digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.
sábado, março 28, 2015
sexta-feira, março 27, 2015
Os vinhos de Deus e do Diabo
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Perguntou-me:
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– Acreditas no Céu e no Inferno?... No Purgatório…
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– Gosto do conceito, artisticamente falando.
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– No Inferno sofre-se…
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– Se a vida não tiver sido uma seca.
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– No Paraíso…
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– Dá-me ideia que tanta serenidade… talvez sejamos felizes
num aborrecimento.
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– O Purgatório…
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– O Purgatório não será onde vivemos?
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– E o Limbo…
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– O Papa antes deste fechou sítio… Um outro tinha-o
inaugurado, porque havia um lapso na obra de Deus…
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– Venenoso!
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– Seria giro… imagina o Céu, o Inferno e o Purgatório como
locais onde podemos ir livremente, entrar, sair…
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– …
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– …
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– Então?!
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– Estava a pensar… que vinhos se beberiam…
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– Sim… no Paraíso…
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– Pinot noir.
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– No Inferno?
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– Cabernet sauvignon.
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– No Purgatório?
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– Tantas!... Não quero ofender «ninguém».
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– A touriga franca ficaria?... No Paraíso, porque a sentes
divina ou no Inferno por te endiabrar em folia?
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– Nem num nem noutro sítio…
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– No Purgatório, portanto?
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– Não! No Douro.
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– Hã?!... E a antão vaz?
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– Essa… pedia a Deus e ao Diabo que a desinventassem.
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– Imagino as cenas… alegres folias… benditos néctares dos
diabos, endiabrados vinhos divinais…
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– Anjinhos e suas harpas e liras… Demónios e suas guitarras
eléctricas a estrilhar…
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– Ná! Anjinhos a tocar cornisfesto e diabretes a soprar
rufete.
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– Isso não são castas?
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– São!
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– Ah!
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– Tem a ver… eu acho.
Dispense-se a ciência mas não a arte
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O que seria dos reis se
ninguém sobre eles escrevesse ou os pintasse? Quanto dura a memória e sabendo
que se inventa, recria e se contradiz… quanto?
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O que seria dos artistas sem
reis? Seriam artistas, mesmo sem nada para mostrar, porque esconder e fingir
fazem parte do mesmo, do retrato e da comédia e da subtileza e das laudes.
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O que seria dos eclipses e
dos planetas sem astrónomos ou cientistas? O que seria da vida, da matéria, do
universo sem cientistas?
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Seriam o que são. Mas sem
artistas não seriam memória.
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Por isso a arte é maior do
que a ciência. Um cientista vê matéria onde um artista vê o que quiser, poderá fazer além, aquém ou só isso.
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Podemos viver sem ciência,
mas nunca sem arte.
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Nota: Lisboa, eclipse de
1912.
Dor de corno de nós
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– Sabes o que é a solidão do
amor mal feito? Do amor feito sem razão, amor de despeito, amor de vingança, amor
frívolo, amores de remorsos. É uma dor, várias dores….
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Perguntou-me:
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– Nunca te sentiste enganado?
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– Enganado por ela – a ela
desse momento?
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– Não era isso, mas diz, que
já pergunto melhor.
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– Sei que me enganaram. Acho que
nunca soube e das que soube… nem tinham importância.
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– Não sofreste de ciúmes?
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– Sofri muito… por
infantilidade, insegurança sem razão. Magoei.
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– Nunca te sentiste enganado
por fazer amor?
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– Percebo… acordar e pensar
por que estou ali ou por que está ela aqui ou por que estamos ou por que como
foi possível… Sim, infelizmente sim. E infelizmente mais vezes do que gostaria.
Nem como experiência vale a pena.
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– O que fizeste?
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– Fiquei melancólico, outras
vezes nostálgico, outras sentindo-me traidor – mesmo não tendo ninguém, mas
porque amava alguém -, outras por saber que foi por causa do álcool e aí dói-me
mais… e cansa-me só de pensar no que poderá ela pensar – o que quer que seja…
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– Uma merda!...
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– Essa merda não é amor.
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– Preferes chamar-lhe… sexo?!
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– Não. Sexo é divertimento.
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– O que dizes que é?
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– Engano. Só o engano leva ao
desengano… o ciúme abstracto, o acto com alguém estando com outra, ou tendo a
outra na cabeça… o acto pelo acto, por vingança… ódio ou rancor não podem ser
sexo e muito menos amor.
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– Engano?
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– Engano.
Queria ser calceteiro
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Quando era criança fizeram-me a pergunta que se faz a todas:
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– O que queres ser quando fores grande?
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Astronauta, terei dito. Bombeiro, lembro-me. Quase sempre
ser calceteiro.
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Não via o tédio nem as dores por causa das cócoras. Via
pedras, areia e instrumentos. Não sabia que hoje teria impaciência.
