digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

terça-feira, setembro 03, 2019

Cinquenta, duas vezes vinte e cinco


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Errático como até aqui, aos cinquenta.
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Sei, já me disseram e sei por mim, porque, apesar de tudo, ainda vou sabendo de mim:
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Aos vinte e cinco anos não se é velho!
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Dizem e até também, os números não são objectivos nem emocionais.
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Assim direi tentando na linha certa e certo de vadio nas datas e momentos.
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Foi difícil entender os vinte e cinco anos e perceber que não faz sentido sentir-se velho aos vinte e cinco anos e quanto mais tempo passou mais percebi que aos vinte e cinco anos não se é velho.
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Senti.
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Senti-me velho quando um tipo, com o ar porreiro e asseado que tinham todos os portugueses na Expo 98, me perguntou:
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– O senhor tem lume?
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O senhor era eu! Valha-me Deus! Que salto, que queda. Ninguém me tratava por senhor, só no dever.
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Doeu um bocadinho, passou. Mas aquela dorzinha…
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Se tivesse acontecido aos vinte e cinco anos talvez me levassem ao banco do Hospital de São José.
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Estou em quase cinquenta anos – acho chegados – e compreendo o sofrimento dos vinte e cinco anos.
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Obviamente, ter vinte e cinco anos dói. Nem fará sentido outra forma, ainda a outra coisa tenha lógica e seja delírio.
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Não sei se sinto nostalgia, sabor quase-pouco saboreado. Um pouquinho.
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Aos quarenta e nove anos assumo-me em cinquenta. Na minha cabeça é claro.
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Os quilogramas todos que perdi deram-me uma vida e o retrato de vida. Estou velho. Olho-me e estou velho.
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O mal é não ter vinte e cinco anos. Aos vinte e seis anos voltei a ter vinte e seis anos, iguais aos vinte e quatro anos. Aos cinquenta sou uma colecção inquieta. Uma colecção é um museu.
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Vejo os meus cinquenta anos nas amigas tornadas mães, parecidas com as mães. Não tardará serão avós, com as feições fofinhas das avós.
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Vejo os meus cinquentas anos nos amigos tornados pais, alguns na meia-idade que é meia-idade. Os pais deles, eram antigos quando eu era jovem, independentemente da idade trazida e levada.
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Dizem as rugas e as expressões dos problemas claros nos olhos e das dores nascendo e crescendo. São autocópias.
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Escrevo mais sobre os homens, porque sou homem. Impressionam-me mais as mulheres porque sou homem. Não quero ser outra coisa que franco nisto do meu ser homem, não é machismo, é impressionismo na impossibilidade do realismo e fujo do fácil-mau-gosto de pôr surrealismo. Leiam-no, se quiserem, contudo estou em verdade. Não é crueldade se isso sentirem – faltam-me outros olhos.
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Não tenho dinheiro para um descapotável. Não compraria. Desejo um Bentley como qualquer cinquentão guloso de tudo e assim seria se estivesse nos vintes, trintas e quarentas.
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A calvície não me incomoda nem a visão faltando ao perto nem os sinais da próstata, remexe o espelho e a numeração disto junto.
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Não me enfio nas festas nostálgicas de música dos anos oitenta. Não oiço Phill Collins, Elton John, Chris de Burgh e outras vozes detestáveis – felizmente, sempre.
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Asseio de e para a saúde.
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Olhando para depois – visto daqui para lá – dos vinte e cinco anos vejo a infância e a adolescência, das suas complicações e ainda. Entre o final duma e início doutra chegaram Kim Wilde e Kim Carnes – talvez os nomes não sejam coincidência, como a cor dos cabelos.
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Vi fotografias da Kim Wilde e os seus mais dez anos do que eu estão iguais aos meus. Não está avó, estou com cinquenta anos.
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A Kim Carnes… velha! Inequivocamente velha. Tão velha como o era em mil novecentos e oitenta e um, quando tinha trinta e seis anos.
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Pouco tempo depois, eu queria um descapotável, o Saab 900. Era lindo!
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Não me imagino a jardinar rosas, sei que ganharei o Euromilhões e comprarei o Bentley.
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Ainda me dói saber que entro na meia-idade, pensando na aposentação – onde estou contrariado e sem o troco.
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Penso mais vezes no Euromilhões do que na reforma.
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Para ilustrar, seria fácil meter aqui o «Forever Young» dos Alphaville… pieguice preguiçosa –  qualquer coisa dos anos oitenta.
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O que me dói de memória não é a década de oitenta, a de noventa.
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Não quero repetir nem ser. Não quero ser a idade a que chego.
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Vivi na Estónia – a primeira casa, tão grande quanto a Estónia e velha como o Báltico.
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Vive fantasmas claramente. Havia um quarto para mudar de roupa, guardar discos e alguns livros – não tinha janelas, a luz entrava pelas bandeiras.
