A razão deste texto pode conhecer-se em http://www.salvarotua.org/
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O meu pai sempre disse:
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– As pessoas são capazes de ir ao estrangeiro ver paisagens
e museus e do seu país não conhecem nem paisagens nem museus.
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Citando mal, foi isto que sempre disse. O meu pai, que hoje
tem 90 anos, nunca quis conduzir nem ter automóvel e não foi por isso que
deixámos de visitar o país. Levavam-se horas imensas! Fixei algumas: seis horas
de Lisboa a Castro Verde, doze horas de Lisboa a Mirandela.
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Para quem não sabe, o meu pai é (era) artista plástico,
concretamente pintor, e absorvia o que lhe entrava pela janela do autocarro ou
do comboio, eventualmente do automóvel de alguém com quem partilhávamos o passeio.
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O meu pai via e contava-nos o que via, porque os olhos de
pintor viam muito além. Tenho a reprodução do retrato de Dom Sebastião, de
Cristóvão de Morais, e lembro-me que esse trabalho – estudo para um outro, de
encomenda, e ambos com autorização do Museu Nacional de Arte Antiga, onde o meu
pai passou horas a estudar a obra quinhentista – estava com pequenos adesivos a
assinalar minúsculas alterações de tom. Onde se via negro, o meu pai via
negros.
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Dessas muitas viagens recordo-me da que fizemos até
Bragança. Não havia auto-estrada para o Porto, mas da estopinha não tenho
ideia. Devia ter onze anos, um para cima ou um para baixo, e adorei ver os tróleis
do Porto, onde um dizia que Avintes – achei o nome tão engraçado... e ainda
hoje me sorrio a lembrar-me da alegria parva, dum pré-adolescente, de
pronunciar Abintes.
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Do Porto fomos em direcção ao Douro, apanhámos o comboio primeiro
na Estação de São Bento – ou Sambento, para quem gosta de falares – mudámos em
Campanhã. O que tem de bonito a primeira – uma das mais felizes gares
portuguesas, com azulejos de Jorge Colaço – tem de feiura a outra, que parece
um apeadeiro gigante e encardido – e assim acontece também em Coimbra.
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A vista da linha do Douro enche a alma. Mas o arrebatar da
respiração começou no Pocinho, onde se fazia o transbordo para a linha do Tua,
que desaguava em Bragança. O comboio era pequenino e lento e trepava,
pouca-terra-pouca-terra, até Trás-os-Montes.
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Com os olhos quase virgens, sem medo mas pensativo,
enamorei-me pelas paredes de encosta dum lado e com a vertigem do outro, que só
parava no fim troço de água, um risco largo de verde escuro, bordado a branco
fininho, dos tropeções nos calhaus. Do outro lado vi, como se fosse um espelho,
escarpas brutas, babantes de amarelo-alaranjado do enxofre, escorrentes nos
cinzentos, com umas pouquíssimas plantas doidas que nesses muros escolheram
fixar-se.
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O comboio corria em bitola estreita e os bancos eram de
madeira, com alguma ergonomia. Eram de suma-a-pau e não sumaúma, brincava o
Manuel Jorge, o pintor. A minha mãe, quase sempre calada, mostrava o enlevo.
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Conversador e activo, o meu pai meteu conversa com quase
toda a gente e tanto se falou sobre aquela linha, aqueles povos, as vidas de
outrora e da linha e sua vista. Dessas conversações não me lembro, mas fixei
uma piada:
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– Este comboio é tão lento que se pode sair, em andamento, pela
porta da frente, fazer xixi, apanhar umas flores, esperar um pouco e entrar
pela porta de trás.
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Apaixonei-me por Bragança e por Vinhais. A capital de
distrito era uma aldeia grande e longínqua e Vinhais tocou-me pela decadência
do património medieval. Voltei lá, muitos anos depois, e essas pedras estavam
barradas com cimento, uma tragédia de gosto e bom-senso.
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Uns anos mais tarde (talvez oito, nove ou dez) andei a
mostrar Portugal à Kerstin e tive de a levar até Bragança pelo caminho mais
bravio. A bitola estava ainda reduzida e a máquina uma ternura que arrastava
duas carruagens. Entrei e decepcionei-me, porque tinham tirado os bancos de
suma-a-pau por uns bancos chatos, duros, desconfortáveis – umas coisas verdes
iguais aos que equipavam a linha de Sintra. Moderno não é sempre progresso, os
de madeira eram muito mais confortáveis, por se ajustarem ao corpo.