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Via construção e construção é arte.
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A paciência escreve-se no mármore e a ansiedade fica com
vento a passar.
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As calçadas são de pedras anónimas. Juntas são indiferentes,
às vezes bonitas. Faltando aleijam os distraídos, o fígado arranha.
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Via construção e construir é conhecer.
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Talvez porque na vida antes desta tenha morto e morrido
matado.
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Não tenho ódios, tenho vergonhas.
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De cócoras não nos vêem as lágrimas.
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De cócoras escondem-se vergonhas e a cara.
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De cócoras pensa-se o que se quiser e na distracção
juntam-se as pedras.
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De cócoras quase ninguém repara ou se importa.
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Sei que matei e morri matando. Perdoado, acusado e por
descobrir.
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De cócoras – os odiantes saciam-se.
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Penitenciar-me? Escondido apenas.
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De cócoras – os odiantes segregam a bílis e do alto
desprezam.
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Queria ser calceteiro…
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Quero ter a humildade para fazer do meu ânimo um calceteiro.
O que penso do que sinto
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Tenho o frio que senti no meu pai quando o toquei cadáver. Não o reconheci naquele objecto. Este frio é só este frio, nada mais do que o frio do anoitecer numa rua ventosa.
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Tinha um frio cálido, uma contradição. Um saco cor-de-laranja e repousando de olhos e boca. Lá dentro estagnado, sangue quieto. Parado, podem dizer sereno se vos ameniza ou consola.
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Disse-me, antes da médica da emergência, no compreensível raspão, informar – ali na rua, entre carros, no sítio.
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Veio e disse-me da forma como dizia morte, com palavras reduzidas ao mínimo. O mesmo rosto como sempre a disse, a mesma que tenho quando digo morte; usando o mínimo de palavras
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Assim entendemos. Não há dúvidas. Disse-me:
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– Morri.
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Percebi, antes de o ver aproximar-se, de lhe sentir o toque espiritual, de o encarar e ouvir.
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Cheguei e na rua a médica protegendo-se foi lacónica e essencial, usando mais palavras do que ele diria, do que digo.
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O polícia que zelou pelo corpo soprou o vento entristecido e quieto da sala vazia de som, secando as lágrimas da mãe, suspensas à minha chegada. Ali estivemos à espera da próxima burocracia e da outra seguinte.
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O meu pai estava feliz. Antes de ter saudades. Carinhoso, doce como o nunca vi. Acalmou a minha mãe, abraçando-a, ficando de pé a seu lado, com o braço sobre as costas da cadeira e a mão no ombro, ouvindo-nos.
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Estava feliz, o meu pai. Acompanhou-a até que lhe disseram para ir. Esteve por ela e deixou-a ali, junto à terra barrenta, e também ao corpo. Porque o tempo.
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Saudades vieram e foram-se e virão.
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Deixou o rosto sereno para quem o quis assim entender. Olhei o rosto como corpo, nem sereno, só vazio.
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Olhei-o como alguém que se despede à janela do comboio. Deixei-o com a minha mãe, que não o viu.
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A morte não tem segredo. Faz parte da vida, como gatinhar e aprender a falar.
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É mais difícil de explicar que é apenas do corpo.
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Disse sempre morte com duas palavras e nunca o vi doloroso. Digo de forma mínima e não me vi doloroso.
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Não é frieza nem falta de palavras. São as palavras todas e a certeza mentalmente orgânica de além-fim.
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Não sei se somos – ele e eu – normais, sentindo a normalidade da morte. Não por frieza, mas porque.
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De todas as coisas só não entendi a cor-de-laranja e o frio cálido da pele.
Sangue-azul
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Disse-me:
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– Sangue azul.
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– Duas palavras bonitas… uma é coisa e outra é meta-coisa.
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– O que pensas disso?
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– É como a rosa-azul ou a tulipa-negra.
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– Como?
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– Um desejo. Seria como o Graal, se o Graal não tivesse sido
criado por Chrétien de Troyes.
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– Não percebo, nem percebo a diferença.
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– A partir do momento em que alguém escreve, é verdade.
Rosa-azul e tulipa-negra não existem, ninguém as encontrou – que eu saiba,
literariamente ou artisticamente falando. O Graal foi concebido para ser
desejo, mas foi encontrado por Sir Galahad, o cavaleiro puro, filho de Sir
Lancelote e da Rainha Élaine, e vislumbrado por outros, Sir Bors e Sir Percival.
E os Doze Apóstolos, e José de Arimateia e sei lá…
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– Quanto ao sangue azul?
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– Sangue azul não existe… pelo menos nos humanos e nos
animais que sei. O que existe é sangue-azul… com hífen.
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– Hã?!
