Tantos dias de noite. Respira.
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Tantos dias de noite.
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Tantos dias de noite. Respira.
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O ar da madrugada não limpa a melancolia.
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O raiar hesita-me.
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Aguento a falsa esperança da luz queimar a tristeza.
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Aguento mascarado. Aguento. Que faria eu se não aguentasse?
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Deito-me para dormir. Levanto-me. Deito-me. Levanto-me e ligo
a televisão. Agarro o comando da televisão e zapo duas e três e quatro vezes. Tédio.
Levanto-me e desligo o televisor.
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Dormir é querer. Em mim.
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É um eufemismo, o verbo é esconder – estou por tudo, digo
tudo como os malucos.
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Afinal, nascemos nus, vivemos nus sob a roupa e será a nossa
nudez uma memória da vida na Terra.
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(Momento de silêncio. Parar para pensar o caminho a seguir –
é difícil chegar sem mapa e não ter a quem perguntar).
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Ai!
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(Suspiro de tédio).
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Por vezes penso que voar e mergulhar são a mesma coisa...
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Diz-me o instinto.
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Nu e tenho alguma vergonha.
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... O que se perde com a verdade e o que se ganha com a
ilusão?
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(Pensar vazio).
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O que dirão da minha nudez? – os amigos, os outros e o
mundo.
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(Muitas dúvidas, muitas dúvidas, muitas dúvidas. Um
turbilhão de confusões de dúvidas).
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Maquilho-me e pareço que estou.
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A nudez é um acto arriscado que poderá libertar do tédio.
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É isso. Talvez seja. A nudez assusta o tédio, além de
assustar a alma. Quanto tempo dura? O tempo do regresso, como um eco.
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(Evoco memórias de sonhos antes de continuar. Há vários ou
são os mesmos que continuam num estado diferente? Muitas noites, muitos sonos e
os mesmos sonhos).
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Ai!
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(Paro. Sonhos não servem para nada e não acrescentam nudez –
o que é um contra-senso, visto a nudez resultar da subtracção da roupa).
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Ando nu na minha cidade – uma cidade estranha, que reconheço
vagamente, em incertezas, intranquilidades, como se tivesse havido um tempo em
que não existi e chego agora, à noitinha, à noite alta, para me confundir. Uma
cidade de continuação, de espaços e tempos.
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Tantos dias de noite, até no aconchego.
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O tédio é um frio quente, que fura os tecidos corporais e
alcança a alma.
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(Respirar devagar e profundamente. Pensar na pequenez humana
e nos treze mil milhões de anos do universo... nos quatro mil e oitocentos
milhões de anos da Terra. Pensar na quantidade de espermatozóides inutilizados
diariamente ao longo de milénios).
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(Pensar vazio)
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(A meditação não resulta e os meus Ooms são falsos. Nunca
farei ioga e deverei passar a vida a agir antes de pensar).
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O tédio sou eu ou está colado de modo em que não se distinga
a alma?
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Vale-me o vento. Não me leva a tristeza, mas refresca-se a
cara e as orelhas – odeio ter as orelhas quentes.
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(Momento para lembrar o Inverno com seu vento).
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Será que estou nu, tão banalmente nu que.
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Ou serei transparente ou translúcido? Escuridões mínimas
para tapar as vergonhas, sim, porque a transparência é o esconder da luz, um
manto invisível.
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Talvez por não ter espessura...
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(Pausa para meditar).
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Se morresse agora...
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Mergulhar, voar, dormir.
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As janelas, a água, a caixa dos sorrisos.
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Indo, para que a morte não me apanhe de surpresa...
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Tão impossível como as minhas viagens sem nexo... nu,
descalço, rastejante, sofrido, perdido, confuso, esquecido, desconfiado,
intranquilo, amedrontado.
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Quero respirar antes de abrir os olhos.
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Se quero morrer? Quero. Já? Tanto faz.
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Se quero dormir? Quero. Já? Para sempre.
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(Paro para ver as brincadeiras duma gata, à falta duma brisa
imaterial para me soprar na testa, como o sentir do bater das asas dum anjo).
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(A casa está parada e eu acordado).
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Voar é mergulhar.
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Em sonhos o céu pode fazer-se de cortinas de flanela negra.
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Na vida há noites que duram dias.
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Sim, tenho vergonha mostrar a nudez. Uma vergonha maior do
que a vontade de a esconder.
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Ninguém pode aceitar as dores do tédio e não tenho ouvidos
para os meus ais.
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Serei memória ainda em vida.
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Tristeza, a minha...
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Se me for? Chorará a mãe e alguém dirá o meu nome umas
quantas vezes, cada vez menos, até ao silêncio.
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Que não me agarrem. Que não me abracem.
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Sou denso, compacto. Pesado é a palavra certa – refiro-me ao
ânimo.
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(Reflexão acerca do vazio).
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Metade de mim, ri.
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Metade de mim, mente.
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A outra metade tem vontade de saber quanto pesa o ar.
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É mais pesado do que o tédio.
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Mergulhar, voar. É a mesma coisa.
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(Ponderar as palavras).
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Há uma diferença entre querer não saber e a certeza de não
querer.
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É um fiozinho de ar que escapa e arrefece as costas.
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(Dirijo a palavra ao Futuro, coisa que por vezes penso ser
tão existente quanto o Diabo – que se existisse seria o filho adolescente problemático
de Deus).
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Que tenho para dizer ao futuro? Só palavras de passado. Como
se sabe, o presente é um tempo que só existe quando.
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(... silêncio ... suspiro vagaroso ... indecisão).
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Esqueçamos a luz do dia, que é a parte menos interessante do
dia, e quando acontece quase tudo.
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O interesse da noite é o vazio ou o quase vazio de gente.
Das luzes, das ruas negras, das pedras provavelmente molhadas, das evocações de
passados por viver – essa noite que desistiu em Lisboa.
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A noite. Uma outra noite. Uma noite que sirva no Equador e
nos pólos. Uma noite em abstracto...
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Esqueçamos a noite.
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Avancemos céu acima, para lá do tempo, para depois da luz.
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Mergulhar ou voar.
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(Penso enquanto lavo os dentes, cumpro as obrigações do escondido
debaixo do nu e deito-me, baixo o estore, apago a luz, tapo os olhos com a
almofada, que se molda ao rosto com o peso dos meus braços que a abraçam –
quase negro, graal de luz).
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Antes do sonho, o sonho acordado.
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Tanto para fazer se pudesse...
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Entre o mergulho e o voo deixo-me ir por hoje.
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Se o tédio não me acordar. Se a nudez não me atormentar.
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Tantos dias de noite. E o dia que tem mais horas do que a
noite. Tem mais e são todas de noite.
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Penso por inércia. Não o faço por hábito. Penso muito,
porque sou veloz – corro a fugir do tédio e dum exército de demónios que vivem
na minha cabeça, coração e fígado.
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Mergulhar e voar é a mesma coisa.
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(Vou dormir).
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Para quê, se não me traz nem alegria nem tristeza.
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Amanhã carregarei todo o tédio que preguiçou em mim enquanto
dormia e mais o devido às horas úteis de luz.
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(Suspiro de exaustão pouco convincente e penso em tudo o que
escrevi e penso).
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Tão importante quanto o peso é saber quanto aguenta o ar.
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Ar frio nas orelhas é tão bom.
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(Já durmo).
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Ressono.
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