digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

segunda-feira, maio 15, 2017

Antes que seja amanhã

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Pela noite no palácio deserto andava ao comprimento da casa como a missão do comboio. Infeliz como um pinguim engripado.
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De um lado a luz que basta, projectando-se nas paredes e dando ao príncipe uma sombra teatralmente simples, do outro as coisas dormentes de impréstimo momentâneo.
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Na vigília, incompetente para dormir, dizia-se:
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– Só tenho vergonha quando penso no que pensarão de mim. Há tanto para pensar, tantos humores e caracteres, penso e não os tenho a todos. Dói-me o que penso que pensam.
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A sombra respondia-lhe:
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– …
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Prosseguia:
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– Não sou o centro do universo nem desta casa, sou-o de mim, canso-me.
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Quando me vejo disforme, quando já não bebem do meu vinho e regressam para onde quiserem, fico rei e pateta.
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É vergonha! De saber o que sou, de pensar saber do que pensam e do que penso disso. É vergonha.
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Não, não é isso.
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Vergonha tenho do Greco. Ter um Greco não é uma vergonha comum. Poucos a têm. Até há que aprecie, há gente para tudo. Vergonha e vergonha, de Greco, são homógrafas e homófonas… deve ser isso.
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Um quadro de Greco é um quasimodo. O Quasimodo verdadeiro, sem réstia de amável. Não consegue ser negro, é um fastidioso cinzento, Greco tem postulas verdes. Grotesco que nem para atracção de feira, por pudor.
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Para que o tenho?
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Tenho-o prisioneiro, numa masmorra de tortura, para que um suicida não tenha coragem diante do castigo.
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Digo asneiras. Sei lá por que o tenho. Possivelmente faz parte da casa, como eu e o ar.
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Quando se tem a perfeição, deseja-se a imperfeição. A fealdade…
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Não. Não é a fealdade. Imperfeição e fealdade não são sinónimos. Grego é perfeito na medida que pode alguém.
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A fealdade é Greco.
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A fealdade é uma tristeza de ordem diferente da tristeza. A feiura talvez possa ser divina, não o horrível. O Diabo é infame, mas recebe a caridade, não Greco. Não o homem, nem a sua cabeça mortificada, mas aquelas coisas. Greco não é indecoroso nem vil nem malfeito. É medonho.
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Será?
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Nada há que não me desminta. Nada de que não me arrependa. Nada que não contrarie. Não há nada que não adie. Sou um fantoche de nãos. Escravo do tempo.
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Quantas horas terá esta noite? Deus queira que ninguém acorde, espero estar só.
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Não sei se tenho destino ou fado.
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Oiço uma voz, do universo ou oiço-me autoritário e julgo ser o universo.
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O que é?
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É onde a luz mundana não chega, o céu é puro e se descoberto de nuvens há noite magnífica.
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Não é, aí é donde se vê e para onde se olha.
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O universo é até ali ou dali para diante?
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Penso no céu e se a voz que oiço… é complicado. Está frio, preciso de um gato.
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O preto e branco é mais difícil a cores. Esse é o drama do escarlate.
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O que quererei dizer com isto?
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Preciso da cama e dum gato. Que não tenham ido fazer o que fazem os gatos à noite, quando não nos aquecem.
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Às vezes perco-me nesta casa, basta-me pensar ou pensar que penso ou que a dor é uma coisa concreta. Nunca vi a dor. Como nunca vi Deus.
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Antes que seja manhã.

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