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– O sangue azul é o das veias que se vêem sob a pele das
donzelas, damas e realeza. Alvas, por não laborarem sob o Sol que tinge. É um
privilégio.
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– E o sangue-azul, com hífen?...
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– O sangue-azul é o sinal do mérito, da nobreza de carácter,
da bondade, do sentido de justiça e da compaixão, da misericórdia e
compreensão, da piedade, da solidariedade, do amor verdadeiro – que é o amor da
verdade e pela verdade –, pela amizade sincera, pela sinceridade.
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– O sangue-azul é uma virtude?
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– É a virtude do merecimento. É uma mercê e não uma graça.
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– Sinal de santidade.
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– Se quiseres, mas da santidade verdadeira e não a atestada
por um homem ou grupo, decretada e celebrada com dia de instituição.
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– Santidade concedida por Deus?
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– Não! Santidade por merecimento, em obediência a Deus, amor
e suas facetas. A Deus de amor e de inteligência suprema.
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– Quem decide? Alguém…
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– Desculpa interromper-te… Nenhum homem a pode decidir,
porque nenhum homem é dono da palavra de Deus.
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– Acabaram-se as religiões.
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– As religiões dão jeito, são instrumentos. O que conta é o
sangue-azul. Sei – penso que sei, tem lógica para mim – que Deus ama o bom de
pensamento e bom de gesto e não o crente de verbo e escuridão de carácter.
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– Anjos, santos!... Profetas?!
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– A angelitude não é uma espécie criada por Deus, mas pessoas
de sangue-azul, como os santos; santos pela obra. Já os profetas… há de tudo.
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– … Os profetas falam em nome de Deus…
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– Quem lhes concedeu tal direito ou, sobretudo, esse dever?
Não sabes nem saberás. O que lês quando lês os profetas?... Lê a mensagem e
atenta ao verbo, o que deles se colhe.
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– Palavras atribuídas a Deus… supostamente.
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– Palavras, palavras… Repara, por vezes é tão óbvio que nem
reparamos. Deus do Primeiro Testamento é castigador, um velho irado,
justicialista, egoísta… assim o viam os profetas que o inventaram. Sei que se
cometeram crimes em seu nome, mas também quem foi misericordioso.
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– …
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– Vê a mensagem de Jesus. É de amor. O que fizeram dela?
Homens, alguns supostamente santos – de carta e documentação outorgadas por
outro homem, por um homem político. Queimou-se gente, massacrou-se… até se
criou o verbo judiar, sinónimo das malfeitorias que alguém sofre às mãos de
outrém, uma analogia às brutalidades feitas aos judeus, pelos porta-vozes de Jesus
e de Deus.
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– … Hummmmm…
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– Vê o Corão… Lê e atenta ao ódio que nele está escrito.
Depois do amor de Deus trazido pela voz de Cristo, regressa um ser totalitário,
vingativo, faccioso e intolerante, mesquinho. O Corão é um retrocesso da
humanidade. No entanto, há – certamente muitos, muitos, muitos – bons homens,
de boas acções e verdadeiro amor, que são muçulmanos.
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– O amor. É a fé verdadeira?
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– Não sei. Não sei. Provavelmente, sim. Não quero afirmar o
que não sei nem tenho mandato para dizer… Acho que não pensei nisso
completamente, sistematicamente… acho que sim, que a fé verdadeira, a que
agrada a Deus, é de amor.
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– Só referiste exemplos das religiões do livro. E as outras?
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– Igual. A santidade – que já referi – não esperou por
Cristo – nem por Moisés ou Maomé, admitindo como benignas as suas heranças
escritas.
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– Budistas, hinduístas…
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– Todo o homem bom.
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– Deus criou bons e maus.
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– Deus criou-nos, simples e imortais. Da ingenuidade até à
angelitude, por caminhos de dificuldades, de provas, de expiações – acredito –,
até ao conhecimento, até ao amor. O amor que liberta e nos desliga do
materialismo e nos faz viver em espírito, no sublime.
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– Descrentes… ateus, agnósticos, cépticos de toda a ordem…
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– Deus ama todos os seus filhos, mesmo aqueles que não o
vêem, sentem ou reconhecem como pai. Sei – na minha lógica, na que me faz
sentido – que Deus os prefere assim nessa verdade e de sangue-azul aos beatos
dos credos na boca, das ladainhas, dos auto-elogios de virtudes…
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– O Diabo?
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– O Diabo não existe. O facto de existir o Diabo destruiria
Deus. Quem acredita no Diabo não acredita – ainda que genuinamente e sem dolo –
em Deus. Sendo Deus perfeito, causa primária de tudo, inteligência suprema, amor
infinito… como o Diabo? Seu filho rebelde? Com tanta força e poder? Não pode.
Não pode, de todo, existir.
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– E a maldade? A maldade existe.
