digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

quinta-feira, outubro 16, 2014

E infantilmente, vinho

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Antes de pôr a casa, meditar. Antes de pôr a casa, ter uma natureza. Depois da natureza, ter lavoura. E infantilmente pensar que se é Deus.
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E infantilmente pensar que não morro. E infantilmente pensar haver um fim.
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E infantilmente acreditar em Deus e infantilmente negá-lo.
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Acredito na Lua porque se vê e também nas estrelas cadentes.
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Antes de pôr a casa, deito-me ao relento contemplando o céu – cinema da humanidade.
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E infantilmente não acredito em unicórnios, sereias, gigantes e dragões… e infantilmente também de gnomos e duendes. E infantilmente nego a magia, as fadas e as bruxas.
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Porquê jejuar? Não alegra a ninguém nem faz pensar melhor. Porquê sacrificar um animal? Para que honre quem me dá vida. Porquê a arte? Porquê ser um ser humano?
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Antes de pôr a casa, pôr uma natureza. Bosques, floresta e ribeiras. Toda a espécie de bicheza e viventes.
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Antes de pôr a casa, ter uma montanha, um cone alto e largo, e no chão, toda à volta, uma planície para tudo.
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Pôr salgueiros junto das ribeiras, onde cresce a eruca, o mastruço e o agrião, talvez saramagos.
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O chão de seixos. O chão de areia pingada de sal. O chão de xisto. O chão de granito.
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Antes de pôr a casa, pôr o bosque: amoras, framboesas, groselhas, mirtilos, morangos, medronhos e zimbros. E pôr também kiwis e melancias de casca preta
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Pôr outro bosque, de silvas, esteva, tomilho, cidreira, bela-luísa, alecrim, estragão, hipericão, carqueja, lavanda, hortelã, salsa, coentros, hortelã, orégãos, manjericão, poejo, salva, funcho, verbena, azedas, espargos, urtigas, azedas e papoilas… papoilas para se ir para a floresta.
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Antes de pôr a casa, pôr uma floresta. Sobreiros, acima de todas as lenhas. Azinheiras, castanheiros, nogueiras, avelaneiras, amendoeiras, pinheiros mansos, pinheiros bravos, eucaliptos e alfarrobeiras.
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Antes de pôr a casa, pôr um pomar: romanzeiras, marmeleiros, maçãs de muitas caras, peras de muitas caras, laranjeiras da baía, limeiras, limoeiros, toranjeiras, cerejeiras, ginjeiras, uveiras e figueiras.
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Antes de pôr a casa, uma horta de gaspacho.
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Antes de pôr a casa, pôr a paz, todas as oliveiras que Deus criou ou deixou inventar. Delas tirar azeites doces e picantes e os que mais houver.
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Antes de pôr a casa, pôr vinhas. Cada trepadeira com seu rincão, decidido pela natureza que mais lhe fala a bem e faz amizade.
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Que pôr? Baga e ramisco, juntas em barricas e em garrafas, rezar para que os trinetos já as consigam beber.
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Para ouvir violinos, viosinho, rabigato, encruzado, gouveio, malvasia fina, côdega do larinho, síria, bical, cercial e verdelho.
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E infantilmente, rufete porque rima com clarinete.
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Que mais fazer? Um vinho para acreditar em Deus: touriga francesa, touriga nacional, tinta barroca e tinta roriz.
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Que mais fazer? Um vinho para o Diabo, que não existe, mas que se existisse mataria a sede com veneno de antão vaz e vinhão. Nessas vinhas abraçadas piquenicar – desprezando o medo e a fealdade – e ouvir a música dos arrepios do castelo do Drácula.
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Que mais fazer? Um vinho parvo… bastardo, borrado das moscas, rabo de ovelha, tinto cão e esgana cão.
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Rir muito, deitado a adormecer ao relento de estrelas.
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As duas cores separadas e fazer palheto com a leviandade dos adolescentes.
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Pôr a casa e dentro da casa um claustro, um jardim árabe e sua água corrente pelos azulejos, e ciprestes e tamareiras.
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E lá me deitar numa sombra deleitando-me, comendo pães de searas de trigo e de centeio que o vento agita e a abetarda faz aeroporto.
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Parto os pães com as mãos, porque melhora o seu sabor. Em fartos miolos agasalho os queijos. Côdeas indefesas para trincar e tantas azeitonas.
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E infantilmente pensar ter a árvore da ciência do bem e do mal.
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E infantilmente pensar ser tudo isto possível. E infantilmente pensar que não se dorme.
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Nota: Derivado à limitação do número de caracteres da caixa das etiquetas, escrevo aqui alguns dos créditos referentes às obras incluídas.
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1– Pintura de Roy Hodrien.
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2 – Música de Frédéric Chopin – Nocturne opus 9 número 2 – por Marten Altrov.
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3 – Imagens de cachos e parras retiradas do sítio Wines ofPortugal.
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4 – Tocata e fuga em D menor BWV 565 – pela Royal Philharmonic Orchestra, dirigida por Andrew Litton.
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5 – Pintura de Michelangelo.

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