Arte e vinho são duas palavras que se casam. Tantas vezes se
dizem que a verdade se esconde, tingindo a banalidade. Existe, e quando é salta
aos sentidos e deixa na alma o inconfundível toque de Deus.
Deus criou o homem, que criou o vinho. Deus tornou o vinho
sagrado. Já o era, antes de Deus ser só um e se nomear apenas com o artigo
definido no singular. O vinho celebra e evoca, atenua a dor e aviva a vitória,
aquece a esperança, espelha a alma, a essência e o carácter.
Perfeito é Deus, tudo o mais é procura e conquista. Estes
dois vinhos são perfeitos; na dimensão do homem, dos seus momentos e suas
contingências. São momentaneamente perfeitos, porque o vinho é uma arte do efémero.
Como qualquer criação, são eternas as suas memórias escrita e falada.
Gosto da tradição e da transgressão. Gosto que o sempre
exista para sempre e que haja sempre quem queira inventar além do sempre, para
sempre. Gosto dos artistas e dos oficiantes, gosto dos sábios e dos puros. Gosto
dos académicos e dos iconoclastas. De todos, mas só dos verdadeiros.
José Mota Capitão, enquanto produtor, pode ser isso e o seu
oposto. Não privo, mas sei da verdade que transmite pelo olhar e palavras
quando fala de vinho e dos seus vinhos. Como um criador, das artes ortodoxas, o
vinho, a sua arte, é feito para si e não para o público. Percebe-se que faz os
vinhos que quer e quer o que gosta.
Repito e acrescento: Gosto dos académicos e dos
iconoclastas. Mas só dos verdadeiros. A verdade dos vinhos de José Mota Capitão
é o seu maior elogio e trunfo. A honestidade é um tesouro, mérito na vida e na
arte.
Mota Capitão não faz petit verdot porque está na moda,
porque dá sainete, porque vende bem… pode isso tudo, mas faz petit verdot
porque gosta de petit verdot. Cabernet sauvignon é outro gosto deste vigneron.
Há umas semanas, a propósito duma reportagem para a revista
Vida Rural sobre o cultivo de arroz, que também produz, provei as novas edições
das suas mais procuradas criações: Anima e Cavalo Maluco, o L8 (2008) e o 2009,
respectivamente. Face a colheitas anteriores, em alta, os dois vinhos.
Dizia-me Mota Capitão que está a aproximar-se dos italianos,
a deslindar cada vez mais tarde os seus sangiovese. O mais novo tem quatro anos
e o vigneron já fala na hipótese de cinco anos para uma colheita próxima.
A tesouraria empurra muitos vinhos para a rua ainda em
criança, em vez de debutarem na mocidade. Ao ver as vinhas a evoluir com os
anos, fica maior a vontade de fazer bem. Pois que os enófilos aguardem a
revelação para a maioridade dum vinho.
O Anima L8 está de se babar. Qualquer momento serve, é
perfeito. O Cavalo Maluco é «um vinho muito bêbado», como definiu um amigo de
Mota Capitão.
O Anima L8 revela-se no nariz com café, especiarias
(cravinho suave, pimenta branca ligeira), notas herbáceas, palha, terra, fumo
ténue. Na boca é denso, tem uns taninos rugosos que enchem a boca, mas não a
brutalizam, vê-se que será um senhor à mesa de quem o souber e conseguir
guardar, tem potência e frescura, e um final levado da breca.
É mais do que sabido que Mota Capitão queria ser índio
quando era miúdo e brincava ao velho Oeste. Queria ser fora do todo, para ser
diferente no todo e ser feliz, podendo livremente escolher o que queria e quem
queria. Cavalo Maluco, o chefe sioux do povo Lacota… ilustre e magnífico. Que
nome melhor para se transmitir numa obra?
O Cavalo Maluco 2009… este é, esta edição, mais um que me
deixa doido. O seu lote é composto por 60% de touriga franca, 30% de touriga
nacional e 10% de petit verdot e é maravilhoso. Num primeiro embate um
apetitoso e rústico azeite suave… deixado restabelecer-se do despejo no copo, o
vinho assinala chocolate preto e fumo ligeiro. Adiante vêm aromas de amoras
maduras, alguns tons herbáceos. O correr dos minutos confere-lhe anis, caramelo
e azeitona. E já no fim, chocolate de leite e finura de café. Na boca tem
potência e acidez, uns taninos de seda, e se tal se diz tantas vezes que, para se
distinguir das outras, digo que esta veio pela Rota desde a China meridional. O
final é longuíssimo.
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Nunca fiz sexo tântrico, mas consta que concede orgasmos
longuíssimos. Este dá.
Produtor: Herdade do Portocarro
Origem: Regional Terras do Sado
Produtor: Herdade do Portocarro
Vinho, mesa, touriga-franca, arte, uma amiga, Vale Meão e Foz
de Arouce Vinhas Velhas de Santa Maria… interesses partilhados já descobertos.
Um abraço JMC.