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– As maldades são as nossas imperfeições, acidentes do
caminho para a felicidade. O Diabo está em nós – o egoísmo, a cobiça, a inveja,
o ódio…
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– Como deixamos de ser assim?
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– Normalmente… tentativa e erro. Faço e aleijo, crio
inimizade, zanga… aleijando-me, quando os outros me respondem no mesmo modo
como lhes falei ou fiz... O mal que me faz mal é o mal que faço.
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– Perdoai aos outros, como nos perdoamos a quem nos tem
ofendido?
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– É! Quando percebemos que existe uma regra de causa e
efeito e que agindo duma forma nos saímos mal, acabamos por corrigir o passo.
Vê a força de Ghandi, de Martin Luther King, de Nelson Mandela… certamente
homens imperfeitos, mas que com a paz venceram injustiças.
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– Nem todos temos essa fibra, estrutura moral, carácter
decidido e perseverança.
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– Se vivêssemos uma só vez, sim. Deus não seria justo e bom
se só nos desse uma vez para viver – na carne. Repara no óbvio: o rico,
protegido e ocioso pôde estudar e de barriga cheia articulou palavras doces; o
pobre, nascido nos esgotos, no seio da criminalidade, sobrevivendo como pode,
socorrendo-se de toda a maneira… Justiça? A morte não existe, é uma etapa. O
corpo – mesmo biologicamente sempre em renovação – decompõem-se, elimina-se,
mas não o espírito. Somos filhos de Deus, da sua essência – espírito. Vimos e
vamos e vimos e vamos e vimos e vamos e vimos e vamos… erramos, corrigimos,
provamos, andamos, erramos, corrigimos, provamos, andamos… Ora ricos, ora
pobres, ora com uma doença, sempre com uma tarefa e exames para fazer.
Aprovados numas disciplinas e reprovados noutras… Numa outra vez, tentativa…
erro… e outra vez e outra vez e outra vez…
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– Até ao sangue-azul.
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– Até ao sangue-azul.
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terça-feira, março 24, 2015
Duas gatas infotocopiáveis
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O tempo voa e voa tão depressa que os aviões parecem parados
quando comparados à constatação do passar da vida. Comecei o infotocopiável há
nove e não sei por que razão, mas sei por que continuo a alimentá-lo e a ser
por ele a ser alimentado. São nove anos de casamento entre um tipo e suas
palavras, residindo numa casa inexistente.
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Neste mesmo dia, mas há onze anos, nasceram as manas Granita
e Lioz. Vieram da mãe demasiadamente cedo, reconheço… reconheço que lhes
amputei infância. Um mês depois do nascimento entraram em casa.
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Carentes de mãe e doces como ela. Nunca lhes faltei a uma mamada
nem recusei mimos. A Paraquedas veio mais tarde e no seu dia dela contarei.
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A Granita ronrona alto como uma chaleira de água fervente,
muito mimada e mimadora. É quem pede a comida ou para ser mudada a areia. A
Lioz é frágil e muito terna, com uns olhos azuis, muito grandes, muito abertos
e muitos espantados. Raramente mia, mas quando fala… o que tagarela…
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Hoje há festa! Comidinha húmida para todas… é a loucura!
sábado, março 21, 2015
Caetano Veloso é o Rei Midas – oiça-se a música «Sozinho» em diferentes versões
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A fronteira é uma linha imaginária que por vezes é óbvia.
Uma canção pode ser cançonetismo farsola, soul de casa de passe, cólica ou ouro.
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À versão de Tim Maia faltam as bolas de espelhos, as luzes
coloridas do lusco-fusco, o chão de acrílico colorido que se acende a espaços,
meninas de tranca rechonchuda a transbordar da saia micro e travada de
pergamóide, perfume rasca e sapatos altos com plataformas, fingindo cristal ou de escarlate
envernizado; putas!
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Sandra de Sá é mais sóbria e sobra-lhe a falta de talento –
como é possível sobrar o nada?! Voz feia e potente e ausência de talento
interpretativo. Sem julgar orientação sexual – assunto que não arrelia – esta
versão aviva-me as lembranças dos bares de camionistas sem pila mas com mais
testosterona que uma equipa de rugby, onde fui levado por amigas curiosas ou um
pouco mais do que curiosas. O melaço transformado em calhau, um assassínio do
espírito da composição.
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Quando Caetano Veloso a ouviu enamorou-se. Descobriu que era
Sandra de Sá quem a cantava e encheu-se de desejo. Ao saber que o autor é
Peninha decidiu-se a gravá-la e pô-la no seu chou. Teve medo ao descobrir que
Tim Maia a adoptara – não percebo o que lhe intimida e agrada no músico
carioca…
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A versão de Peninha… dá pena!
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Caetano jogou as mãos à música e como Midas fez ouro.
