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João, tens quarenta e quatro anos, verdade?
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Verdade.
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Que balanço fazes da vida?
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Uma parte não me lembro. Da que me lembro, uma parte não me
quero lembrar, outra gostava de me lembrar. Pouco mais do que o presente.
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Sentes-te uma pessoa sem passado?
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Passado é passado. Por natureza é o «não é». O futuro também
é o que «não é».
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Estás a sugerir que passado e futuro são a mesma coisa?
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... Não sei. Nunca pensei nisso, apenas no passado e no
futuro, como mundos separados. Talvez sejam o mesmo, mas não quero dar-te uma
resposta definitiva.
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Já não és uma criança. Voltarias a fazer tudo o que fizeste?
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Não tenho a arrogância de dizer que não me arrependo de nada
e que faria tudo outra vez. Nem a lamechice de que fiz tudo mal. Pondo de lado
a infância, a adolescência é o momento da estupidez natural. Dessa fase
arrependo-me de muita coisa. Mais graves são as asneiras da vida adulta.
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Só referiste erros. Tiveste também vivências positivas...
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Sim, mas as vitórias são breves. As derrotas permanecem na
boca, descem ao fígado, segregam bílis, alojam-se nos intestinos, no estômago, apertam
o coração, teimam na cabeça, amachucam a alma.
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Tudo mau?
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Não. Claro que não.
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Dá-me um exemplo de felicidade.
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Não sei. Sei do contentamento depois da dor. Sem o ferimento
não haveria alegria.
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És negativista...
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Sim, sou. Espero sempre o pior.
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Assim sentes-te melhor quando tudo acaba bem e vês que
estavas errado.
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Não. Sinto-me apenas vivo e que não mando no universo.
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Acreditas em Deus?
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Acredito.
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Por que acreditas em Deus? O que te faz acreditar?
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Acredito por ser a explicação mais lógica para o todo. O que
me faz acreditar é isso.
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És, portanto, um homem de fé.
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Não. Não sou. Não sou de todo. Tenho pouca esperança e
custa-me, não por orgulho, pedir-Lhe o que quer que seja. Estou aqui e ele está
lá ou aqui ou em toda a parte. Sei parte de mim e Ele sabe tudo do todo.
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Não percebi essa ligação.
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Deus não é um instrumento. Deus é uma solução. É a
explicação para o todo...
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A ciência e a filosofia também...
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A ciência e a filosofia e as artes fazem parte do todo. Há um erro teimoso que é
confundir Deus com um culto ou com palavras e acções de sacerdotes ou igrejas.
Outro erro comum é dizer que Deus é tudo. Há a incerteza – penso – do local de
Deus... Deus é? Deus está? De que modo? Não sei responder.
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A ciência não matou Deus?
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Tanto quanto a filosofia ou a arte. O pensamento intelectualizado, em geral,
é autor confesso do crime de matar Deus. Porém não morre, e existe além da
vontade e crença de O matar. A ciência é espólio de Deus, como a arte, a filosofia, a cultura no seu todo.
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Como assim?
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A ciência explica, pouco a pouco. Explica factos, causas, origens. Não prova a existência de Deus, mas também não prova a
inexistência de Deus. Não conheço nada que o desminta nem vejo como o possa fazer, sinceramente.
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Mas viste-o?
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Não. Se senti, acho que sim, foi subtil. Mas entendo-o. Quanto a mim, é a explicação,
e a ciência – o conhecimento em geral – vai revelando a sua obra. Deus não é nem
oposto nem inimigo da ciência, da arte, da literatura, da filosofia, do que
quiserem... Quanto a ver para crer, nunca vi um átomo nem uma proteína nem um micróbio.
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Portanto, tens uma relação utilitária de Deus?
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Não. Não. Não uso Deus para quase nada. Faz-me sentido e quando me
lembro sou capaz de fazer uma oração, por vezes, muito raramente, pedir uma esperança. Porém,
pergunto-me com que direito peço o que quer que seja... ou que coisa premente e inalcançável justifica o pedido, se não será capricho.
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Não tens fé para pedir?
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Raramente peço.
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Pedir a Deus não é pensamento mágico?
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Pode ser. Na grande maioria das vezes, a fé não tem
racionalidade. São comuns esses pensamentos mágicos – muitos ingénuos e às vezes simultaneamente interesseiros – nas pessoas de fé. Mas que fé? A do bem e
desinteressada? Ou a que pressupõe algo em troca?
