digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

segunda-feira, outubro 31, 2016

À meia-noite haverá fogo-de-artifício

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– Tens tempo?
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– Tenho algum.
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 – Tens tempo até amanhã?
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– Como assim?
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– Ou antes ou para lá.
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– Vamos viajar?
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– Sim, é isso.
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– Para onde?
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– Não sairemos daqui, do feudo. Quero mostrar-te os lugares do jardim, aquele das namoradas e aqueles onde ninguém vai.
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– Porquê?
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– Confiança. Sinto o apelo da partilha. Sabes guardar segredo?
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– Sei. Vou.
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– Vamos. Os homens não sabem guardar segredos. Por isso conto contigo, que guardes de todos e transmitas para que o mistério se saiba e não se encontre. As senhoras sabem guardar segredo, nem todas, mas nenhum homem consegue.
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– Excepto nas coisas das infidelidades de cama. Não se perdoam, mas nós, mesmo dos nossos inimigos, nunca abrimos a boca.
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– Somos túmulos e elas vento. Mas, tanto faz, isso não interessa. Partilharás, se o entenderes. De qualquer modo, ninguém conseguirá encontrar o que te vou mostrar.
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– (…)
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– Conheces a gare?
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– Ouvi falar, mas tudo é grande e as pessoas intrigam ou simplesmente mentem. Aqui, tudo pode ser verdade. Quando tudo pode ser verdade é porque há, pelo menos, uma mentira. Diz-se tanta coisa…
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– Sim, existe uma gare.
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– Sabes conduzir uma automotora?
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– Sei. Tanto faz, ela sabe ir sozinha.
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– Onde vamos?
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– Ao princípio e regressamos, onde tudo começa. Vamos ao pavilhão árabe e à ilha dos ciprestes, a ilha do amor, dos entardeceres e das auroras. Onde se faz amor. O lugar onde se transcende o erotismo, onde qualquer mulher é desejada e a posso amar como se fosse Eros, Apolo e Afrodite.
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– Amas muito?
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– Amei demasiado. Demasiadas mulheres, demasiadamente e mais desapontei. Às vezes queria amá-las a todas, ter esse poder.
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– Donde vem esta água? Todos estes cursos vivos ou falsos…
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– Daí. Vêm daí, não sei bem. Nascem aquém das montanhas da fronteira do mundo, a que acrescentei o muro e o medo. Vem, vem conhecer onde waldeinsamkeit.
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– Vamos ao último lugar.
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– Há mais?
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– Há o principal. A verdadeira razão da viagem.
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– Maior?
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– Maior. É um lugar pequeno, se comparares com o que acabaste de ver. Porém, é parte do infinito e os outros locais fazem parte do mundo. É um jardim.
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– Não conheço o teu jardim? Os teus jardins.
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– Só estiveste nos jardins formais. Hoje viste a vida e o amor. Agora verás a melancolia.
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– O que tem a melancolia?
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– Saberás se tiveres uma. Ninguém a conhece, só o peso que lhe diz respeito. É apenas um lugar, com árvores, clareiras e animais.
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– Como um lugar qualquer.
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– É o lugar onde posso ser só. Onde a melancolia, a saudade, o remorso e o medo sentem a segurança para saírem e onde os contemplo, ligado e em ponto-de-fuga.
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– (…)
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– Não entendes nem perceberás. Contenta-te com a minha palavra de que é o lugar mais íntimo. É, de facto, um lugar qualquer, por isso seguro, ninguém desconfia, mas ninguém vê.
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– Belo, todavia.
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– É um lugar como outro, só que meu, inteiramente meu, onde cada sentimento, cada pensamento e cada voz são minhas. Quem pudesse chegar, mesmo carregado de tristeza, não ficaria. Cada qual tem a sua.
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– (…)
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– Repara. Não se ouve nada, nem uma ave.
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– Nem corre vento.
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– Assim o determinei.
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– Julgas-te Deus. Como se tivesses o poder da vida e da morte.
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– E não temos todos? Quando decidimos nascer e agendamos a ida? Ainda que não nos lembremos. Podemos sempre antecipar a morte.
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– Discutível, inquietante e irracional.
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– Tanto faz. Pode ser, não pode?! Repara… não tarda o anoitecer. Preferes uma nuvem de estorninhos em algazarra ou ouvires uma coruja no breu? Basta-me estalar os dedos.
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– Quero as duas coisas, se puder.
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– Seja! Vê.
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– (…)
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– (…)
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– Sem palavras, como um mago.
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– Agora que sabes da melancolia, vem jantar. Hoje será formal e vem gente de toda a parte.
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– Quem?
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– Gente, a maioria espera qualquer coisa. As pessoas esperam sempre qualquer coisa.
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– Como conhecer estes lugares?
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– Se soubessem, certamente. À meia-noite haverá fogo-de-artifício.