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Mostrei-lhe o século dezanove e ela deu-me o século vinte; a
minha namorada alemã vivia em Wuppertal, uma cidade em que o metropolitano tem os
carris em cima e se prende às linhas por um braço, causando o balanço que lhe deu
a alcunha, ou o nome próprio, de «comboio que levita», Schwebebahn. Cidade que
Wim Wenders filmou em «Alice e as cidades». Cidade onde a bailarina e
coreografa Pina Bausch fixara a sua companhia de bailado, a Wuppertal Tanztheater.
Cidade onde nasceu a poderosa multinacional Bayer, cujo complexo, o primeiro,
foi cercado pela cidade, é atravessado pelo bizarro veículo. Cidade que, fora
isso, não tem nada de interessante e onde já não vive a minha grandíssima amiga
Kerstin e o fantástico marido Markus.
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Regresso à viagem no século dezanove... Desesperados pelo
conforto e, sobretudo, pelo cheirete dum velhote, fomos indagar a carruagem
seguinte. Parecia ter metade do tamanho, mas havia uma porta ao fundo.
Abrimo-la e era espaço de carga – levava o correio, um ou dois pacotes. Tão
larga e comprida para tão pouca coisa...
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Pouca coisa? Não! Uma porta larga, para permitir a entrada
de cargas volumosas. Mais do que porta, muito mais do que janela, era o portão
para a liberdade dum salto ou varanda, aberta e apenas com um ferro para alguém
se agarrar caso fosse preciso. Sentámo-nos no chão, com os pés no estribo e
bebemos o ar de cheiros que fazia parte da paisagem.
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Em Portugal teima-se na asneira de abandonar as linhas
férreas. Não digo apenas as antigas e quase vazias, até as que não nascem...
Aos anos que oiço falar numa linha de mercadorias, em bitola europeia, entre o
terminal de carga do porto de Sines, de águas profundas, e França, passando sem
salto ou transbordo a fronteira dos Pirenéus – entrada privilegiada e óbvia
para grandes cargueiros – e nada se faz. Em contrapartida pensou-se em comboios
de alta velocidade sem cidade onde parar e fez-se um aeroporto em Beja, meio
caminho de duzentos e setenta e sete quilómetros e quinhentos metros entre
Lisboa e Faro – infra-estrutura que serve uma área metropolitana de pouco mais
de vinte e cinco mil habitantes. Mas houve tantos mais.
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A força dum povo – inculto mas cioso das suas coisas, que no
tempo certo consegue reparar nas patifarias que querem fazer ao que é seu –
rasgou a barragem do Vale do Côa. Os portugueses compreenderam que aqueles
riscos, que ninguém percebia, eram importantes. Juntaram-se intelectuais e paisanos,
assinaram-se papéis do abaixo-assinado; do duque de Bragança, representante de
oitocentos anos de Reis, a intelectuais e anónimos. O Vinho do Porto,
património único e valioso, deu outra ajuda. Nos momentos importantes, há
canções que se tornam hinos. Nesse momento foi o nascente hip hop português a bandeira
sonora da causa, dos Black Company.
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– As gravuras não
sabem nadar, yô!
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Foi em 1995 e Portugal fartava-se da democracia de voz
grossa do Governo de Cavaco Silva, que levou mais uns tabefes na Ponte 25 de
Abril.
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A força das ideias tanto bateu, e com tanta força, no betão
que a barragem não vingou. Quase vinte anos depois, os portugueses voltam a ter
de se mover, agora pelo Tua. Agora é mais difícil argumentar, não há gravuras, mas
nem por isso a luta deixa de valer a pena.
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Do que se fala?
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– Fala-se de defesa do meio ambiente. Fala-se de vinho, do
Porto e do Douro. Fala-se da paisagem humanizada por gerações de trabalhadores,
que permitiram a agricultar-se nas montanhas. Fala-se em todo esse património
que a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura) classificou, em 2001, como sendo de interesse da humanidade.
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Não é com intervenções artísticas que se faz a ressurreição
de bens públicos. Com a lição aprendida a quando do movimento contra a barragem
do Vale do Côa, a EDP arrebanha agora artistas consagrados e arquitectos de
prestígio... matar ao luar não é menos criminoso do que o fazer na rua à luz do
dia – como se fosse um filme negro com detectives.
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Esta luta pelo Tua tem a «virtude» de mostrar o rosto de alguns
dos grandes nomes das artes portuguesas e das elites da arquitectura. Não quero
fazer juízos de carácter dos artistas Pedro Cabrita Reis, Pedro Calapez e Joana
Vasconcelos, que têm sido convidados a criar arte nas infra-estruturas hidroeléctricas.