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Nessa câmara mágica ouvia Enya, a mais maravilhosa voz dum país de unicórnios, e enlevava-me com o «Return to inocence», dos Enigma. O Pedro Abrunhosa revolvia o país e a Geração X.
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A luz de Lisboa directamente do rio cria o que faz sempre onde é. Passando as bandeiras era – nem velinhas, incenso, especiaria, taça tibetana ou gato.
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Na sala jantei o meu arroz com compota de ameixa que todos gostavam – o que se tolera nos vintes.
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Na sala gostava de whisky e tinha um aquário – morreram tantos peixes, por quase tudo.
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Na sala fumava, coisa estúpida iniciada estupidamente como as coisas estúpidas, acontecida mais tarde do que a idade parva.
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Na sala ouvia jazz, porque gostava. Só de pensar fico arrepiado, não me envergonho.
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Todo orgulhoso, importante de crescido, escrevia num computador, ao lado duma porta para a varanda onde se pressentia o Tejo, só um traço da cor.
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O quarto era virado para a mesma luz-aragem, aí fiz amor.
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Na cama, no chão e no escritório chorei desenfreado de saudade-ciúme.
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Da varanda pensei cair no dia em que me mudei.
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Ainda uma não se despejara nem a outra se enchera e sentia a saudade-pressentimento duma vida a passar sem voltar. Tinha vinte e oito anos e foi no dia um de Agosto.
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Antes da Estónia ia para casas de amigos. Íamos muito à praia, víamos filmes, líamos livros, dizíamos piadas, jogávamos cartas e Trivial Persuit. Amavam-se genuinamente, como aos trinta.
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Ia à praia, ouvia a Energia, na ponte ou quase no mar. Não havia nada como a Energia e ríamo-nos muito de felizes como quanto temos vinte e trinta.
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Fomos à Tunísia. Que férias!… Ainda sufocando de fugir. Em Hammamet não havia gay que não me descobrisse e se tentasse. Se não engaysei é porque os homens não me atraem.
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Quando deixei a Estónia – disse da saudade-pressentimento – acreditava que comprar uma casa era melhor do que pagar uma renda. Era mais barato, mesmo com o subsídio para o arrendamento dos jovens…
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Ganhava bem e tinha direito ao valor completo. Foram felizes esses dias em que os países ricos nos entornavam dinheiro.
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A noite de trinta e um de Julho para um de Agosto de mil novecentos e noventa e oito passei-a a chorar e a maldizer a distância.
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A saudade-pressentimento epafiniada na Estónia comprovou-se no século que chegava – além dos vários piores em comboio.
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A propósito: sorrio sempre com um pantomineiro dos astros – da magia do céu que nunca existiu – que escreveu a garantia de como seria magnífica, para os capricornianos, a primeira década dos anos zero.
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Tinha tudo para ser feliz, pois não há nada de Capricórnio que não me caia em cima. Eu todo-quase sou diferente do tudo escrito… já me enfiaram ascendentes de quase tudo, proximidades chegadas a Sagitário e a Aquário, até me garantiram que a hora do nascimento estava errada. Por esses caminhos, veredas nocturnas.
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A década maravilhosa fez-se dos piores anos da minha vida!
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Quase tudo de mau – no exagero e falibilidade das palavras absolutas – apareceu naquela casa e em mim, pela casa e naquela casa por mim.
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Vendia-a há poucos meses e apareceu-me um alívio!... Foram dolorosíssimas as antepenúltima e penúltima subidas. Escadas horrorosas de luz e de luz-espírito.
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Seis anos e tal depois, não percebo aquilo nem ter permanecido catorze anos.
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Mas a luz da Estónia não veio e não virá – abuso dos absolutamentes. Aqui tenho outra vida e outras vidas.
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Na Estónia, a vizinha do lado chamava-se Cristina. Redonda, parecia ter sempre azeite sob o lábio até queixo. Às vezes o marido embebedava-se e, se ela não estava, esperava-a na escada com o garrafão, incapaz de usar a chave. Uma vez repetiu-se na minha campainha perguntando-me pela Tininha.
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Dessa vez, decidiu-se a procurá-la. Despejou-se nas escadas como o amigo de cinco litros. Quando chegou, a Tininha deu-lhe um responso.
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Nas semanas que me competia, a Tininha punha na rua o caixote do lixo do prédio, porque sou homem – disse-o.
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A Tininha deixava os recados para o marido, com mais desastres ortográficos do que acertos, no lado de fora da porta de casa:
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– Telefonei a diser que estás mal esposto.
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Talvez até fosse pior. Adoro o «mal esposto».
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A última vez que vi a Tininha foi na televisão. Empunhava um cartaz e bradava pela inocência de Carlos Cruz.
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Na Casa dos Horrores, a vizinha do lado falava e ralhava com os cães, porque me infernizavam as manhãs de domingo. Chamei a polícia duas vezes.
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Ficámos amigos, como se deseja para a vizinhança. Quando mudei as janelas, para novas de vidro-duplo, dei-lhe as minhas, porque, apesar de feias, fechavam a rua e água da chuva.
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Nas semanas que me competiam, a Dona Teresa punha na rua o caixote do lixo do prédio, porque sou homem – disse-o, como a Tininha.