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Penso saber ao que te referes, mas gostaria que
exemplificasses.
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Em primeiro lugar quero fazer uma ressalva: ainda que o
pensamento e a acção dos crentes possam estar errados, pode emanar uma vontade
íntima, embora imperfeita e não consciente, que traduz uma crença sincera.
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Mas exemplifica, por favor.
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A fé é um fenómeno íntimo. Quem crê, crê de muitas maneiras
e teve diferentes experiências. Buscando o que é mais próximo, o Catolicismo
Romano, não percebo em que o sofrimento auto-infligido possa agradar a Deus.
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Cristo sofreu e é o exemplo para os seguidores cristãos, nos diferentes ritos.
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Cristo não se flagelou. Veio com uma missão, trouxe um exemplo e um conhecimento,
que lhe valeram os castigos dos homens. Cristo não pediu nada para si. É muito
diferente de pagar para que sejam rezadas missas, pagar para se acenderem velas,
agora são lâmpadas eléctricas, para iluminar o caminho das almas; usar
cilícios ou ir de joelhos a Fátima, masoquismo. Deus não se alegra com o sofrimento nem com a dor. A luz dos caminhos não se acende com moedas. Pobres dos pobres e felizes dos ricos... foi essa a mensagem de Cristo? É esse o negócio de Deus?...
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Não traduzem fé?
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Claro que traduzem. Não traduzem é racionalidade. A fé –
quanto a mim – tem de ser racional e esclarecida, o que só se obtém com o estudo, não apenas de textos relativos a religião, mas obras que abram ao espírito a liberdade do pensamento e do juízo ponderado.
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Há gente muito culta e estudiosa que parece contradizer-te... nomeadamente no recurso à mortificação voluntária.
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Os exemplos que dei são prova dum pensamento mágico, de comércio de favores – que é sempre arrogante, pois só damos se Alguém nos der primeiro o que queremos. É também uma forma deturpada de entender a dor e a capacidade de a aguentar e vencer. Deus não se alegra com o sofrimento. O sofrimento faz parte do mundo e da vida. Não precisamos inventar dores. Usando um termo Católico Romano: o sofrimento auto-infligido é pecado!
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Há gente muito culta e estudiosa que parece contradizer-te... nomeadamente no recurso à mortificação voluntária.
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Os exemplos que dei são prova dum pensamento mágico, de comércio de favores – que é sempre arrogante, pois só damos se Alguém nos der primeiro o que queremos. É também uma forma deturpada de entender a dor e a capacidade de a aguentar e vencer. Deus não se alegra com o sofrimento. O sofrimento faz parte do mundo e da vida. Não precisamos inventar dores. Usando um termo Católico Romano: o sofrimento auto-infligido é pecado!
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Fé e racionalidade... fé não é amor? É isso racional?
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A fé deve ser amor. Se fossemos perfeitos... Prefiro falar
de mim, para não me colocar num pedestal de julgador. Se
fosse menos atarracado espiritualmente teria mais coração do que cérebro.
Porém, o amor não esclarecido leva a enganos. Por ventura teria mais «alma», é
difícil explicar-me.
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Quando começaste a acreditar em Deus? Tiveste uma educação
religiosa, provavelmente Católica Romana.
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Não. Deus não passou pela minha educação, o que não
significa que valores cristãos não me tenham sido passados, pelos pais, família e sociedade. Por razões várias, nunca
estive perto da igreja. Não compreendia a mensagem – a transmitida pela Igreja
Católica Apostólica Romana continuo a não entender. Como outras igrejas certamente,
mas é esta que nos rodeia em Portugal e que conheço um pouco mais.
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E quando começaste a acreditar?
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Há duas respostas possíveis e ambas válidas: 24 anos, talvez 25. A
outra quando reparei que havia algo com sentido que não estava em mim.
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Até aí, que relação tinhas com Deus?
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Não tinha. Achava piada à encenação, à magia, às frases
vazias – porque o conteúdo e razão hoje estão muitas vezes esquecidos – aos paramentos.
Era ateu. E passei de ateu a crente dum momento para o outro, fui agnóstico num
instante.
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Falaste em frases vazias. Queres dar um exemplo?
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O Credo. Pergunta aos crentes, à porta duma igreja depois da
missa, o que é o Credo, o seu significado e importância histórica.
Provavelmente, até muitos sacerdotes nunca pensaram sobre isso, embora certamente o
tenham estudado no seminário.