Ficamos a saber que gostam de ouvir o tilintar das moedas nas algibeiras – o que
é o que é – mas nunca lhes ouvi discursos altruístas acerca da defesa do
património e pode ser que tanto lhes dá como se lhes deu o Douro dos socalcos,
o vinho único de classe mundial e as plantinhas e a bicheza.
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Mas Eduardo Souto Moura e Álvaro Siza Vieira dão-me vómitos.
Tudo o que disseram afinal tem uma excepção e a excepção é o atentado ao
património onde vão poder mexer, a troco duma transferência bancária, que tanto
pode ser dum cêntimo como de três mil milhões de euros.
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Siza Vieira mete-me particularmente nojo, pelo que defendeu
para o Chiado e pelos bonitos riscos que traçou da obra humana e natural do
Douro. Poderão dizer:
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– A assinatura de tão reputados arquitectos, ambos
vencedores do Prémio Pritzker, dá garantias de boa integração na paisagem e vai
criar um sítio de interesse cultural.
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Cultura que destrói o único e o frágil lembra-me a
Santíssima Inquisição e a perseguição ao pensamento divergente, queimando
livros e pessoas. Para mais, matar é sempre matar, nunca se mata mais-ou-menos.
Se matarem o património com a barragem do Côa, não serão São Álvaro (santo dominicano,
nascido em Córdova em 1368 e morrido em 1430) nem os dois São Eduardos (ambos
reis de Inglaterra – O Confessor, 1004 a 1066 e O Mártir, 962 a 978) quem irá
miracular a aventesma. Muito menos os arquitectos Álvaro e Eduardo quem irá
embelezar a besta-fera.
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Não, não acredito em milagres... Acreditando em Deus – num sentido
de consciência moral, ético e espiritual, mesmo em agnósticos e ateus – sei que
haverá quem, mais ilustrado «lá do outro lado», agasalhe esta luta. Mas se a
barragem do Tua for levada numa enxurrada de cidadania, o correr da água irá lavar
os maus pensamentos, será por labor dos conscientes, numa batalha na Terra
contra o materialismo.
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Digam: são trezentos e cinco milhões de euros. Quanto vale
um abutre, quanto vale a fauna e a flora selvagem? São quatro mil empregos,
directos e indirectos. Até quando? Até dois mil e dezasseis. Depois disso? Os
mesmos sítios ermos e os paisanos que não morrerem nem abalem para onde a vida
dá mais uns trocos.
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E se antes se criassem redes de turismo e se embrulhasse todo
o Vale do Douro até ao Planalto Transmontano num pacote de beleza, cultura e recreio?
Daria mais trabalho, a Câmaras, empresários... Começando no Porto e acabando em...
não só de luxo. Muito mais euros e mais trabalhos daria. Não Já, mas mais logo.
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Ainda que lá não vá ao Tua, quero que exista. Tal como quero
vivos o lobo e o urso não tencione encontrar-me com eles.
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Pois, a luz. Que luz essa que ensombra?
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Estou-me nas tintas se vamos importar mais electricidade,
que vamos pagar mais... só tenho dez dedos na mão e não cortaria nenhum para
que as minhas mãos coubessem numa luva com nove entradas feita de prata e ouro –
que confortáveis seriam.
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Ah! Já me ia esquecendo... a soalheira Alemanha consumiu, a
nove de Junho passado, cinquenta vírgula seis por cento da energia a partir do
Sol.
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O número de horas de Sol em Portugal situa-se entre as duas
mil e duzentas e as três mil. Na Alemanha, a variação é entre mil e duzentas e
as mil e setecentas.
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Nota 1: Por limitação do número de caracteres nas tag, os créditos dos vídeos são expostos aqui:
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Nota 2: A música «As coisas mais bonitas que vi» é o hino pela defesa do Tua e tem a autoria de Márcia e Luísa Sobral. Nela participam também Amélia Muge, André Tentúgal (We Trust), Catarina Salinas (Best Youth), Frankie Chavez, Mafalda Veiga, Marta Ren, Rui Reininho (GNR), Samuel Úria, Selma Uamusse, Susana Travassos e Tiago Bettencourt.
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Nota 3: Para quem ficou curioso com o Schwebebahn, aqui
fica um vídeo que acompanha parte viagem – tentei pôr a viagem toda, mas os quarenta e quatro minutos de filme são demasiados para a capacidade do Blogger.
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