A intoxicação de açúcar e banha de presunto – muito além de qualquer pudim –
torna-se em alta cozinha.
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sexta-feira, março 20, 2015
Helios e Selene
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O último eclipse visto em Portugal foi em Agosto de mil novecentos e
noventa e nove. Gratas memórias, que obliteraram qualquer acontecimento – a história, a tirânica, não vai guardar nada mais desse ano… tão relevante que levei minutos e minutos para descobrir
que aconteceu a dia onze.
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Um fenómeno assaz curioso e estimulante do ponto de visto
intelectual, pois por maravilha o próximo vai acontecer em Agosto… e no dia doze.
Não é totalmente, completamente, esborrachantemente uau?!
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De tempos a tempos… Começando pelo princípio: Há muito, Cronos castrou Urano, seu pai…
sua mãe, Gaia lançou os genitais ao mar…
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Perdi a erecção, erguida pelo interessante eclipse
de hoje.
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Ah! Espera!... do sémen deitado ao mar nasceu Afrodite…
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Recuperei o tesão.
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Urano e Gaia tiveram um filho chamado Hiperião e uma filha
chamada Teia… ora, estavam um dia em casa sem nada para fazer e foram para o
quarto e começaram.
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O mano e a mana fizeram Helios, Selene e Eos – o Sol, a Lua
e a Amanhecer.
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Já se percebeu que os Deuses eram uns foliões. É por isso que, de tempos a tempos, Selene esconde Helios. Huummmmm…
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Voltando a coisas mais edificantes e menos parecidas com os
serões à lareira – em qualquer aldeia – em que as velhas enumeram gente e
gente, parentes e parentes, infidelidades e infidelidades, heranças e heranças, chatices e chatices… fica-se a
perceber tanto quanto no início da conversação, pelo que o melhor é dizer que
sim a tudo, com regulares e sossegantes hã-hãs… Não vale a pena falar na Teoria
de Eva, não vá as velhotas começarem a tagarelar acerca de Adão e com eufemismos sobre
da beleza do pároco ou da sua mulher, designada por Mariazinha, que trata da
casa do páraco e que, por mero acaso, toma conta de seis crianças – parecidas com
ela e com o sacerdote – filhas duma parente que faleceu jovem, logo após o
marido se ter finado com tuberculose. Nada de maus pensamentos, porque a
Mariazinha vive na casa ao lado… se à noite entra na residência do cura é porque
lhe pareceu ouvi-lo tossir e foi ver se estava agasalhado, com a roupinha de
cama a cobri-lo convenientemente e fazer uma tisana de casca de limão, sumo de
limão e mel, pois a saúde da voz é fundamental para que a Santa Missa seja bem
dita. Ou bendita?!
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Regressando ao que interessa. Há coisas bem giras: em mil
novecentos e noventa e nove eu tinha vinte e nove anos, em dois mil e
vinte e seis terei cinquenta e seis. Ora, dois e mais nove dá onze… e cinco e mais seis dá onze!
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Isto é ciência?
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Bem, de dois mil e vinte e seis logo saberemos, sendo que à
partida é certo que o eclipse será o mais empolgante acontecimento, tal como
o foi em mil novecentos e noventa e nove, certamente em dois mil e quinze.
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Se alguém duvida, enumero acontecimentos completamente
irrelevantes de há quase dezasseis anos… estou já só a referir-me àqueles que
ainda conseguiram uma réstia de possibilidade de surgirem num rodapé da
história:
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– 1 de Janeiro: início da utilização do euro, ainda que mantendo as moedas nacionais em circulação como fracção, na Alemanha, Áustria, Bélgica,
Espanha, Finlândia, França, Holanda, Irlanda, Itália, Luxemburgo e Portugal.
Esta ninharia envolveu pouco mais de 300 milhões de pessoas. Os gregos,
certamente com vergonha da vida que levavam os seus antigos Deuses, só entraram
mais tarde. Como continuam folgazões, são capazes de serem
acompanhados à porta da saída, lá para 2026, após o 53o perdão da dívida e falhada a 99a tentativa de reformar a política e a administração do país.
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– 7 de Janeiro: o presidente dos Estados Unidos da América, Bill Clinton, este quase a ser defenestrado da Sala Oval, por causa de joalharia. Normalmente é feito de joelhos.
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– 15 de Fevereiro: a Austrália admitiu a independência de
Timor-Leste.
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– 1 de Abril: foi declarada a independência do Estado Esquimó de
Nunavut, no Canadá.
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– 20 de Abril: no Estado norte-americano de Colorado
aconteceu o «Massacre de Columbine», em que dois estudantes despejaram uns
carregadores de munições e mataram 15 pessoas, incluindo os lunáticos.
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– 30 de Agosto: os timorenses aprovaram, em referendo, a
independência de Timor-Leste.