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A Dona Teresa parecia-me ser boa pessoa e passeou um pato. O marido encontrara um patinho na estrada e levou-o para casa. O bicho cresceu e, se passeava os cães, levava o pato à rua com um baraço ao pescoço.
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Os trintas foram tristíssimos e os quarenta começaram amargos. A Casa dos Horrores ditava-me e obedecia-lhe.
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O pouco de bom que guardo do tempo da vivência na Casa dos Horrores é o tratamento dos comerciantes do bairro. Especialmente por a Dona São, da mercearia, me chamar «menino João».
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As coisas endireitaram-se quando comecei a ver o cemitério, numa das ruas mais frias de Lisboa – até no Verão, em algumas horas, é comum passearem-se pinguins.
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Na Casa dos Horrores ouvia Marisa Monte e Adriana Calcanhotto. Ao instaurar-se a ditadura da saudade- incompreensão, toda a música daí para trás ficou proibida – ela surgia de todo o lado, como um boneco de mola se evade da caixa.
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«Você», Mãozinha, com a mensagem clara da minha vida e sem pretérito. Gorillaz fez-me respiração boca-a-boca e Da Weasel foi. Enapá 2000 e Irmãos Catita, sou-lhes muito agradecido.
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Duas gatas, três gatas salvaram-me a vida muitas vezes. Não evitando idas ao Hospital de São José.
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Uma desses dias de negrum marcou-me mais, porque me assassinou um amigo – juro a deslembrança se foi na véspera ou no seguinte.
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Como antes, espatifei amores – pelo mesmo de antes e pela doença. Vampirizei, magoei e outras. Entupi-me de tristezas, de todas a pior é-me a melancolia.
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Na Casa dos Horrores entrou e expulsei a Flor da Luz. Nela reentrou, trazendo as claridades – a sua e a do Menino. Que os saiba aninhar e eles.
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Nos dias magníficos do Capricórnio e mais uns, quase todos os amigos foram amigos – algumas desilusões, mas Sol de quem não esperava nada nem esperava esperar. Por desapego e bondade minhas, não perdi amigos. Acrescentei os outros.
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Há sempre pequenos-médios-grandes-todos-tristes-desastres – aqui, em toda a parte. A memória da Estónia assemelha-se à das birras que os filhos nunca fizeram, nem na idade delas – garantem as mães vinte anos à frente.
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A Estónia é quase perfeita e a Casa dos Horrores é um jazigo com jardim de pétalas secas.
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A Estónia foi a única casa inteiramente feliz – chorei muito naqueles Junho e Julho de mil novecentos e noventa e oito. Depois passei a chorar muitíssimo maisíssimo na Casa dos Horrores.
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Sinceramente, achei-certeza de que a crise da meia-idade seria como a lâmina de fazer a barba a aliviar-me a pele. Refiro, porque descobri o desejo de aliviar carbono na vivência duma angústia: vou cortar o cabelo, barbeio-me ou corto as unhas.
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Sinto-me dúvidas. As amigas parecem-se com as mães e têm vida desenhada no rosto. O espelho diz-me a idade. Das transfusões de vinho dos vintes-trintas-pequeno-quarentas, quase me envergonho do pouco de hoje.
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Os amigos estão piores. Não se parecem com os pais. Parecem-se com eles mesmos em gordos, em escanzelados e carecas. São caricaturas suas como o sou. Há pouco mais dum ano estava disforme, gordíssimo e inchado. Estou magro como nunca. Sou igual, um boneco de mim mesmo.
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As miúdas passam na rua. A Flor da Luz está bonita como nunca esteve e não sinto uma falta. Tenho olhos-cabeça para não me vestir como adolescente nem desejo um descapotável, nem o Saab 900. O Bentley são letras doutra coisa.
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Neste tempo, doem-me os vinte e cinco. Tanto quantos os cinquenta dos meus amigos que chegaram antes e vão acompanhar.
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Há quem seja absoluto em não se arrepender de nada – arrogância, timidez ou distração? Garantem que fariam o mesmo, porque teriam a mesma idade e os momentos. Afirmam ser todos dias passados, as somas.
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Mais do que o Bentley desejo regressar, não para ser novo. Retornar para evitar as lágrimas que fiz e as que me fizeram.
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Perceber isto é, possivelmente, ter cinquenta anos, mas digo-o há muitos anos. Reconhecendo todas as asneiras continuei acrescentando. Efabulo inverter o tempo para me emendar.
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Tirando o homoerotismo, vejo-me o retrato de Dorian Gray. Nem tão chegado a tanto pecado mas da fealdade dos cinquenta anos – a calvície é tranquila.
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Olho para o espelho e não vejo o que espero. Sou eu, mas qual eu? Como veja a fotografia sépia do tio-avô e reconheça os genes.
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Desde uma complicação, tenho dificuldade em fixar caras. Cumprimento quem não conheço e ignoro conhecidos. Posso fixar rostos banais e esquecer-me dos exóticos. No outro dia, na farmácia, disseram-me que isso é prosopagnosia.
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Fui ler e sou abençoado! Há os que não memorizam os familiares. Até mesmo o seu rosto reflectido.
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Não é por prosopagnosia – é mais fácil dizer «mau fisionomista» – a dificuldade em compreender a pessoa que o vidro me envia. É quase como chegava ébrio a casa e me fotografava ao espelho. Nesses autorretratos sou outra pessoa, não só pela falta da nitidez que o álcool roubava.
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Desconheço se não me revejo no espelho por nele ver os cinquenta anos – artifícios do cérebro.
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Fácil não está a ser. Possivelmente, aos cinquenta e um serei os vinte e seis.

