Nunca poderíamos namorar, pela sua inteligência e a minha
maldade. Nunca duas tristezas poderiam dar a alegria de juntar a areia dum lugar
com a luz do outro sítio. Há ainda o rio e as casas baixas. São quilómetros de distância
entre a sua sabedoria e a minha vida prosaica.
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A menina, a quem raptei o nome numa brincadeira inocente,
tem todo o conhecimento, tudo cabe dentro do ovo e sabe o que é. Eu, desbocado
e galã, derrotado por muita coisa, sou superficial e actor de conhecimento de
artifício.
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O amor pelo que escreve... leu «A paixão de Martin Eden», de
Jack London? Quendera ser Martin, ainda que a menina não estivesse no sacrário
do amor e, por amor de todos os santinhos, não fosse a desilusão.
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Quando a vida me serrou a cabeça e fundiu memórias deixou-me
este livro e enredo. O que eu queria era «O Retrato de Dorian Gray», sem
aquelas coisas dos maricas.
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A menina é a sabedoria de Martin Eden e o seu esforço. Sou a
futilidade, a arte pela arte, o amor pelo capricho.
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Escrevo-lhe como se fosse um poema – talvez seja.
Escrevo-lhe como se fosse um poema .
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Conhecemo-nos? Tivemos blindedates intelectuais, sem malícia
ou outra intenção que não fossem letras e artes, e conversas do
vamo-nos-conhecer-embora-tenhamos-pouca-coisa-para-dizer – que foram agradáveis.
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A menina é densa e eu pueril. Como um casal da pequena
burguesia lisboeta do século dezanove.
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Gosto de ouvir e de dizer que sei ver, ainda que muitas
vezes apenas julgue que observo uma pérola, que é pedra à vista da verdade. A menina
tem flor, folha, caule, raiz, solo, subsolo, hiberna e dá uvas.
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Não é o mundo que perde uma amante – e desconheço se de momento
o tem – são as amizades que lamentam o dia de Fevereiro em que pousou o Belogue.
Ao contrário da natureza, as letras e a sabedoria não crescem sem amanho.
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Onde começa a menina e onde acaba? É o Belogue, ou apenas
quer retomar esta conversa dentro de vinte anos?
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Tenho direito à ilusão de saber o seu nome.
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Como tive direito ao tu e ao açoite da terceira pessoa.
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Ainda tenho o seu nome. Roubei-o, aproveitei-me dum abandono
distraído. Podia tatua-lo, mas não preciso.
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Beluga, disse-me. Falei-lhe em caviar, o que é óbvio, e como
um herói pronunciei alto, como os novos-ricos, Champanhe.
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Fresco, notas de folar, pitada de erva-doce. De bolha viva e
muito fina.
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Não! A Beluga merece mais do que ser rainha de festa em luz.
Nunca será brilho, mas ouro velho. Nunca orgia de riqueza de ouro até vomitar,
será pintura, talvez a têmpera, abraçada em madeira vestida de folha de ouro,
já castanha pelo valor
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Tem a escuridão duma cave de tonéis muito antigos, onde se
guarda arte como nos depósitos dos museus. Não é o que todos vêem, esconde-se.
Está onde a quiserem procurar.
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Arte quase única,
para quem sabe e sabe guardar segredo, não por intriga, mas por falta de tempo
a perder com quem não distingue uma terra-sena-queimada dum verde nascido da
força do azul-prussiano e dum amarelo plebeu.
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Sou um homem que vê coisas e algumas até existem. Porém, o
meu nariz engana-se menos, expressa-se pior. Leio: 1855. Se puder... como o
teatro, é arte efémera e viva.
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Vejo-a, desesperada tentando salvar da fogueira um El Greco,
que gosta tanto que se pudesse o mandaria queimar.
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Nessa paixão por querer ter paixão... não tem desassossego
louco para ter paixões. A sagrada sabedoria quere-a acima dum breve tempo de
loucura pueril. Tem desassossego como quem usa cilícios – a sua dor é
pensamento.
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Amar é outra coisa. Pode amar livros e quadros e não ter
quem mereça dormir consigo o sexo justo devido a quem tem mais do que letras,
visões de arte, triangulações... e ainda que fosse só isso... arte é arte, e
merece-a. Não lhe direi de beleza, mas de mulher.
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Repita comigo, bem soletrado e alto: eu amo. É o amor que lhe
deve. O gnomo da cultura e a foda da sabedoria que tem da vida e que,
aparentemente, não sabe usar... há gordos e Apolos que a esperam, queira ter a
coragem de ler a vida como age no conhecimento.
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Sexo é fácil. Difícil é o amor. Que saudades tenho das suas
cartas de amor de sabedoria, que lia todos os dias, se todos os dias tivesse
escrito e eu tempo para aprender que o meu conhecimento são farófias...
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Sim, esta pode ser uma carta de amor, já que o tempo e a
distância não nos deu tempo para sermos amigos.
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A menina fez-me humilde. Quando a soberba, o cinismo e a
hipocrisia me poupam tento ser boa pessoa. A sua sabedoria dava-me humildade.
Sentia-me feliz com a minha consciência de farófias... leve e doce.
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Humildade é uma coisa boa, não é aquela sensação que o meu
cérebro tem, às vezes... quando sinto ter uma alforreca dentro do crânio.
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Não nos conhecemos: fui um galã e quase filho-de-puta... às
vezes fui. Consigo, nunca, e nunca o seria, não tenho arcaboiço para um
wrestling que acabaria antes que lhe tentasse dar um beijo! E sempre acreditei
que a minha inteligência, cultura, virtuosismo e imaginação me faziam alguém
que merece ser conhecido e desejado.
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Quase nada. Tenho uma vida tépida... feita de enganos
mornos, arrefecidos por hiperventilação por causa de vulcões egocêntricos.
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Não segui pintura, porque recusei a injustiça de ter de
estudar matemática. Disse-me o meu pai que mais valia perder dois anos do que
toda a vida.
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Se tivesse conhecido uma sabedoria humilde como a sua talvez
tivesse segurado a cruz e hoje pintasse, ainda que medíocre. Na verdade perdi
dois anos e a vida toda.
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Já a menina é sabedoria; um ovo. As marés não a comovem,
interessa-lhe a água.
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Perdi tempo quando, por uma razão justificada e que não me
lembro, desacostei do seu Belogue. Perdi lágrimas por razões maiores, mas
encheu-me de tristeza saber que não tem escrito desde Fevereiro.
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Queria continuar seu aluno e não ter de lhe escrever um poema
de amor, por não lhe sentir amizade suficiente...
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Escreva. Pense que sou um recluso que ama uma mulher
abstracta ou um soldado que se felicita pelo aerograma da madrinha e que sabia
que um dia poderia ser sua mulher.
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Escreva, não para me fazer um favor. Mas porque...
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Pelo que quiser.
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Nota 1: À Beluga, que mantém parado o
Belogue, o blogue mais
interessante que conheci.
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Nota 2: Lembre-se de escrever quando for correr a ouvir
estas mocinhas...