digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

sexta-feira, outubro 24, 2014

Conversas do nunca

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Faço de conta que aconteceu e que estive lá, porque era tradutor, lacaio ou mosca.
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António Salazar dificilmente contendo-se para não gargalhar ao ouvir Benito Mussolini, num encontro em Roma.
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Adolf Hitler e Benito Mussolini entusiasmados, cada vez a falarem mais alto, adorando-se ouvir e ignorando o outro. O aluno condescendente para com seu mestre, afinal intelectualmente balofo. Algures na Áustria… Tirol.
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Josef Stalin ouvindo atentamente Adolf Hitler, deixando-o falar. Adolf Hitler deixando falar Josef Stalin. Ambos tentando compreender a outra parte, percebendo que tudo foi um erro, reconhecendo que serem amigos bêbados e à pancada. Algures na Prússia Oriental.
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Josef Stalin a fechar a porta na cara de Francisco Franco. Em Hendaya.
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Josef Stalin a rir às gargalhadas, na cara, dos disparates de Benito Mussolini. Numa breve visita a Roma.
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Benito Mussolini e Francisco Franco sentados horas de quase silêncio, de quartos de conversas de meias frases… nem de futebol, nem de mulheres nem do melhor vinho… apenas entediados a fazerem horas. Numa esplanada algures no Norte de África.
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Josef Stalin a dizer à secretária para transmitir ao doutor Salazar, que ele próprio segurava o auscultador do telefone, que mandava dizer que não estava. Um em Moscovo e outro na casa rural de São Bento, em Lisboa.
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António Salazar impávido a escutar com muita atenção – interiormente estarrecido pela estupidez – Adolf Hitler e seus sonhos grandiosos. Provavelmente na… Suíça.
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Francisco Franco cheio de soberba dissertando, mal escondendo a vontade de tomar Lisboa em cinco dias, e António Salazar pensando que o espanhol não passaria na sua cadeira na Universidade de Coimbra. Numa repartição pública em Badajoz.
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Adolf Hitler queixando-se a Francisco Franco da tortilha estar demasiado oleosa e enjoativa e que não gostara dos camarões da paelha. Em Maiorca, antevendo que a ilha seria o décimo sétimo länder da Alemanha Federal.
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Benito Mussolini desprezando António Salazar, por ser demasiado padreco. António Salazar desprezando Benito Mussolini por ele se considerar tão professor, embora do ensino primário, quanto ela, que ministrava finanças em Coimbra. O italiano falava e o português pensava em mandar comprar milho para dar às galinhas da capoeira da casa de São Bento. Numa esplanada no Estoril.
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Mao Tse Tung amoado por não ter ninguém com quem falar.
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Heroíto aborrecido por ninguém o entender, nem mesmo os seus súbditos.
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Porque sou português, estive mais atento ao ambiente em torno de António Salazar.
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No final, Josef Stalin perguntou a um assessor:
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– Que língua falam em Portugal?
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No fim, Adolf Hitler perguntou a Martin Bormann:
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– Que língua falam em Portugal?
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Após o encontro, Benito Mussolini disse baixinho para ser ouvido:
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– Por que é que estes gajos não falam italiano… ou, pelo menos, espanhol?
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Ensimesmado, Francisco Franco murmurou:
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– Como é que estes gajos ainda não falam espanhol?
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Heroíto lembra-se de lhe terem dito que «arigato» vinha de «obrigado», mas que só podia ser mentira.
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Mao Tse Tung sonhou ansioso com o dia em que a China conseguisse fazer sapatos com a qualidade dos botins de António Salazar.
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De todas as conversas, António Salazar reteve:
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– Pouca escola preserva a pátria.
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O mais estúpido de todos foi sem dúvida o mais inteligente. E o contrário?

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