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O horizonte era ainda azul e conversavam na leveza do assunto
do tempo meteorológico. Saíram da casa instintivamente, sabe-se lá porquê, no
caminho do jardim formal. Não há jardim de buchos como esse, nem em França nem
em tamanho e complicação do labirinto.
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Os dois olhando para o chão por segundos-minutos,
curvando-se perante o Sol e ousando desobedecer ao firmarem os olhos na linha
do fim da vista, com as mãos atrás das costas e apertadas.
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Perguntou o príncipe:
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– É possível existir luz sem vida e vida sem luz?
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Antes que respondesse, como se arrumando o assunto, disse:
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– Há tantas vidas sem
luz. Diria que Deus não permitiria a luz sem vida, não faz sentido.
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– Talvez não lhe faça sentido, mas o que pensará um
agnóstico ou um ateu?
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– Repare, quando penso em Deus, provavelmente pensaremos os
crentes, digo sempre luz. Repare o que são as trevas, não estou a dizer que
existam, refiro-me ao que diz quem acredita, a maioria.
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– Ponha-se noutra posição… o que dirá um ateu ou agnóstico
ou céptico?
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– Dirá da luz do conhecimento, da luz do intelecto, da luz
da inteligência.
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– Metáforas.
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– Quando perguntei não respondi. Depois fiz uma
consideração, pessoal como devem ser estas manifestações.
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Poderá a luz ou a luz de Deus ou a luz do crer vir da
iluminação divina não ser uma metáfora?
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– Tudo pode ser tudo, então. É uma discussão um pouco vazia,
não acha?
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– Será, seja. O que pensam os homens? O que temos pensado?
Será vazia, mas só o saberemos se perguntarmos, ainda não encontrando a solução
ou uma lógica.
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– Quem somos, donde viemos, para onde vamos, como viemos,
como vamos… é debate vago e inconclusivo, e velho. Muito velho. As mais velhas.
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– É a base de muito do que pensamos e acreditamos. Não direi
as primeiras perguntas, antes houve a sobrevivência, o fogo, a roda, sei lá,
tanta coisa.
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São, de facto, perguntas antigas, mas não respondidas. Sejam
inconclusivas, mas não inúteis.
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– Respondeu quando fez a consideração inicial.
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– Foi uma consideração, como tal é pessoal.
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– Crê?
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– Não sei. Sei, mas não sei se creio.
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– Quer crer…
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– Não, não é isso. Não sei se o meu crer é verdadeiramente
crer. Não sinto, mas acredito. Penso e concluo da existência. Depois
pergunto-me o que será Deus, não quem é Deus nem se o meu Deus é o Deus, no
sentido de como o penso e concebo.
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– Sentir Deus é obrigatório? Pensar no que será Deus não é
crer, parece-me óbvio.
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– Será óbvio para si e invejo-lhe a certeza…
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– Ora, não entre por aí.
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– Não estou a ser sarcástico.
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Se não pensar no que será Deus irei acreditar nele? Pode ser
que sim, não ou talvez, em tempo passado, presente ou futuro.
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Sabe, acredito em Deus, porque tem de haver Deus, uma
explicação…
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– Explicação antiga que não resolveu realmente nada. Não
entro pela questão das religiões nem dos sacerdócios nem da índole dos homens –
somos todos feitos do mesmo barro, se aprecia a expressão. Não vejo o que possa
ter Deus resolvido.
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– Essa expressão é-me indiferente, mas serve.
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Não, não resolveu nada. Esquecendo o que me disse, concordo
consigo, acerca das religiões, sacerdócios e índoles, nada respondeu a essas
questões, básicas e que seriam inúteis se não tivessem gerado tanto pensamento.
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– A ciência, meu caro, a ciência.
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– A ciência? Não vejo em que possa a ciência ter respondido
a essas questões – antigas e inúteis, como as classificou.
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– Ora, a ciência desmascarou Deus e a crendice.
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– Esqueça a crendice e as apreciações de carácter. Fica-lhe
muito mal condenar o que os outros acreditam, pensam ou sentem. A crendice é,
tal como as religiões, sacerdócios e índole, uma parcela a deixar de parte do
que aqui realmente importa.
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– Não queria ofendê-lo, mas está a ser impertinente.
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– O que quiser. E eu pensarei o que entender a esse
respeito.
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– Muito bem! A ciência desmascarou Deus ou, se preferir, tornou-o
obsoleto.
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– O Deus Ciência não respondeu às questões primordiais, ou as
quase do ovo.
