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Pela noite no palácio deserto andava ao comprimento da casa como
a missão do comboio. Infeliz como um pinguim engripado.
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De um lado a luz que basta, projectando-se nas paredes e
dando ao príncipe uma sombra teatralmente simples, do outro as coisas dormentes
de impréstimo momentâneo.
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Na vigília, incompetente para dormir, dizia-se:
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– Só tenho vergonha quando penso no que pensarão de mim. Há
tanto para pensar, tantos humores e caracteres, penso e não os tenho a todos. Dói-me
o que penso que pensam.
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A sombra respondia-lhe:
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– …
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Prosseguia:
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– Não sou o centro do universo nem desta casa, sou-o de mim,
canso-me.
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Quando me vejo disforme, quando já não bebem do meu vinho e
regressam para onde quiserem, fico rei e pateta.
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É vergonha! De saber o que sou, de pensar saber do que
pensam e do que penso disso. É vergonha.
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Não, não é isso.
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Vergonha tenho do Greco. Ter um Greco não é uma vergonha
comum. Poucos a têm. Até há que aprecie, há gente para tudo. Vergonha e
vergonha, de Greco, são homógrafas e homófonas… deve ser isso.
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Um quadro de Greco é um quasimodo. O Quasimodo verdadeiro,
sem réstia de amável. Não consegue ser negro, é um fastidioso cinzento, Greco
tem postulas verdes. Grotesco que nem para atracção de feira, por pudor.
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Para que o tenho?
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Tenho-o prisioneiro, numa masmorra de tortura, para que um
suicida não tenha coragem diante do castigo.
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Digo asneiras. Sei lá por que o tenho. Possivelmente faz
parte da casa, como eu e o ar.
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Quando se tem a perfeição, deseja-se a imperfeição. A
fealdade…
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Não. Não é a fealdade. Imperfeição e fealdade não são
sinónimos. Grego é perfeito na medida que pode alguém.
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A fealdade é Greco.
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A fealdade é uma tristeza de ordem diferente da tristeza. A feiura
talvez possa ser divina, não o horrível. O Diabo é infame, mas recebe a
caridade, não Greco. Não o homem, nem a sua cabeça mortificada, mas aquelas
coisas. Greco não é indecoroso nem vil nem malfeito. É medonho.
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Será?
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Nada há que não me desminta. Nada de que não me arrependa.
Nada que não contrarie. Não há nada que não adie. Sou um fantoche de nãos.
Escravo do tempo.
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Quantas horas terá esta noite? Deus queira que ninguém
acorde, espero estar só.
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Não sei se tenho destino ou fado.
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Oiço uma voz, do universo ou oiço-me autoritário e julgo ser
o universo.
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O que é?
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É onde a luz mundana não chega, o céu é puro e se descoberto
de nuvens há noite magnífica.
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Não é, aí é donde se vê e para onde se olha.
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O universo é até ali ou dali para diante?
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Penso no céu e se a voz que oiço… é complicado. Está frio, preciso
de um gato.
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O preto e branco é mais difícil a cores. Esse é o drama do
escarlate.
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O que quererei dizer com isto?
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Preciso da cama e dum gato. Que não tenham ido fazer o que
fazem os gatos à noite, quando não nos aquecem.
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Às vezes perco-me nesta casa, basta-me pensar ou pensar que
penso ou que a dor é uma coisa concreta. Nunca vi a dor. Como nunca vi Deus.
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Antes que seja manhã.
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