Não tenho a certeza se valorizamos a boca, sobretudo por
dentro. Desconfio que a boca é como as mães, só nos lembramos quando nos faz
falta, por vezes já no outro lado da vida. Tal como uma mãe, a boca
alimenta-nos.
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Dentro da boca cabem o doce, o salgado, o amargo, o ácido e
o umami, e o prazer que deles se consegue. Mesmo quem não tem prazer ou grande
prazer com a mesa tem preferências.
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Supostamente todos os dias lavamos os dentes, pelo menos de
manhã e ao deitar. É uma obrigação de higiene e mesmo que não fosse seria de
respeito por causa do hálito. Claro que há campeões como o alho ou a cebola,
que se guardam e agarram tão bem que nem a pasta mais voraz os consegue retirar
completamente.
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Bem, há a obrigação da lavagem, mas lembramo-nos deles
quando nos doem e temos de correr para o dentista. Ou quando a velhice nos tira
e a mastigação se torna difícil. Há as próteses, pontes, implantes, coroas,
aparelhos, a cerâmica, o titânio, o ouro – alguns estarão repetidos, mas de material
de boca percebo pouco.
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Por vezes os dentes zangam-se com os alimentos frios e
quentes. Dão coices que lançam dores até aos ouvidos.
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Há a língua, que é uma chatice na cadeira do dentista,
porque se mexe e dificulta o trabalho ao doutor. Quando a trincamos... ui! Dor
tão incomodativa quanto a de morder as paredes da boca.
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A mesa – a boca por arrasto – é uma secretária para negócios
vários, seja ela mesmo de tabuleiro e pernas ou seja no chão com os convivas à
volta. Julgo que em todos os povos o momento da comida tem alguma solenidade.
Do nascimento, ao simbolismo da procriação, que é o casamento, ao falecer.
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Reis e presidentes de república dão recepções em seus
palácios em que o banquete é obrigatório quando o convidado é importante e se
vai demorar uns dias. Há as chatérrimas conversações para comprar a porcaria
dum tapete, supostamente exótico, nos países árabes. As boas-vindas nas tribos
de toda a parte. Por aí, por aí e adiante.
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Há o protocolo da mesa, que se divide entre a habilidade de
maneio dos apetrechos e o modo de manifestar satisfação ou falta de educação.
Mastigar de boca aberta, causando sons pastelados e visões evitáveis, é comum
nos portugueses – penso que nem se apercebem ou são procedimentos que estão de
tal modo enraizados que não se liga – eu ligo. Há os arrotos que condenamos e
outros aplaudem. Há o educado e respeitoso sorver ruidoso e o desagradável
sorver ruidoso.
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A boca – se pensarmos bem nela – gosta que as comidas
empratadas tenham uma ordem. Não por ritual, mas porque as determinações,
convencionadas após experiência, mas porque os sabores vão-se completando e sobem
nas intensidades.
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Há bocas que não gostam de vinho e outras que ganham tanto
prazer. Alguns bebem de tudo e outros dispensam os aromas e sabores de cartão
molhado ou os que lembram estribarias. Quem diz prazer enófilo pode considerar
outra bebida.
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Quanto ao álcool existem pessoas que, por segregarem
qualquer químico ou não segregarem – não sei – podem beber sem tino, porque o
sopro não acusa penalidades nos testes do balão que as polícias efectuam nos
auto-stopes ou nos acidentes.
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Quando me nasceram os sisos, os do primeiro andar doeram-me
tanto que desejei ser uma ave ou enviar-me para o mundo dos espíritos. Doeram
para não dormir uma semana inteira e para chumbar num exame de condução, por
ter adormecido ao volante. Não fosse o examinador ter travado e um automóvel bem
estacionado teria sido abalroado. Simpático, o senhor engenheiro, como eram
conhecidos à época, compreendeu a situação e em vez de me chumbar escreveu que
não tinha comparecido ao exame – é que uma reprovação podia (pode) mandar o
candidato de volta para as aulas de código da estrada.
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Nessa semana, a do Natal ou do Ano Novo, consegui falar com
o meu dentista. Não havia telemóveis nem emails e a clínica estava fechada.
Ainda assim dei com ele, que prontamente deixou o descanso para me aliviar. Deu-me
uma pirula mágica e a dor desapareceu... até às quatro da manhã, de madrugada,
e fiquei em claro. Bem me aconselhou, o doutor, a não fazer exame de
condução...
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Foi o meu dentista durante quase trinta anos, mas agora
retirou-se. Disse-me, nessa vez, e lembrou-se noutras, que nunca vira sisos tão
grandes. Até afirmou que pareciam dentes de burro. Ah pois que doíam como
#*£@+$&!