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– 20 de Dezembro: a soberania do território de Macau passou de Portugal para a China, após uns irrelevantes séculos de domínio colonial.
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– 31 de Dezembro foi quase tão interessante quanto o
eclipse, mas só porque foram três, quatro, os acontecimentos: a passagem da tutela do
Canal do Panamá, dos Estados Unidos da América para o Panamá; a renúncia de
Boris Yeltsin como presidente da Rússia; e a obtenção de Parlamentos próprios na
Escócia e no País de Gales.
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Até dois mil e vinte e seis iremos viver num tédio… mal
posso esperar pelo próximo eclipse!
Há eclipses que valem a pena ouvir e outros que não têm interesse ver
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Se tivesse seis anos – dez, no máximo – teria adorado ver o
eclipse. Parece que o último que se viu – ou não viu? – foi em 1999. No início
da década de oitenta, na Alemanha, ouviu-se um eclipse. Quem tinha as orelhas
apontadas para a novidade e memória sentiu-lhe o carácter de furacão e lavou a
monotonia dos olhos. Mais cor do que um eclipse solar tem de escuro.
Um eclipse cromático seria interessante
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Hoje aconteceu um eclipse solar. Não percebo o
interesse de olhar para o Sol a desaparecer na escuridão, até porque se sabe
que no final da estória vai reaparecer. Muito mais interessante é ver o ondular,
apesar de acontecer sem cessar. Um eclipse é entediante quanto usar o comando da televisão. Em termos de conhecimento, o que se ganhou? Um
momento bocejante de ócio. Não sei se estava a dormir ou se tinha ido ao
dabliucê… qualquer coisa verdadeiramente importante e regeneradora.
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Nota: Esta pintura chama-se «Eclipse cromático».
Vem cá que ele agora não está aqui
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As coisas que o dono de gata faz por uma gata que tem medo
do cão. Dorme no sofá como se tivesse terminado o casamento ou para que não
acabasse o casamento. Dormirá mal, dormirá pouco, terá uma pessoa quadrúpede
aninhada a ronronar até se fartar, quando se fartar o dono da gata irá para
a cama, porque o casamento não terminou, como se o casamento se resolvesse assim,
com beijos e pêlo de gata, se estivesse para se resolver.
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Nota: A Paraquedas merecia não ter medo do Chuqui.
quinta-feira, março 19, 2015
Buscando o azul da romã
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É tão absurdo uma romã não ser azul que procuram nos relicários
a cor das jóias. Bela que penetra a laranjeira e a emprenha e ainda esforçada não
há romã vinda da laranja nem feita de azul.
Tão carnalmente que rebento
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Não me voltes as costas e não te vires de frente e não me
vires do avesso e não me tires do sério porque fora do sério é só folia e folia
é loucura e louco estou por ti despida e vestida e respirando ou só existindo
ainda que te não te veja tenho-te tão carnalmente que rebento.
A romã devia ser azul
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A romã rubi, a romã escarlate, a romã vermelha, para que não
percebe, é uma das raras excepções que Deus criou para o azul.
Alegre barroco
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Homoerotismo feliz – diria gay, se
gay não fosse palavra esvaziada. Não é o hiper-realismo que
transcende, mas o barroco que o ultrapassa e o banaliza e mete o dedo, fora da tolerância da classe
média e da instrução fraca.
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Quem não conheceu o Trumps não viu Lisboa. Quem não dançou não viveu. Fez e dormiu quem quis, não querendo não quis e não fiz. Não fiz e
voltaria a não fazer. Dancei e voltaria a dançar na mais alegre bichice… gay.
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Uma vez mais, Dorian Gray – nunca vi no cinema com a
perversão que só não percebe quem prefere as pipocas ao texto. Dorian Gay.
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Barroco como o foi para quem o entendeu, subtil e óbvio na
luz quente e gorda, no vinho ou na cocaína, dos entardeceres compostos e
galantes, perfumes e perfumes e roupa nova, aos amanheceres e aos lençóis molhados, olheiras, ressacas e vómitos,
ciúmes e pequenos dramas, como se alguém se importasse. Não estive.
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Tão bichamente barroco! Sumo de limão nos olhos de quem
sussurra ou grita moralista. Digo:
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– Todos os homofóbicos são gays!
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Corrijo:
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– Alguns homofóbicos não são gays e têm medo de serem e mais
medo de o descobrirem e pavor de gostarem.
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Desconfio muito mais dum homofóbico do que dum cozinheiro
magro.
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Nestas janelas vejo dentro do que não vi. Pela certeza
e certeza de fazer de candelabro.
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Nota 1: Escrevi propositadamente Dorian Gay.
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Nota 2: A arte de Barahona Possolo é a minha mais feliz alegria desde há muito tempo.
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Nota 2: A arte de Barahona Possolo é a minha mais feliz alegria desde há muito tempo.