Colecção de advérbios de modo

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Estou abastadamente farto, oficialmente em tédio, generosamente desprendido, inegavelmente falível, obrigatoriamente irrelevante, inesquecivelmente esquecido, inequivocamente abandonado, totalmente tóxico e incansavelmente cobarde para ser determinantemente consequente para finalmente morto.

A menina do espelho

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Só o jardim me importa. Na verdade, há a casa, as passagens secretas para a infância, o vinho e noite e sua luz, os gatos desrespeitando as convenções, até a da gravidade, são-lhes relativas.
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Pelos espelhos passam os antepassados como nas pinturas, vigiando-se e prendendo-me e ao meu ânimo. Mas não há ácido desoxirribonucleico.
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Na casa não há nem pai nem mãe. Só coisas, algumas inagarráveis ainda que alcançáveis. Várias essências de gente e diferentes densidades.
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Abro as portas quando posso atravessar paredes, para normalidade dos outros ali espalhados em liberdade.
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Quando não fujo converso com gente de carne, espíritos e inexistências. Não sei se figuras são personagens dentro da cabeça, chego a duvidar que existo.
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Quando vou no avião sinto saudades do jardim. Quando venho no avião sinto saudades do jardim. Na verdade, da casa. Na verdade, sempre em casa.
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A menina da pintura vive dentro do espelho e no olhar tem a mansura da infância, quando a mãe mima e a avó dá o colo. Chego a pensar que sou e mo quisesse dizer.
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Se for, onde perdi? Para ter chegado sem caminho e não sair ou nunca deixar de voltar.
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Na casa não há nem pai nem mãe. No entanto sou e sendo-o sou aqui sou isto sou todos. Mas duvido que exista.

Rio que correndo me afogaria

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A pele é sempre pele mas a insinuação faz os olhos verem mais e essas visões, caramelizando o tempo e o tino em redor, aquecem o sangue e o coração sobe à garganta. Inquietantemente serena, inexpressiva como o rosto do gato, és publicidade ao Inferno e ao Paraíso.

domingo, outubro 30, 2016

Banda-desenhada

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Ir é levar vento. Ficar é ficar com ele.
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No Inverno é-me sincero.
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Na noite só e melancólica temos longas conversas, enganamos o tempo, esquecemos a demora e o esforço e subitamente adormeço ouvindo-o.

Olhar a rua

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Indo-indo para um lado qualquer por uma coisa ou outra ou por alguém, fugindo ou abraço. As ruas também servem para correr, a luz para enganar e o nariz para respirar.
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Há momentos em que não tenho nada, espero uma coisa, alguém que se me sente. Todos os dias perco na manhã e assim pelas horas vítima e actor até talvez ao entardecer e só pela noite sou exuberante e depois durmo.
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A hora mudou a noite passada. A luz ficou. O vento sempre levando o incómodo, assim o fantasio. Sentado não tenho nada, digo-o por dentro vendo-me fora de mim.
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Inexisto por vocação e na noite, onde o azul se mescla com o preto, dito palavras tóxicas e puras. Nas cores obsessivas saio de mim restando onde sempre sou, desejo-o, para lá da janela.
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Pela escuridão se foge da escuridão para, na escuridão, dela se esconder.
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Desperdiço o amor da mãe, na comoção de me ensurdecer, antecipando o inevitável, digo cansado, já zangado, que a amo.
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Mudou a hora, não choveu e a noite foi escura, mesmo junto aos candeeiros e na preguiça estiraçada recoberta por manta grossa como se fosse gripe.
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Indo com pressa sem caçador, de dentro para fora e inverso. Os dias são noites e suas melancolias sós.
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Inexisto e porque aos outros inexisto pudesse inexistir, não morrer.

sexta-feira, outubro 28, 2016

Mina 9H

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As ruas perderam a noite na multidão. Ia pela calçada molhada confessando-me, ouvindo a linha de lápis nove agá, silêncio do andar educado, como se não estivesse ali e Lisboa conquistada. Ou nossa quando cortando o tempo falávamos pueris ou ponderados. Esta euforia rompe-me a melancolia.
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Nota: Dedicado a JA, SC e VR.

Elazul

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Pernas imperfeitamente imperfeitas, peito esculpido por Eros, olhos infalivelmente ternos, a boca de temperatura certa e dentro, onde dentro é dentro e íntimo, como nunca. Pensamento de luz.
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Liu Hong
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Irmãos Stenberg
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Edward Weston
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Stephanie Peek
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Barbara Cole

Premonição

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A premonição é castigo, uma caixa onde se escondem os desarranjos, o lastro que largaria se pudesse.
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Nunca procurei aventuras, encontraram-me, não fugi porque sou manso. Do que fiz.
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Quase tudo.
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Sou quase nada.