sexta-feira, agosto 09, 2019

Galé

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Sim, isso, por aí, por isso.
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Onde o Sol se renova e a Terra se engana, aos olhos.
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Vendo o azul-lilás ao lilás ao lilás-rosa ao rosa ao rosa-laranja ao laranja.
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Como os refrescos e a pele escaldada.
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A noite é cinema, das estrelas que me esqueci de olhar. Talvez nem se vissem no tanto barulho da alegria.
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Vem a noite no Verão e futura-se a praia, só em frente, chegando-se desviando das árvores e das coisas.
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Pela manhã tardia, o doce e a calma. Quase ninguém acordou, mas algures há cães por passear e gatos quase-invisíveis.
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Pela manhã tardia chega-se à praia, onde se chega indo sempre em frente, bastando o desvio das árvores e das coisas.
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O Sol é luz, o mar está salgado, como pudesse ser diferente.
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Não importa a cor denunciando o humor da água.
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Uma bandeira axadrezada não voa sobre a areia, não há meta nem fim.
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Nem o Sol se renova nem o mar se importa.
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Haverá noite e manhã. É claro, nem se precisa acreditar.

Rotina


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Compreendi. Esse momento era e nesse momento compreendi.
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Deito-me noitadamente, mesmo à tarde e, por vezes, pela manhã.
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Sonho com sede e acordo. Se não a água, é uma gata.
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Acordo e uma gata espera. Se acordado, impacienta-se.
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Sirvo-a nos caprichos, a cadela inveja-as. Já acreditou, hoje obedece-lhes.
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Depois de levantado, levanto-me. Levanto-me como todos e, se não todos, contrariado.
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Faço por me esquecer e não atrasar. Banho e barba, se puder estar limpo.
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Lavo os dentes antes de comer, saio apressadamente e compreendo.
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Os dentes lavam-se depois de comer.

quinta-feira, agosto 08, 2019

De vazio vestidos

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Se me disseram e se.
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Se quando a vi e esperei, não esperava outra da aceitação.
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A sua sorte foi não me ter dado a sua.
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Assim vazios como despidos dissemos coisa duma despedida e ficámos.
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Não falha um, diariamente lembro-me dessa e todas como e como se fossem da noite passada.
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Perdi a conta e não desconfio da certeza de muitas mais.
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Se a vergonha tivesse voz, mais vergonha eu teria.
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Nem sei se diga do meu amor-próprio servil e doutros desastres confusos e mais ainda do que o pudor e a memória me permitem contar. Talvez a multidão saiba.
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É assim falando que falo do que quero e não quero e não-quero-que-quero e do que todos desconfiam e do que todos sabem e, pior talvez, do que a dúvida se esqueceram.
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Se confuso? Deviam conhecer-me.
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Pela manhã, bebe-se água.
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À noite toma-se um comprimido, mas é para outras coisas.

quinta-feira, junho 06, 2019

O caminho das pedras

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Se disserem que tenho pressa, irei à velocidade das lágrimas.
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Numa água de mau-marear, pior do que perder o barco é perder o mar.
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Até a água-chão não tem freio nem impedimento, tão abrupta quanto a torrente-súbita.
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Saltando do leito, o caminho de vai-vem fecha-se como muralha – não há atalho nem rota-mais-longa.
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O caminho atrás de mim não será caminho, nem até queimado.
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As pedras todas feitas inúteis por maldade serão o muro – atrás dele me fecharei do lado de fora.
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Nenhuma rocha será pista, porque apressado não terei espera para as semear.