A sina
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As musas não gostam de poetas. Por isso sofrem e transpiram
letras, se fazem fontes e desmaiam, fixados nos olhares que não lhes oferecem e
na roupa que não tiram ou na nudez escondida intangível ou de brinquedo de gato.
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Talvez por ser mau poeta talvez por ser bom poeta voo acima
da razão e não vejo e ultrapasso a mão que talvez me queira puxar para o leito.
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Nada, não pode ser. As musas temem os poetas cuidando que o
doce se lhes agarre e se prendam.
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Compreendo-as. Os poetas não têm razão e como mariposas
queimam-se no fogo da luz das musas que não os comem e os deixam consumir-se nas
letras, se fazem fontes e desmaiam.
Saciação
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Um dia vais esquecer-te de fechar a porta da rua e por pressentimento
irei como um fantasma entrar sem bater e ver-te, morrendo asfixiado pelo desejo
e no suplício de Tântalo. Antes disso, dessa certeza, peço a Deus que não seja sofrimento e te apiedes de mim e me alimentes e mates a
sede, descansando a meu lado depois da nossa saciação.
Defenestrar
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Nunca voltes a fazer uma coisa destas, do peito no parapeito,
defenestrando-me do pudor, subindo a ti, às partes altas e partes baixas, e caídos
no desejo, da janela abaixo para a cama.
Dia de Reis
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O meu pai nunca ligou a datas. Duvido que soubesse a do meu
aniversário, tal como a da minha mana. Do meu irmão talvez, por ser a véspera
do seu... como não ligava nem ao dele, não juro. O dele era fácil, porque as
cerimónias do 25 de Abril lho lembravam – é o que dá afixar um feriado no dia
em que se completa mais uma volta em torno do Sol. Quanto ao da minha mãe…
idem, idem, aspas, aspas. O do casamento? Nem pensar! Dia do Pai, é o quê? O
Natal e o Ano Novo, sim, por causa das mesmas razões do dia dos cravos.
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Tal como ele, marimbo-me para os dias fixos. Sei alguns,
porque os fixei sem querer. Porém, chegados é possível que nem me lembre. Hoje
é Dia do Pai, se escrevo este texto é porque amanhã faz um mês que o seu
espírito se despiu do corpo que usou durante quase 91 anos.
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Prometo, em sua homenagem, que deste ano em diante não me
vou lembrar nem do Dia do Pai, nem do 20 de Fevereiro. Quanto ao 25 de Abril
não terei escolha, o país encarregar-se-á de mo dizer.
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O Senhor meu pai gostava muito de vinho e em sua honra
abrirei hoje qualquer coisa que lhe ilumine o sorriso. Tenho a certeza que, se
puder ler este texto, vai apreciar o Modigliani…
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Foi um bom doente, obediente quanto à toma dos remédios.
Ainda assim, fora isso, nos últimos tempos, sinal da idade, o seu feitio
refinou-se. Só o filho mais novo – eu – o convencia e o punha na ordem:
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– O Rei foi deposto. Agora o Rei sou eu.
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Ria-se e fazia o que lhe dizia.
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Sem ele, não faz sentido ser o Rei. Para lhe iluminar os
olhos, deixo-lhe também um Caulfield, que detestaria.
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quarta-feira, março 18, 2015
Obrigatoriamente azul
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Sem luz não há azul nem luz sem azul. É difícil ser belo sem
ser azul. Felizmente há muitas excepções. Todas elas gostariam de ser azuis.
Até o escarlate.
Azul-Lisboa
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Disse Lisboa e depois mostrou. Quase concordo, o azul de
Lisboa é impossível. O resto está lá todo, o resto não está lá.
Tremor de beijo
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Beijei-a e estremeceu. Nunca pensei que pudesse fazer alguém
estremecer. Não foi por ser Apolo ou por estar perdida. Porque os beijos a
estremeciam. Fizemos amor e no dia seguinte ao acordar beijei-a. Repetiu todos
os sobressaltos. Fizemos amor e o relógio mandou-nos ir trabalhar.
O meu cão
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Gosto do modo como a boca se enche quando digo:
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– O meu cão.
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O som que sinto ao dizê-lo – não o que se ouve nem o que se
ouve pensando – é como o abocanhar, dum cão, no vazio.
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– O meu cão.
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Mas o meu cão é delicado. Muito cuidadoso quando recebe um
presente de comer ou quando tenta aproveitar-se e roubar a comida que tenho na
mão, enquanto sorno no sofá frente à televisão.
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– O meu cão.
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O meu cão soa-me divertido, destravado, enlouquecido pelas
saudades.
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– Os ataques de felicidade do meu cão aborrecem-me e
cansam-me. É histérico! Numa alegria desvairada, corre a casa, é capaz de
chocar, apanha sapatos, passeia-os na boca, rabeia e corre e faz barulho. E cansa-me.