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A ciência desmentiu religiões, preceitos, atavismos, dogmas,
sacerdotes, enfim, todas essas coisas que penso partilharmos a opinião.
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A ciência não provou a inexistência de Deus. Nem a sua existência.
Poder-se-á dizer que as regras universais foram criadas por Deus e que nos
limitamos a descobri-las, para nosso proveito.
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– Os crimes cometidos em nome desse Deus ou Deuses.
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– Lá está o senhor com considerações desnecessárias e que
pensava estarem, por ambos, esclarecidas e ultrapassadas.
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Pensou nos crimes cometidos pela ciência?
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– A ciência não comete crimes! Quem os comete são os homens,
que dela inventam tecnologia.
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– Sacerdotes do Deus Ciência. Mas essa não é a questão. Vai
dar ao desnecessário e mundano.
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– Portanto, o senhor admite Deus e recusa a ciência.
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– Não admito nada nem recuso nada. Questionei, lembra-se?
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Recapitulando, a ciência não provou Deus, não o conseguiu.
Como não conseguiu provar a sua inexistência. Nem a ciência nem a filosofia nem
verdadeiramente a crença racional, note que escolhi a palavra, respondeu às
tais questões quase primordiais.
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– Muito bem. Não concordo consigo… possivelmente até em
parte. Não creio que essas questões tenham resposta, por isso inúteis, insisto,
nem que venhamos a coincidir numa conclusão. É hipótese e convergimos nas
nossas exclusões.
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Diga-me, então o que é essa crença e não crença, a sua
dúvida.
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– Na verdade creio e isso atormenta-me, porque não responde
a nada, embora encontre a lógica – artigo singular. Por outro lado, não o sinto.
Não sei se é possível acreditar em Deus sem o sentir, inversamente não se tem
de o pensar, refiro-me à provável grande maioria dos crentes.
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– Como assim? Não entendo.
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– Fé fria. Quando se fala em Deus fala-se de conforto,
ninguém está feliz com frio nem com fome.
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Embora possa divergir completamente de mim, o que quero dizer
é que acredito em Deus pela lógica de explicação da vida e do universo. Não
acredito em milagres, isso não faz sentido. Pelo que lhe disse antes, tudo tem
uma explicação e não nego a ciência – pelo contrário. Aliás, saliento que trata
de desvendar a ordenação de Deus.
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O que me confunde é a aridez, acho-me frio. Logo eu, tão
emocional, muitas vezes excessivo e impulsivo, de tão grandes paixões e
desgostos.
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– Oiço-o e entendo-o sem o entender. Compreendo um drama,
mas está sobre algo que não concebo e talvez tenha dificuldade em aceitar.
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– Sabe, chorei muito. Na verdade choro muito, na maior parte
das vezes sem lágrimas. A frieza do negrum é um fogo, que não consola, só
queima. Não sei como o apagar, com tanto passado e uma cegueira perante o que
virá, desesperança, melancolia e angústia.
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– Não tenho…
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– Quando olha o céu, o nocturno que pela natureza escura e
pontilhada pelas estrelas e silêncio que nos recolhe, o que vê? Somos grandes? Somos
pequenos? O que é aquilo? Um pano pesado traçado dos bichos, cenário, vazio,
plenitude…
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– O que veremos todos e o que sentiremos todos. Pequenos,
contemplativos… talvez todos nos sintamos inseguros.
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– Não bastando as tais perguntas quase primordiais e
universais, junto-lhe o caos. Não será o caos a ordem que rege e une universo?
O universo nasceu do quê, onde e por que razão? O que havia antes? Que dimensão?
Para onde se expande e novamente por quê?
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O que levou Deus a criá-lo ou o que quer que seja? Vê como
a ciência não tem respostas.
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– A ciência admite multiversos…
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– Ah! Ah! Ah! Como se não bastasse a confusão em que nos
mergulhámos… sim, isso. O que, aliás, vai dar ao mesmo.
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O caos é caos ou é a ordem ou o seu motor?
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– …
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– Veja o pardal e a pardoca… não deixo de ver com um sorriso
a propagação das espécies… olhe, juntemos-lhe o dever do sexo e, já agora, o
prazer. Nem sei se todas as criaturas têm prazer no sexo.
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– Não imagino uma planta com orgasmos.
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– Contudo tudo o que tem vida se reproduz. Porquê?
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– …
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– Não diga, apreciemos a luz e a sombra do entardecer.
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– A luz…
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– Sim, a luz…