Vida

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Nota: Vinheta do livro «A marca amarela».

quarta-feira, outubro 19, 2016

terça-feira, outubro 18, 2016

O Vórtice de liroá

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Vinte para as duas, quinze e um quarto, foi depois do meio-dia.
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O céu estava um lençol de seda, entendia-se-lhe o azul por trás e a luz morna dum dia de meteorologia indiferente. O príncipe jogado de borco numa toalha de linho e sem inexistentes por perto.
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Todo seu, egoísta e derrubado, desistente das lágrimas e recolhido. Não fosse o tamanho da dor e não seria príncipe.
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Cristalino apesar da tumulto enganava-se e sabendo-o enganava-se mais e sabendo-o mais ainda. Sabia que as mortes estúpidas não são mais infelizes do que as vidas patéticas.
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Só não sabia quem lha tirasse ou se a perdesse se já perdida, é-lhe sobejante.
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Nessa tarde – ali é quase sempre depois do meio-dia – vestia casaca e aprumado no pano branco da soberba não passava dum sapo gordo com um barrote de betão no pensamento.
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Nessa tarde, entremeando o barafundar, reparou nas mimosas e vendo um melro reparou que se esquecia de ouvir o sítio. Procurou um dente-de-leão para o soprar e assim supor a despedida do engulho.
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Tudo ali lhe importava porque irrepetível, desse por onde desse e ali tão longe de hora. Rodou-se pesado fora do pano, o verde agarrando-se à casaca amarrotada, viu um espelho, nele se viu, no céu translúcido, contemplando a idade e as feridas.
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No lodo murmurou que a consciência importa e os remorsos se entregam por telepatia. Sim, a memória desinquietando-o, varrendo-se a preto e branco, na verdade um cinzento pardo e baço, como vento nuclear.
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Aquele sítio não vê nem ouve nem há canavial para as confidências do Barbeiro de Midas nem alcançam fantasmas. É o jardim do príncipe, tão reais e sós.
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O jardim, especialmente aquele sítio do jardim, é tranquilo como o cataclismo quando se desiste e se afoga ou se queima ou o sangue se despede.
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Penso que a tarde ficou fria, ali não se chegam espectros, sentia arrepios. O white tie não esconde vergonhas apenas mostra virtudes e ainda menos sossega o álgido. Tentava consolo protegendo as espaldas e poupando-se à respiração do coração sacrificando-se pelo peso e melancolia.
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Na falta da inexistência compreendeu o medo de ter coragem, efabulando comboios velozes e imparáveis de comprimidos, porque as balas são-lhe falíveis, porque pistola não tem, por medo de se matar. Que má-língua haveria por falhanço se aquele local inconfidenciasse.
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Fechou os olhos morrendo-se no anoitecer e nela toda lhe falaram médicos, anjos e extraterrestres e conversou com doentes e miseráveis, parceiros de impaciência e indecisão.
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Uma noite toda num hospital de campanha vogando centímetros acima da pedra, meditando na descrença dos amigos – nele e nos seus vórtices.
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Não acertou conversas, recapitulou e concluiu reconhecimentos e dívidas, tristezas, enganos, adiamentos e incompaixão, pensando nas desculpas que tinha de remunerar a quem doloreu.
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Essa noite foi toda noite.
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Acordou no mesmo local do jardim e já depois do meio-dia.
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O príncipe desconhece se se engana nos dias ou se lhos enganam, deduz uma noite, um final, onde tudo será lido e sabido.
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No jardim, todo, é outro sítio, onde passeia a vida como a obrigação de passear o cão. Trela curta não faça o devido. Quando solta se mantém estagnada e fiel.
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Desgosta dos silêncios, que incompreende, assim pungentes. Não as tendo, as lágrimas são-lhe inevitáveis.
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Ali costuma ficar vazado de borco sabendo que quando se nada tem para fazer nada se faz e sem vontade não existe vontade e se falha a vida falta a vida.
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Sei-o porque sonhei.
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E para si diz:
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– Não fui ali nem volto já.

Café e cigarros

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No escuro sob os lençóis e invisível a pele é remoinho de cair em cores sem nome e palavras sem semântica. Além do aroma sobejante do cataclismo  e das palavras que a elas faltam e a ele sobejam.
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Que estupidez isso da pele. Qual o tom certo se não existe errado e ainda ao longe um nó meio engolido em silêncio.
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Que estupidez isso dos lábios molhando-se e as línguas trocando salivas.
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Que estupidez ser-se animal.
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Que tristeza não o ser.

domingo, outubro 09, 2016

Casaca

Importará a forma a quem não deixou razão de pronúncia. Jogar-se desportivo ao rio não justifica um segundo parágrafo. Enfrentar, de casaca e cartola, o comboio terá melhor título. Se falharem notícias ou houver alguém que saiba, ficará por esclarecer o sensacional mistério de por que razão faltou a bengala de bastão ao abandonado.

E o que de mim disseram

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A vida passeia-me por trela curta, não me estrafego porque é indiferente ir, ficar ou voltar. Cão sem dono e dele recebo o destino, como ateu cego, costurando frases de incertezas peremptórias, inditas e indizíveis. Caio cão sem dono na cruz. Ninguém ouve. Ninguém vê. Ninguém diz. Ninguém faz.