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Adoro o meu cão. Como aprecio a subtileza das felinas.
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Dizem-me:
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– É um cão, e os cães são assim.
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Pois.
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– O meu cão.
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Enche-me a boca de ternura.
Deus tem uma galeria de arte
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Perguntou-me com ignorância sincera:
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– O que é a arte?
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– O olhar… eh…
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– Por que estás a olhar para o meu decote?
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– Porque me lembrou uma pintura de que gosto muito?
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– …
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– Não, não estou a pensar dizer-te que são uma obra de arte…
Os seios, como qualquer parte do corpo, não são arte. Podem ser inspiradores…
mas arte, não. Desde logo porque o corpo não é um objecto.
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– Por que os homens nos olham os seios como se fossem
objectos? Não gosto!
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– Os seios são luzes e os nossos olhos são mariposas.
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– Acho detestável, essa mania de falarem a olhar-nos para as
mamas!
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– É a natureza do homem…
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– Isso é machismo! Não pensei que fosses machista.
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– Não é machismo, é natureza. Devemos combater o que há de
animal em nós?! Certamente que sim, em parte… mas há situações em que pode não
ser possível.
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– Essa lembra aquelas bestas que dizem que uma mulher de
minissaia está a pedi-las… entenda-se, pedi-las significa ser abusada ou mesmo
violada.
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– Nada disso! Isso é bestialidade! Outra coisa é admirar
genuinamente o que os olhos e cabeça apreciam…
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– Discordo!
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– Tornou-se politicamente correcto caparem-se os olhos dos
homens.... Os homens têm uma sexualidade diferente da das mulheres… Temos
direitos. Quantas vezes a feminilidade não é uma pirosada enjoativa? Mas por
ser mulher tem-se o direito a gostar de rosa-cocó?...
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– Estás a ser estúpido.
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– Talvez! Irrita-me que me queiram capar os olhos ou me
obriguem a torcer o pescoço para não ver ou fingir que o peito não está ali…
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– Não gostamos que falem a olhar-nos para as mamas!
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– Olha que há quem goste… garanto-te! Pondo a questão ao
contrário… por que não cessam a nudez? Garantes-me, com sinceridade, que a
janela sobre o peito não é engodo consciente… para uma sedução civilizada… não
para piropos ou outros grunhidos?…
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– Não tem nada a ver.
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– Tem tudo a ver! E até te digo mais; as mulheres também
cobiçam o corpo do homem, e comentam, e falam dos rabos, e das pernas…
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– O corpo não é arte – mas dizemos que aquela pessoa, homem
ou mulher, é uma obra de arte… o que é a arte?
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– O corpo não é arte, como uma árvore não é Deus.
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– O que é arte? Nunca percebi e sei que nisso sou um pouco
básica…
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– Não és nada básica. Básico será aquele que não admira, nem
pensa, no belo…
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– Corpo? Corpo, não?
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– Quanto a mim, arte tem de ter conceito. Porém, muitas são
apenas coisinhas bonitinhas – pirosadas mais ou menos sofisticadas – ou coisinhas
horripilantezinhas – igualmente pirosasinhas.
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– …
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– Há expressões, técnicas, temáticas, abordagens, estilos…
isso são acessórios ou auxiliares.
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– Acessórios? Admites que um monte de pneus seja uma obra de
arte, só porque tem um conceito? Ou, como
aquele monte de lixo, de Paul Branca, que tinha um conceito tão marcado que a
senhora da limpeza o varreu e deitou no caixote do lixo?
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– …
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– Ou o quadro de pintura esborratada, feito por crianças da
escola primária, que uma jornalista pendurou na feira de arte de Madrid e que
mereceu elogios de críticos, galeristas e apreciadores cultivados?!
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– … Uma vez vi uma obra de arte… Era um cartão com uma
aguarela impressa, mas não sabia… Não a tinha na mão, estava a uns três metros,
mas percebia-se uma técnica aprimorada. Perguntei à artista acerca da técnica
da aguarela… olhou para mim como se eu tivesse vindo da Lua… Senti-me muito
estúpido por não ter percebido que a obra de arte era o caixilho prateado que ela
pintara à volta…
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– Isso é arte?
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– Sabes, acredito que no mundo espiritual, para onde iremos
depois de morrer, toda a criação artística estará ao dispor…
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– Achas que Deus é um coleccionador?... Que tem curadores?
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– Espero que sim…
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– Haverá lugar para as instalações de lixo e pneus
amontoados?
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– … Arre!... Sei lá! Sei lá o que é arte!... Sei lá se Deus
tem uma galeria com toda a arte… se…
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– Deus não existe!
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– Chiça! Estou quilhado contigo… mas adoro o teu decote!
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– Já tinha reparado.
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