Cada dia


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A minha vida não dá um sonho.

quarta-feira, junho 05, 2019

Siga em frente e vire na segunda rua à direita


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Não conhecerás a vida do silêncio.
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Nem distinguirás os dias da morte olhando para.
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Digo-te, porque pareces ser uma criança inteligente:
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– As coisas partem-se. A princípio custa um bocadinho perder.
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O jarro de vidro, lindo de esbelto, partiu-se porque uma gata.
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O livro perdeu estória ao molhar-se no banho.
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Sobrevivi, lembro-me e já não me encanto.
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A ti, que pareces ser o que queres parecer ser… digo-te:
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– O fumo mostra.
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Tu, que és de conhecimento de qualquer partícula do muito ou do pouco e até da esperança de não saber…
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Digo-te com o atrevimento de quem pensa pouco no que diz:
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– O Sol, a luz e o dia vencem e perdem.
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Mas se tiver de ser, perdem e perdem como o eclipse, o reflexo lunar, o lusco-fusco, a penumbra, a sombra, a noite e o passado.
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O medo esconde-se na luz e escondemo-nos na noite.
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Como o temor divino do trovão e o espanto da luz calada do Demónio.
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Sem pensar não chegarás ao silêncio mas as tuas perguntas não se ouvem.
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Diz-me o que é o silêncio.
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Não to posso mostrar porque apenas na soberba da modéstia exagerada.
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Fico assim parecendo-te vago ou estúpido.
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Modestamente estúpido.

A novidade


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Novo não será nem foi. Haverá tanta coisas assim perenemente caduca mas não me ocorre nem me apetece o aborrecimento de procurar nem me dá vontade de saborear a vitória ou o sangue da derrota.
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Por isso e porque quero, é. Porque aqui é o meu querer todo dos momentos, da glória ao arrependimento.
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Por isso, tanto me faz.
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Por isso, novo não será nem foi.

terça-feira, junho 04, 2019

Como também se faz o negro


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Se não sabe o escuro não compreende a cor. O negro se faz pelo vermelho e demora a explicar as outras quase quanto a vida e o seu sentido.
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Demorado de contar resume-se a deixa lá, um dia conto.
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Se incompreende, talvez um dia conte.
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Como o espanto do assalto pela bolsa ou a vida, talvez um dia.
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Possa o cego ver e o tolo compreender.
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Que o escarlate furtivo do fazer vida é negro.
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A luz-negra dá à luz a inclaridade e a sombra da sombra.
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Não há verdade que a luz não revele até essa.

domingo, junho 02, 2019

Os estranhos


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Só falo aos estranhos que conheço, incerto de desencanto.
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Estrangeiros, caminham paralelamente afastados à distância duma mão.
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Excepcionais, falam línguas que não conhecem além da boca.
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Extraordinários, juram palavras de bondade, guardando os enganos na boca com que beijam.
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Nem os desastres configuram os rostos desfigurados no leito da água de toda a maneira.
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A água não mente, mas com água se.
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Deitado no leito da água trago e também o intragável.
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A água traz e o barco leva e a água leva.

sábado, junho 01, 2019

Previsão do tempo

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Previsão meteorológica:
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– Céu limpo e calor temperado.
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Quase como aqueles dias todos, de calor desmesurado, onde distante mais distante estive enganado na vida.
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Lá fora como nesses dias, a imprevisão meteorológica:
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– Chuva em cada feixe e congelação na ascensão ao Inferno.
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A previsão meteorológica:
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– Céu limpo e calor desmesurado.
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Longe só à noite o repouso em bem porque foram tempestades da vontade.
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Se veleja ao contrário do mar não há previsão se haverá uma praia para pernoitar seja a que for.
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O tempo é inexacto.

quinta-feira, maio 30, 2019


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É a esquina, a paragem para a vista e conhecer que as estradas são rios e o caminho obrigatório não é das marés e das correntes, é do que tem de ser.
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O resto são o beijo da chegada e o abraço da partida. Tanto faz.

quarta-feira, maio 29, 2019

Dela cair


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Bebi do copo na fonte e da boca e deixei-me molhar no tempo dela cair e da geada se formar.
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As pedras cinzentas banais do coração molhado são-me do que quiserem e não as querendo.
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A água é ponte daqui lágrima e dali vida.
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Se a água é parda e o pesar manda por si.