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Desde então que não sei o que é uma dor de dentes. Tenho,
por vezes, uns incómodos, umas coceguinhas irritantes... Como dizia, num
inquérito televisivo de rua acerca do frio – uma vaga de frio polar, diz-se
agora, dantes chamava-se Inverno – um ucraniano:
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– Frio? Frio é na minha terra, na Ucrânia. Isto é talvez
fresquinho.
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Assim são as minhas dores de dentes. Doem? Doer foram os
nascimentos dos sisos! Apanharam-me a boca, os ouvidos, os olhos, a testa, o
humor. Porra! Os de baixo não incomodaram, o que me leva a crer que sou menos
burro em baixo do que em cima – não sei se é bom se é mau, mas com a esperteza
dos asininos penso que ainda bem, seja o significado o que tiver de ser.
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Bom, não vivo do vinho nem da comida, embora muita gente
pense que sim. Ganho a vida a escrever sobre economia e agricultura. Por isso,
a boca é-me muito útil. O olfacto também, mas escreverei acerca do nariz quando
tiver de ser – só digo que o cheiro a pescado é cicuta e arsénico para nariz e
entranhas gástricas.
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O sorriso! O das mães, oh! O das avós, oh oh! O do pai, sem
oh! O dos avôs, leve oh! O dos amigos, qual oh?! O do ser amado, oh que dor tão
boa! O da sedução, ai! O da auto-estima, hum! O da vaidade, qualquer coisa oh!
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Não me lembrei de escrever sobre a boca porque me olhei ao
espelho e conclui o quão belo sou. Tal como os olhos, a boca fala e não me
refiro à articulação dos sons, mas ao estado de ânimo.
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Lembrei-me de escrever, há já umas semanas, porque o meu
dentista se retirou e eu estava com uma comichão num molar. Segui a sugestão da
amiga Sissi e apanhei o metro até ao Cais do Sodré. Atravessei a avenida 24 de
Julho, onde a Câmara Municipal de Lisboa se esqueceu de mandar pintar
passadeiras para peões e de pôr semáforos, ladeei, pela estrada, a esplanada do
Mercado da Ribeira que abusa de todo o espaço, virei à direita e cheguei à Praça
ou Largo de São Paulo – acho que é largo, mas na realidade é uma praça e bem
simpática, exceptuando o quiosque, onde os empregados são duma antipatia que
roça a falta de educação.
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O Largo de São Paulo que, em tempos, frequentei à hora do
almoço. Ia porque encontrei paz na Igreja para rezar. Sou cristão não católico
e penso que se pode conversar, pedir e agradecer a Deus ou a entidades de
superior moral e espiritualidade, mas ali tinha paz e o coração enchia-se.
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A Igreja de São Paulo, de suave barroco, estava a ser
restaurada e já conhecia de vista as restauradoras, acho que eram só mulheres.
Uma era bem gira, mas não reparava em mim, que estava tão solteiro e carente...
ai! Ai, o #*£@+$&! Não gosto de intimidades postas a público e muito menos
destas, cruas e verdadeiras.
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De regresso ao passado próximo; estava adiantado na hora e
sentei-me nas cadeiras da esplanada do quiosque a beber uma Água das Pedras.
Olhava para o número 19 e pensava: que saudades vou ter do meu dentista!... os
dentistas são como os mecânicos de automóveis, quando encontramos um que nos
satisfaz, mais ninguém nos mete os dedos na boca.
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Chegou a hora, subi ao primeiro andar, puxei a porta no
sentido contrário e, como sou burro – confira-se no que disse o meu anterior
dentista acerca dos meus sisos – insisti. O material tem sempre razão e cedi à
realidade. Entrei e sorriram-me.
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Na mesa de vidro estão dois papéis. Um diz que tem livro de
reclamações e outro que tem livro de elogios – tenho de escrever neste.
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Fui intervencionado e voltei. Voltarei até ter uma boca
nova.
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Como bem sabeis, nestas crónicas gosto de pôr uma imagem ou
um vídeo no blogue joaoamesa.blogspot.com e no infotocopiavel.blogspot.com é
obrigatório.
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Não colocarei a imagem referente à clínica, pois seria
publicidade e este é um texto de agradecimento aos doutores e à amiga Sissi,
que tem um miúdo que conheci desde o berço e hoje é homem feito e alto como o
#*£@+$&!
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Não é publicidade, mas devo colocar o linque para o sítio nainternet. É este. Ide, ide quando tiverdes dores ou quando as quereis prevenir.
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Nota: Pintura Bizantina de São Paulo, Escutura de Bernardí Roig, Pintura de Carlo Dolci de Santa Apolónia (padroeira dos dentistas», Vídeo do anúncio à pasta medicinal Couto.
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