depósito Tronco-Cónico.