Gatos porque os vi ao Sol


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Um dia voltarias, assim o Verão chegasse no minuto quando entra a primeira brisa levando as cortinas de finura translúcida e o gato a recolher-se como doutra vez igual ou diferente.
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Falavas-me da Lua e dos gatos, das Luanas e da Lua, das Lunas e da Lua e dos gatos da Lua, como todos os gatos.
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Sabes como sei da luz e dos incensos, da magia mística junta a folhas de plantas esquisitas e outras, acolhidas nas caixas de madeira e embutidos de osso, não escondidas e sim recatadas.
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Sabes dos cheiros do que não fumámos.
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Sei desse ímpeto, coisa de bichinho perfurador e hoje sei explicar como sabia e ainda. Recordo-me da minha sombra na areia e do frango junto à estrada da volta.
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Dos gatos tibetanos bebendo nas taças e a luz forçando as cortinas na entrada com o vento nas tardes infinitas até às noites.
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Como breve se foi sem nada ficado como os gatos na luz e no luar. Sem te amar foste e no ficares foste amada. Saíste como chegaste como os gatos do telhado à luz e ao luar e ainda mesmo nas casas.
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Sabia que voltarias sem que te amasse e esquecida me lembrasses dos gatos, da Lua, das Luanas e das Lunas, das taças tibetanas, dos incensos e disso tudo que unidos nos separaram.
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Não por isso e ficamos assim numa sombra na praia, estéreis.
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Estéreis mudos esquecidos por só por lembrar se lembra, estéreis. Se não ficou foi para não ficar, só centelha por causa de ver um gato ao Sol.

terça-feira, maio 07, 2019

No Museu de Santo António


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O meu pai não pintou muito temas religiosos, quase nada. Talvez por ser lisboeta ou por ser do mundo, Santo António ficou bem no coração do mestre e este é um dos raros trabalhos nesta temática.
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Hoje libertei esta pintura a petróleo, que encontrou casa no Museu de Santo António. Situado junto à Sé Patriarcal de Lisboa, é uma reunião pequenina, tratada com rigor e agrado. Quem quiser pode ser rápido ou demorar-se.
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Agradeço a disponibilidade e o acolhimento de Pedro Teutónio Pereira, responsável pelo Museu de Santo António.
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Nota: A fraca qualidade da imagem não se deve ao pintor, mas ao fotógrafo (eu).

Estrela da Sé, por causa do Santo António


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Comi a melhor musse de chocolate. Quase aos cinquenta, o doce das crianças é-me, sem qualquer memória daquela, qualquer coisa que, não o sendo, é luz, por falta duma banal palavra – acontece falhar um termo no conceito-língua. Como pude esperar. Aguardei porque há o dom da ignorância e do privilégio do conhecimento.
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Não pergunto, sou claro: como pude esperar. Graças – a quem ou quê, na falta doutra coisa-ser – ao dom da ignorância e do privilégio do conhecimento.
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O resto já sabia. É comida do sempre, da Lisboa do meu pai – a minha mãe não é daqui. Dá tanto trabalho explicar, muito mais do que dizer. Vagamente, guardando por pirraça, sedução ou impaciência.
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Se não sabem, leiam a cidade inexistente – ainda antes dos turistas a ocuparem –, passem os olhos pelas ruas fixadas na verdade das fotografias e na infidelidade dos traços.
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Se não sabem é porque foram morrendo, movendo-se para a borda da terra e sem vergonha de perderem a aldeia da foz do Tejo – todas as aldeias definham, assim Lisboa.
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Perto da Sé, só não conhece o milagre da sobrevivência quem não olha para cima nem para baixo, apenasmente para uma coisa qualquer que nos livrinhos e cibernáticos se lêem.
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A Estrela da Sé existe, não está escondida, não foi devassada e é uma verdade, porque não é quem não é. Não finge o passado nem se nega a qualquer vento de feição que possa soprar para a tal-coisa-que-preguiçosamente-se-chamará-luz.
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Há as ceboladas, os bacalhaus, as veganices e a musse de chocolate.
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A musse tem segredo à vista como a casa de pasto. Não se esconde nem se exibe. Só não vê quem.
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A Estrela da Sé é o que é e tenho a certeza de quem ama o que faz – e com a chave da porta da mina de ouro – é fiel, não se vai embora, porque pertence à cidade.
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Só quem não leu a cidade pode incompreender.
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Nota 1: voltei hoje ao Estrela da Sé, por milagre de Santo António, taumaturco com o menino que o meu pai pintou e ficou para o Museu de Santo António – ali juntinho à Sé Patriarcal de Lisboa.
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Nota 2: A qualidade da imagem é péssima, não por culpa do pintor, mas do fotógrafo (eu).
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Espelho

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Se voltasse voltava para não voltar a sentir-me assim como me sinto, volta-não-volta, por me voltarem, à cabeça, dias que estraguei.
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Que vergonha!
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Como me posso vestir sem ver ao espelho? Como me posso ver com a memória? Porque, não há volta a dar. Como me posso vestir sem ver ao espelho. Como me posso ver com a memória.
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Disso tudo, saboreio as canções. Do resto.
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Resta-me saber o bom e entristecer do mal.
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Sinceramente, não se ralam – quase certezo.
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Sei, lembro-me e envergonhado.
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Não há volta a dar.

