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– Que ar é esse?
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– Nada, não sei bem. Estava a pensar.
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– A pensar? A pensar em quê?
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– Só a pensar.
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– Isso não é nada.
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– Estava a pensar no que vejo.
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– Sempre é alguma coisa. E que coisa é essa?
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– O gato.
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– O que tem o gato?
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– Está à janela.
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– O que tem isso de surpreendente?
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– Repare. Repare bem. Pense-se no lugar do gato… pense-se e
verá que se pensa pessoa. Um gato é uma pessoa.
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– …
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– Está ali como estaria qualquer pessoa, do lado de dentro,
confortável e quente, a ver o jardim e a chuva, ao luar.
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– Um gato é uma pessoa?!
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– É. Mesmo que não seja, o gato sente-se pessoa.
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– Pensou isso? Pensa isso?
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– Fale menos e veja. O gato está à janela, uma velha janela
de guilhotina e com vidrinhos quadrados toscos. É de noite e chove. Intui-se
que está frio lá fora…
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– Não entendo?
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– Não entende? Pense numa fotografia. Para ser mais fácil,
pense numa fotografia a preto e branco… repare como é fácil ver um poema.
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– Um bocado simples…
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– Simples e até piroso. Repare, se a cena induz a poesia, o
preto e branco realça todo o sentimento… é muito mais fácil fazer fotografias a
preto e branco.
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– Percebo…
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– É tudo fácil. Esta fotografia
é fácil… A personagem apropria-se do espaço … é um gato, um senhor… por acaso
este é uma gata – não importa. A personagem, o cenário e a ambiência são
inspiradas, e uma fotografia a preto e branco imortaliza e acrescenta.
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– Porém, pensa que é pirosa.
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– A poesia e o bom-gosto não são sinónimos. Como não são
antónimos. E uma fotografia pirosa pode ser poderosa, inspiradora e agradável.
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– Tal como a perfeição e a beleza não são a mesma coisa. Paradigmaticamente
podem ser antagónicas.
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– Concordo. Como o fácil não quer dizer mau. E até que ponto
nos permitimos julgar e sentenciar o gosto? Até que ponto isso é correcto e
honesto?
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– É inevitável.
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– O que é para si? Gosta do que vê? O que mudaria e como?
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– Não sei se concorde com ser poesia. Concordo com o que
disse da fotografia a preto e branco… quanto ao resto tenho dúvidas. Aliás,
quando aqui cheguei nem reparei que olhava para a gata.
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– E se a poesia for um instante – quando acontece a
revelação ou antes que a cena se escangalhe – existe? Ou só se for fixada? Como
imagem ou com palavras.
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– O momento. Quando se chega ao debate sobre o momento só há
dois caminhos: o do disparate e o da perda de tempo.
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– Deixe-se de coisas, sabe perfeitamente que acabou de
escrever isso e sabe que é só um desabafo de enfrentamento.
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– Conhece-me.
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– Um só instante.
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– Dito assim, parece-me que não tenho resposta, nem mesmo
uma resposta errada. Mas há tantas formas de fazer as coisas.
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– Falámos da beleza e da perfeição. Todos os factores que se
juntem não resolvem o problema, só o confirmam… arte, instinto, ângulo de visão…
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Entende agora o que lhe respondi quando me perguntou que
cara era aquela e no que pensava?
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– Escrevia poesia.
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– Não escrevia, a poesia está ali. Tudo aquilo, tudo o que
atrai, é poesia, não é preciso fazer nada. E mesmo que a fotografem a preto e
branco, esta gata tem cor, como a luz da noite.
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– …
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– Por isso lhe disse que estava a pensar. Quando se pensa
simplesmente, pensa-se muito. Temos um poema, não precisamos de o escrever.
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– É como o Gato de Schrödinger. Aquela gata está simultaneamente
na poesia e fora dela.
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Nota: Não consegui identificar a autoria da foto. Se alguém souber, peço o favor de me informar, de modo a atribuir os créditos autorais,
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