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É assim tão flagrante?
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Sim! Porque o Credo não é uma oração, é uma declaração política.
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Política? Mediste as palavras?
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Mais do que medidas. Constantino, o imperador romano,
convertera-se ao Cristianismo, não interessam agora as suas razões, que são há
muito amplamente discutidas. Constantino queria um Cristianismo uno, mas a
igreja tinha facções. Ao encerrar os sacerdotes para debater o Cristianismo,
Constantino conseguiu o mínimo denominador comum. Os sacerdotes foram-se embora
e levaram o conceito que traziam e juntaram-lhe a argamassa do Credo.
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O Credo de Niceia significa, para ti, o quê?
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Um texto muito bonito, filosoficamente muito interessante,
bem desenhado politicamente, em que nenhum rito saiu derrotado daquela reunião
de Niceia, em 325. Um consenso. Todavia, vincula quem se deixar vincular.
Muitas das questões sobre Deus e Cristo não estão respondidas. Por isso, surgem
constantemente novas abordagens, umas com bom fundo e outras meramente
oportunistas e/ou criminosas.
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O Credo devia vincular todos os cristãos?
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Devia, no entender de Constantino e dos sacerdotes que
participaram no Primeiro Concílio de Niceia. Foi o que se arranjou. Se fores
ver, questões como «o que é Cristo» ou «quem é Cristo» não estão explícitas no
Credo. Cristo é divino, é humano, é divino e humano ou não é nem divino nem
humano? O que é a Trindade e os seus elementos? Que papel desempenha Maria de Nazaré?...
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Credo!...
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Estas questões continuam a dividir diferentes ritos
cristãos. Quando se abarca Deus, então é ainda mais complicado. Juntemos-lhes
santos, anjos, arcanjos, querubins, serafins, o Demónio, os seus acólitos
malévolos, milagres e feitiços... é um mundo que nem sempre parece referir-se à
mesma vida, a de Jesus, nem a ela se conseguir colar.
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Acreditas no Diabo e nos anjos?
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O Diabo não existe. Se Deus é perfeito nunca teria criado um
ser com o conceito que se atribui ao Diabo. Ou então, Deus não é o criador de
todas as coisas do Universo e aí cairia a abobada celeste. Ou o Diabo seria um
instrumento da justiça divina e, como tal, sem poder, apenas um funcionário.
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E nos anjos?
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Não falo em anjos nem santos. Posso usar essa terminologia
para facilitar um diálogo. Acredito que somos espíritos, criados simples e
ignorantes e que, pelo mérito do esforço, alcançaremos a felicidade divinal.
Alguns estão mais adiantados e outros mais recuados. Todos erraram e todos se
levantaram.
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Porém, as vidas são diferentes. Que justiça existe se há
pobres e ricos ou poderosos e escravos ou saudáveis e doentes?
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Se pensarmos numa só vida terrena isso seria sinónimo de
Deus sem préstimo. Acredito que somos espíritos e que vimos à matéria testar
conhecimentos, como se fosse um exame. Aqui temos provas e meios de expiação.
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O Inferno?
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É um estado de consciência.
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Não há castigo divino?
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Não. Deus é amor e ama-nos a todos do mesmo modo. O que há é
leis. Deus criou as leis, que tomámos conhecimento ao nascermos como espírito. Depois,
pernas a caminho. A cada acção corresponde uma reacção, cada causa tem um
efeito. Somos livres e o destino é nosso. A frase não é minha e acho-a
certeira: «Tudo posso, mas nem tudo me convém».
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Epístola de Paulo aos Coríntios.
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Sim.
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Imagina que o Inferno existe. O que seria para ti o Inferno?
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Não seria necessariamente um espaço, mas uma sentença; algo
que amamos e que se torna penoso.
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Dá-me um exemplo duma sala do teu Inferno...
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Só ter vinho para beber e ser todo da casta sauvignon blanc
oriundo da Nova Zelândia.
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É assim tão mau?
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É... (risos). Há coisas piores, mas não quero dar ideias ao Diabo (risos). Sumo de
maracujá é mais interessante e honesto.
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Parece-me pouco doloroso. Conta lá melhor essa coisa do
Inferno.
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(Risos) Só ter vinho para beber e ser todo ele feito com a
casta antão vaz...
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E o teu Paraíso?
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Não faço a mínima ideia, mas terá de ter vinho... touriga
francesa e pinot noir são obrigatórias.
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