quinta-feira, abril 25, 2019

Pai hoje


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O meu pai – nesta vida – faria hoje noventa e cinco anos. Hoje era o melhor dia, não pelo seu aniversário. Era supremo, dizia que esse, o de setenta e quatro, fora mais feliz do que os da luz de qualquer um dos seus três filhos.
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Manuel Jorge afirmava-se comunista – não porque o fosse por absoluta convicção, mas pela gratidão aos tombados contra o Estado Novo. Assumia-se, ainda que, ocasionalmente, vertesse em incontida denúncia de engano.
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A verdade – a sua, generosa e real – corria-lhe íntegra. Como outras coisas, nascia-lhe infantilmente e seguia em curso selvagem. Por essa consciência, nunca quis ser um combatente da ditadura – não se sentiu capaz de ajudar, por isso recusou-se a estragar.
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Escolhera assim ser comunista. Não o sendo, era-o, porque, tal como ele, o pensamento era autoritário. Os pais não são perfeitos, o meu era dogmático, com a violência emocional que tal implica.
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Sei que numa ditadura comunista, Manuel Jorge seria anticomunista, porque amava a liberdade. Para si e para os outros, mesmo sendo tirano em família. O meu pai era uma contradição!
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Tanto era comunista quanto dizia que talvez não o fosse, mas grato, foi com bondade que se ligou ao Partido Comunista Português.
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O meu pai era verdadeiro e íntegro! Já agora o escrevi.
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Como agora, escrevi que se ofereceu ao Partido Comunista Português, repito. Deu-lhe tudo e nada recebeu em troca, nem pediu ou desejou. Como artista plástico – dono do seu tempo, vítima dos ganhos em moeda e da irregularidade do recebimento  – deu-lhe tempo de trabalho, materiais e disponibilidade para tudo o que fosse preciso, fosse como trolha na Festa do Avante ou segurança do recinto.
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Aos setenta e muitos anos, Manuel Jorge estava insensível das mãos e trémulo dos olhos. Foi morto pela natureza, chegou ao fim a arte nos dias. Do Partido Comunista Português não recebeu qualquer homenagem – coisa que não exigia nem gostaria –, louvor ou agradecimento. Foi abandonado, como são abandonados, nas ditaduras, os sinceros e os inúteis. Manuel Jorge era ingénuo, mas inteligente e sábio – teve o infortúnio de ser genuíno e franco.
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Não por vaidade nem por orgulho ofendido – nunca quis a justiça com que deveria ter sido tratado pelo Partido Comunista Português –, Manuel Jorge percebeu que não era comunista e, nos seus últimos anos neste corpo, nesta vida, feneceu sem o dizer – nunca o diria, não por vergonha, só era assim o seu modo.
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Um dia, o cobrador das quotas bateu-lhe à porta para colher o dízimo, a parte da renda do senhor terratenente, e Manuel Jorge falou com o humor de toda a sua vida, a brutalidade da sua franqueza e a ingenuidade dos autênticos.
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A minha mãe disse-me:
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– Não sei o que o teu pai lhe disse.
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O recebedor saiu porta fora, batendo-a incrédulo e ofendido, remoendo qualquer coisa de ódio. Manuel Jorge nunca contou dessa curta conversa, nem mostrou sentimento, nem suavemente.
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Manuel Jorge não deixou de ser comunista por causa do abandono. A arte finou-se em mil novecentos e oitenta e oito e o cobrador resmungou pouco tempo antes de Manuel Jorge ter cumprido a sua vida, em dois mel e quinze.
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Deixou de ser comunista porque era sábio – da sua sabedoria. Possivelmente, deixou de ser ingénuo, continuando franco, directo e frontal.
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Como comunista, ganhou rancor ao Partido Socialista e a Mário Soares, por causa dos anos do Período Revolucionário Em Curso – nunca desejou a morte de ninguém, mas, se pudesse, mandava o político para um sítio em que não o visse nem ouvisse nem pressentisse.
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Com a genuinidade de quem tem uma certeza, afirmava que, se não existisse o Partido Comunista Português, seria do Partido Social Democrata e até tinha simpatia por Francisco Sá Carneiro.
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Já o escrevi outra vez agora, Manuel Jorge era ingénuo. O meu pai acreditava que os fachos estavam no partido do Centro Democrático Social – afastou-se do catolicismo romano por causa do padre da paróquia de Santa Engrácia, que fazia campanha a partir do púlpito. Vertia cólera devido às desavenças dos primeiros dias de liberdade e do terrorismo ideológico – na verdade era cruzado, recíproco.
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Manuel Jorge tinha essa zanga, porque era ingénuo – escrevi novamente agora. O meu pai não percebeu que muitos, talvez quase todos, não apoiavam a ditadura por ideologia, mas por situacionismo – faziam pela vida e a revolução estragou-lhes a existência.
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Esses – não sabia – queriam a fonte no bolso e mudaram-se para os partidos que vencessem nos votos. Para o Partido Socialista e para o Partido Social Democrata, sobretudo para este último.
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Tenho quase a idade que Manuel Jorge tinha no vinte e cinco de Abril de mil novecentos e setenta e quatro. Não sou mais sábio do que o meu pai – muito longe disso. Viveu muito mais do que eu até esse dia, até depois. Porém, só me falta um ano.
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Apesar de ser também ingénuo e tristemente frontal e verdadeiro – da minha verdade – sou muito menos do que ele, mas já vivi alguma coisa e anos diferentes dos seus, em tempos e idades diversas. Conta-me a existência que os fachos – os reacças falam pejorativamente da revolução como abrilada e do vinte e cinco do barra quatro – estão sobretudo num lugar diferente do que acreditava o meu pai.
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Manuel Jorge faria hoje noventa e cinco anos. Era religioso por ânimo e revoltado com a Igreja Católica por azar – nunca o desdisse. Embora eu sendo cristão espírita, dei-lhe, por respeito – também pela família –, um funeral católico romano. No final da liturgia falei ao padre – depois escrevi-lhe a agradecer – o quanto admirei a homilia, porque fizera do meu pai um homem e não um santo.
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Manuel Jorge, na sua verdade genuína e franca, afirmou tantas vezes que a morte não torna as pessoas boas. O meu pai era ingénuo, mas era sábio.
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Já agora que revelei que foi dogmático e totalitário – o que os íntimos sabem –, nunca me criticou por eu ter deixado precocemente a fé na religião comunista. Também tolerou, com idêntica abertura, eu ser apoiante – quase sempre – do Centro Democrático Social.
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O meu pai era uma contradição. Mas.
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Por tudo o que foi o meu pai – desta vida – faço-lhe, como sempre fiz, uma homenagem, onde cabe um brinde com o melhor vinho que tenho em casa.
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Apesar de todos os muitos seus defeitos, amo muito Manuel Jorge. Das poucas virtudes que tenho, a maioria devo-as ao meu pai.
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Nesse


