digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

terça-feira, maio 13, 2014

Poema de ar

Tantos dias de noite. Respira.
.
Tantos dias de noite.
.
Tantos dias de noite. Respira.
.
O ar da madrugada não limpa a melancolia.
.
O raiar hesita-me.
.
Aguento a falsa esperança  da luz queimar a tristeza.
.
Aguento mascarado. Aguento. Que faria eu se não aguentasse?
.
Deito-me para dormir. Levanto-me. Deito-me. Levanto-me e ligo a televisão. Agarro o comando da televisão e zapo duas e três e quatro vezes. Tédio. Levanto-me e desligo o televisor.
.
Dormir é querer. Em mim.
.
É um eufemismo, o verbo é esconder – estou por tudo, digo tudo como os malucos.
.
Afinal, nascemos nus, vivemos nus sob a roupa e será a nossa nudez uma memória da vida na Terra.
.
(Momento de silêncio. Parar para pensar o caminho a seguir – é difícil chegar sem mapa e não ter a quem perguntar).
.
Ai!
.
(Suspiro de tédio).
.
Por vezes penso que voar e mergulhar são a mesma coisa...
.
Diz-me o instinto.
.
Nu e tenho alguma vergonha.
.
... O que se perde com a verdade e o que se ganha com a ilusão?
.
(Pensar vazio).
.
O que dirão da minha nudez? – os amigos, os outros e o mundo.
.
(Muitas dúvidas, muitas dúvidas, muitas dúvidas. Um turbilhão de confusões de dúvidas).
.
Maquilho-me e pareço que estou.
.
A nudez é um acto arriscado que poderá libertar do tédio.
.
É isso. Talvez seja. A nudez assusta o tédio, além de assustar a alma. Quanto tempo dura? O tempo do regresso, como um eco.
.
(Evoco memórias de sonhos antes de continuar. Há vários ou são os mesmos que continuam num estado diferente? Muitas noites, muitos sonos e os mesmos sonhos).
.
Ai!
.
(Paro. Sonhos não servem para nada e não acrescentam nudez – o que é um contra-senso, visto a nudez resultar da subtracção da roupa).
.
Ando nu na minha cidade – uma cidade estranha, que reconheço vagamente, em incertezas, intranquilidades, como se tivesse havido um tempo em que não existi e chego agora, à noitinha, à noite alta, para me confundir. Uma cidade de continuação, de espaços e tempos.
.
Tantos dias de noite, até no aconchego.
.
O tédio é um frio quente, que fura os tecidos corporais e alcança a alma.
.
(Respirar devagar e profundamente. Pensar na pequenez humana e nos treze mil milhões de anos do universo... nos quatro mil e oitocentos milhões de anos da Terra. Pensar na quantidade de espermatozóides inutilizados diariamente ao longo de milénios).
.
(Pensar vazio)
.
(A meditação não resulta e os meus Ooms são falsos. Nunca farei ioga e deverei passar a vida a agir antes de pensar).
.
O tédio sou eu ou está colado de modo em que não se distinga a alma?
.
Vale-me o vento. Não me leva a tristeza, mas refresca-se a cara e as orelhas – odeio ter as orelhas quentes.
.
(Momento para lembrar o Inverno com seu vento).
.
Será que estou nu, tão banalmente nu que.
.
Ou serei transparente ou translúcido? Escuridões mínimas para tapar as vergonhas, sim, porque a transparência é o esconder da luz, um manto invisível.
.
Talvez por não ter espessura...
.
(Pausa para meditar).
.
Se morresse agora...
.
Mergulhar, voar, dormir.
.
As janelas, a água, a caixa dos sorrisos.
.
Indo, para que a morte não me apanhe de surpresa...
.
Tão impossível como as minhas viagens sem nexo... nu, descalço, rastejante, sofrido, perdido, confuso, esquecido, desconfiado, intranquilo, amedrontado.
.
Quero respirar antes de abrir os olhos.
.
Se quero morrer? Quero. Já? Tanto faz.
.
Se quero dormir? Quero. Já? Para sempre.
.
(Paro para ver as brincadeiras duma gata, à falta duma brisa imaterial para me soprar na testa, como o sentir do bater das asas dum anjo).
.
(A casa está parada e eu acordado).
.
Voar é mergulhar.
.
Em sonhos o céu pode fazer-se de cortinas de flanela negra.
.
Na vida há noites que duram dias.
.
Sim, tenho vergonha mostrar a nudez. Uma vergonha maior do que a vontade de a esconder.
.
Ninguém pode aceitar as dores do tédio e não tenho ouvidos para os meus ais.
.
Serei memória ainda em vida.
.
Tristeza, a minha...
.
Se me for? Chorará a mãe e alguém dirá o meu nome umas quantas vezes, cada vez menos, até ao silêncio.
.
Que não me agarrem. Que não me abracem.
.
Sou denso, compacto. Pesado é a palavra certa – refiro-me ao ânimo.
.
(Reflexão acerca do vazio).
.
Metade de mim, ri.
.
Metade de mim, mente.
.
A outra metade tem vontade de saber quanto pesa o ar.
.
É mais pesado do que o tédio.
.
Mergulhar, voar. É a mesma coisa.
.
(Ponderar as palavras).
.
Há uma diferença entre querer não saber e a certeza de não querer.
.
É um fiozinho de ar que escapa e arrefece as costas.
.
(Dirijo a palavra ao Futuro, coisa que por vezes penso ser tão existente quanto o Diabo – que se existisse seria o filho adolescente problemático de Deus).
.
Que tenho para dizer ao futuro? Só palavras de passado. Como se sabe, o presente é um tempo que só existe quando.
.
(... silêncio ... suspiro vagaroso ... indecisão).
.
Esqueçamos a luz do dia, que é a parte menos interessante do dia, e quando acontece quase tudo.
.
O interesse da noite é o vazio ou o quase vazio de gente. Das luzes, das ruas negras, das pedras provavelmente molhadas, das evocações de passados por viver – essa noite que desistiu em Lisboa.
.
A noite. Uma outra noite. Uma noite que sirva no Equador e nos pólos. Uma noite em abstracto...
.
Esqueçamos a noite.
.
Avancemos céu acima, para lá do tempo, para depois da luz.
.
Mergulhar ou voar.
.
(Penso enquanto lavo os dentes, cumpro as obrigações do escondido debaixo do nu e deito-me, baixo o estore, apago a luz, tapo os olhos com a almofada, que se molda ao rosto com o peso dos meus braços que a abraçam – quase negro, graal de luz).
.
Antes do sonho, o sonho acordado.
.
Tanto para fazer se pudesse...
.
Entre o mergulho e o voo deixo-me ir por hoje.
.
Se o tédio não me acordar. Se a nudez não me atormentar.
.
Tantos dias de noite. E o dia que tem mais horas do que a noite. Tem mais e são todas de noite.
.
Penso por inércia. Não o faço por hábito. Penso muito, porque sou veloz – corro a fugir do tédio e dum exército de demónios que vivem na minha cabeça, coração e fígado.
.
Mergulhar e voar é a mesma coisa.
.
(Vou dormir).
.
Para quê, se não me traz nem alegria nem tristeza.
.
Amanhã carregarei todo o tédio que preguiçou em mim enquanto dormia e mais o devido às horas úteis de luz.
.
(Suspiro de exaustão pouco convincente e penso em tudo o que escrevi e penso).
.
Tão importante quanto o peso é saber quanto aguenta o ar.
.
Ar frio nas orelhas é tão bom.
.
(Já durmo).
.
Ressono.

Sem comentários: