digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

terça-feira, setembro 17, 2024

Ícaro queixou-se menos

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Não voarei no Concorde, mas não faz mal, nem no Caravelle, e isso já dói.

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Nem no Super Constellation nem no Electra nem no Tristar.

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Nem no DC-8 nem no DC-9 nem DC-10 nem no MD-11. Vou suspirando, qual menina adolescente vendo o cartaz da banda, pelo DC-3, que já aterrou sozinho. Largaram-no e lá foi ele, trabalhador humildemente arrogante. Velho e teimoso, aterrou sozinho.

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O 707, às vezes, fazia vibrar os vidros da minha janela. Ainda estava sobre o Tejo e já o ouvia no outro lado da casa. Corria para o ver chegar e corria para o ver ir embora. Não voarei.

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Voei no 727 e no Tu-154, que têm parecenças. No Boeing entrei pela traseira, sob o motor do meio e no soviético foi pela frente, sentei-me mesmo ao fundo, sob o engenho central.

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Gosto do 737… há tantos. É como as louras na Escandinávia, por tantas, prefiro as morenas mediterrânicas, e metade das vezes ao contrário.

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Infeliz, não melancólico, pensando no 747, que já não se faz. Devia ser proibido deixar de construir a Rainha dos Céus… por que não um fundo, das Nações Unidas ou da União Europeia, para proteger o passarinho cabeçudo?

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Nem no VC-10 nem no Il-62. Há tantos… a mim, que não tenho cagufas de voar, não me apanham num Comet. Como se houvesse um Comet para apanhar. Não voarei.

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Havia tantos e agora há tantos que não voarei… lembrei-me do VFW-F 614, esquisito como… escaganifobético, esdrúxulo, com aquelas asas… um zingarelho, uma mofamagarifamafofinha, que tem um ninho com sete mafamagarifamafofinhos. Voava cuncatoriamente, quase de certeza. Tão feio que não há foto de jeito para mostrar.

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Sim, o 787 é bonito, mas eu, sem dinheiro, não tenho o outro lado do mundo para ir. Só este, porque o Boeing são iguais aos Airbus e os Airbus são todos iguais. Rezo tanto.

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Não me falem no A380, que também é diferente. Pois é. Pois é um trambolho grande, mais feio do que uma francesinha a transbordar do prato.

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Já que falei numa mixórdia do Porto… ou dos arredores… fui para lá na barriga da minha mãe, num Caravelle.

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A minha primeira vez foi de Faro para Lisboa e do alto percebi que o Algarve é talqualmente no mapa, definido pelo Guadiana, o Atlântico e as serras.

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Do Porto, do FCP, não sei. Sei que não verei jogar o Peyroteo, o Eusébio nem tampouco o Matateu.

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Já ouvi:

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– Lisboa tem a águia, o leão e a cruz de Crist’e, o Porto tem a pantera e o dragão, animal que não existe.

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Tantas lamentações e mais o calor tardio que está lá fora e também cá dentro. Cerveja? Não beberei nem irei a lado nenhum.

segunda-feira, setembro 16, 2024

Não há eléctricos em Braga

 

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O que é a mentira?

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A pergunta faz pouco sentido, porque notável é a verdade. Por precaução, perguntamos pela veracidade, é isso. Contrariamente, afirmamos:

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 – É mentira!

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Ou artificialmente contornamos, falando o mesmo.

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Levo anos, frequentemente, até perceber evidências. Não sei se é por falta de inteligência ou pouca atenção, mas arrogantemente posso proclamar-me prudente. Espero, contudo, que colha sabedoria por essas pausas.

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Passei por tolo muitas vezes – ninguém mo disse, directamente ou, se o fez, não entendi ou olvidei – desdizendo essas provas. Sinto-me idiota, não pelo que não entendi, mas pelo que desdisse.

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– E se Pilatos tivesse dito:

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– O que é a mentira?

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O que seria de nós? Em que estado estaríamos se o episódio bíblico fosse doutro modo? Que debatam os doutores do pensamento, mas não haverá nem zero nem infinito.

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O meu apatetamento amplia-se dentro de mim, sentindo os castigos dos outros, mais brandos, e os meus. Talvez os outros nem tenham.

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A palavra da hora é a «inverdade», o seu estuário e donde desagua. Conversava, pensava eu estar ensinando, com um miúdo, a quem tenho por obrigação entregar conhecimento, sobre o significado de mentira.

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Dizia ele que se não é verdade é porque é mentira. Não tão claramente, desmentia-lhe e explicava. Ele, por teimosia de sono ou contrariedade infantil, não desistia. Cito-me nas próximas vezes, as suas respostas não importam, porque foram iguais.

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– Mentira é quando se diz, conscientemente, uma coisa que não é verdade.

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– Mentira é quando se diz, com maldade, uma coisa que não é verdade.

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– Se dissermos uma mentira porque alguém nos disse, e acreditarmos, não estamos bem a mentir.

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Estou perplexo por ter conseguido segurar uma afirmação imprecisa, em que as coisas são absolutas, e tornar tudo mais complicado. Como se tivesse aberto um relógio para explicar como funciona, não o tendo conseguido e ficado com peças de sobra ao remontá-lo.

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A «inverdade» ocorreu-me quando vi uma imagem datada, dum episódio ocorrido antes do meu nascimento e que julgara, de algum modo, ter sido coevo. Em instantes chegaram-me situações diversas do uso das palavras «verdade» e «mentira».

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Os políticos são mestres em retórica e se acumularem com conhecimento jurídico fazem naperões com artifícios linguísticos – mestre deve ler-se sábio, mas sabe-se que nem todos os mestres são mestres, se digo mestre é para facilitar. Na oratória repete-se a palavra «inverdade» – recurso abusado quando há pouco de substantivo e quase tudo de partida de ténis, possivelmente o desporto mais enfadonho.

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– O que vossa excelência disse é uma inverdade!

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Quem sentencia chama mentiroso ao outro e todos entendem. Na resposta, o visado não acusa a estocada que o opositor deu não dizendo. No espelho o direito é esquerdo, verdade e mentira.

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Aprecio o texto complexo e o virtuosismo do escrever, mas não é por gostar da pintura barroca flamenga que tenho de me deleitar com a escultura barroca portuguesa. A palavra «inverdade» tem-me agoniado até às veias.

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No entanto, a inverdade não é afinal só perversa, como a tenho avaliado. Quem a criou merece um Nobel qualquer – talvez a tenha gerado malignamente, mas tem uso bondoso, como a nitroglicerina serve para partir a rocha das minas, matar e dilatar as veias do cardíaco.

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O que me faltou, essa palavra, naquela conversa avessa.

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– A mentira que dizemos julgando ser verdade é uma inverdade.

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É brilhante! Não a minha descoberta, mas a invenção.

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Nota: na memória tenho um passeio por Braga, na década de oitenta, em que viajei de eléctrico. Afinal, estão parados desde 1963.

sexta-feira, setembro 13, 2024

Arestas

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Amaina e volta e retorna e regressa desatinado, o mar. Maravilhado numa angústia de amor, a que se obedece por não poder outra.

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Não sei se lhe gabe as ondulosas virtudes femininas ou lhe tema a ira do marido contrariado.

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Olho-o aprisionado, como os antigos. Tal faria eu se tivesse o céu nocturno inteiro, com todas as estrelas, as mortas e as vivas, como no tempo dos velhos.

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Não sei se o mar é verdadeiro ou um teatro e não sei o mesmo dos luzeiros celestes. E são diferentes.

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O camponês, ignaro da letra, lia o céu e não há vidente que saiba de mar. O firmamento é verdade e o corpo marítimo é a contradição repetente e irrepetitiva.

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O mar, o que é? A verdade é verdade e se o não é, é porque se permite. A fotografia não me elucida, nem a sisuda nem a fingida.

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Vemos o mar, o que deixa. Seja na claridade barroca ou na taciturna melancolia da névoa – dos mesmos modos nas noites, nas suas diferenças.

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Do céu? Se a nuvem se afastar e à noite ainda mais, com a permissão das lâmpadas.

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As estrelas desenham-se com poucos traços e as ondas com muitos riscos. Contudo, o céu e o mar não têm arestas.

domingo, setembro 08, 2024

Azul, azul de azul tão azul

 

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Receio tocar no assunto, porque ao fazê-lo sei que a porta se abre e voo para baixo, e a queda não finda.

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Penso em madeira: o caixilho da janela, o soalho como mosaico ou o piano.

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Poderei sair e ver o céu que prevejo azul, azul de azul tão azul.

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Do chão não passo e o teclado dar-me-á. Dará ao dará, o que for, voto por azul.

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Contemplo as teclas, adianto a direita, a esquerda enjeitou-me, hesito como num salto. Não sei tocar nem cair.

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Da fenestra para dentro há luz escurecente do ânimo. Claridade feia, podia calar-se a revelar-me o estado da minha alma, conheço-a da sentir.

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Escolho uma cadeira para ver o azul.

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Nesse meu sonho as pernas esticam-se correndo para a pedra da janela onde deixo os pés libertos.

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Estou na prisão, por não saber fazer mais nada.

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Não quero saber, se dizem amavelmente haver azul, tomo o rebuçado dessa cor, apago a luz da sombra e, sem olhar, contemplo os destroços como uma obra de arte.

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Resto de olhos fechados com o sorriso mais azul. Ninguém mo roubará. Lá fora é azul e esconjuro bicho.

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Azul, azul de azul tão azul.

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Não volto a tocar no assunto! A arte é o que se quiser e quero que seja.

quarta-feira, setembro 04, 2024

O branco, se devaneio, sonhei ou minto

 

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Foi um branco de dourado barroco, numa sala ambarina – um templo consagrado pelas chamas dos círios, onde vozes dos ausentes não entram e dos presentes se cativam  – verteu-se com cerimónia, silenciosa reverência e ansiedade infantil.

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Regrando silêncio casto, pecando por vontade boateira, em custo liberto duas verdades amplas e opacas. Genéricas para esconder e obscuras por desconhecer palavras de justiça, sou mero iniciado, e não virtuoso pudor.

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Aromas raros e paladares de mistérios.

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Um vinho de biblioteca restrita e regiamente nocturno. Sugeri conhecer o claviculário e a tranca da estante invisível e bebi-o fingindo saber carolíngio.

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Tocou-me a boca como o fantasma se encosta na vidente. Deixei-o ficar e em segundos de paz alvoroçou-me, como a dor do orgasmo. Engoli-o e fez-me seu escravo. Por ele recebi a bondade magnânima de Deus e a maldade rechonchuda do Diabo.

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Subi a escada celeste e numa nuvem… conte o quiser quem quiser, resto em silêncio cartuxo.

terça-feira, setembro 03, 2024

Astronauta

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Tenho de ir a Wuppertal, porque tenho de ir. Prevejo-me homem-do-futuro reconhecendo a casa dos seus distantes avós. Não vou procurar o passado, sou quase alérgico à saudade, sinto que preciso de fazer as pazes comigo. Contudo, não matei e fui feliz.