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Sentei-me e a janela abriu uma chuva tardia mas antiga, que tenho memória sem nostalgia. Essa é caruncho de indeterminada ausência, em mim. Sem arrogância, com sorte ou inconsciência de a ter, não voltaria. Dizia da água na fonte do que venho falar.
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Se pudesse voltar era rio doutro curso e em leitos donde não dormiria – pouparia a pedidos de dor na garganta a quem não encontro.
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Dizia chuva porque no tédio nem sempre vive a morte. Não me lembro de saber da melancolia escondida e muda. Se sempre a tive como mãe-irmã-mulher estou onde não sou.
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Estranhado desconheço-me aqui e incompreendo. Nem assim palpito o pesar-memória-saudade.
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Sem ter o sofrer e só saber-me inostálgico.
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O que faço, então?

quinta-feira, fevereiro 28, 2019

Gelo como no Verão


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Vivo uma premonição, como o gelo que às vezes o Entrudo.
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Repentinamente lembrei-me e aquela dor ficou onde estivera.
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Foi quando te soube nua. Como tu outra neste agora de antes há uns tempos.
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Agora a dor da nudez que não toco nem sei nem percebo nem consigo querer compreender.
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A pele só pele antes sem pecado e agora de antes há uns tempos na vergonha de sem-vergonha.
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Sim, qualquer coisa, uma sirene chegando e partindo depressa ou a chuva repentina como antigamente.
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Sei há muito tempo sofrer e não me habituei por mais habitual que seja.
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Hoje não sei nem se será como em todos os Verões neste agora de antes há uns tempos.
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Quando Julho ou Agosto ou Setembro uma nudez perdida e achada por alguém.
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Se a minha casa fosse outra e o eu for a do meu corpo.
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Se eu pudesse ser um outro, nem que fosse por desexistir. Mais tarde recriado sem vida antes de.
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Se eu não fosse e as premonições não viessem.
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Quantas tu tenho para contar dessa nudez que não vi noutros lugares.
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É uma premonição, um sono repetido e descubro. Como és bonita quando fazes amor.
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Sinceramente, muito banalmente digo que não sei onde moro nem sei se tenho sonhado que vivo.
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A escuridão voltou ao anoitecer como a manhã fôra de punhal e o dia de torcer de vagas.
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Sinceramente, muito adolescentemente digo que não sei quem sou nem se sou.
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Sinceramente, repito que não sei o que faço aqui nem se neste lugar tenho vivido nem se sonho um pesadelo de ausências, da minha aos tu da minha vida.
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É Julho, Agosto e Setembro no Entrudo quando tu nua me desapareces e surges despida noutro luar.