A primeira vez que enfrentei a palavra utilizada por quem se
farta fiquei com um vazio de inteligência para perceber o que pensaria a
família, matemática doutras contas. Não senti dor, nem uma comichão sem nome
que afecta quando o falecido é jovem e aparenta saúde. Não falo no assunto, a
menos que o tragam. É lâmina comprida.
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Um dia vi uma tia deitada. Ouvira-a entrar pouco antes. Ela preparou
o almoço e deitou-se. O meu pai chegou uns minutos mais tarde, perguntou por
ela e tocou-lhe à porta; e ninguém respondeu. Enquanto pôs ao lume um cozido à
portuguesa, sussurra-me a memória, deitou-se beijando comprimidos.
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Descobri-a deitada e serena, tranquila por nada esperar,
porque se cansou de esperar. Depois, no tempo, espaçadamente, alternava entre a
bênção à salvação e a praga pelo contra-golpe.
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Uma prima tentou e encolhi os ombros. Gostava e gosto muito
dela. Uma outra consegui-o e nutro por ela equivalente afecto.
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Um dia foi o «Outro» e uns anos mais tarde um «Outro». Em 2013
juntou-se-lhes «Outro». Sento-me a pensar e pergunto-me se não faz todo o
sentido.
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Não posso afirmar que a morte não dói nem que as saudades
não ferem... nunca tive medo da morte. Respeito-a. Gosto tanto dela quanto da
vida, sem desrespeito por nenhuma. Tenho os instintos de sobrevivência
alertados e prontos, protejo-me, evito riscos, mas viver não me assusta. Atormenta-me.
Quantas vezes?
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Talvez nem goste da morte. Abomino tanto a vida que não
quero morrer, quero deixar de existir... mas sobre as dores: sim, comovo-me,
com os que ficam e choram. Converso com quem parte e assisto, bastas vezes, ao
momento em que despem os últimos liames de união entre os planos. Sim, chorei
em funerais, talvez mais por histeria juvenil ou para disfarçar a pouca
apoquentação... não sei.
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Hoje que creio, rezo. E rezo todos os dias. Mais do que uma
vez ao dia. Orgulhoso ou distraído, julgando-me diferente, esqueço-me de orar por
mim. Alguém o fará. Mas os «Outros» têm sempre o meu sopro de palavra, para
que. Seja.
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Isto de ir pode ser curiosidade, o que é parvo ou infantil. Mas
é, quase sempre, a dor de alma, que às vezes são dores no corpo, alterações
fisiológicas... chatices que acabam por pesar à volta, como esfera de aço em
lençol de seda quase solto.
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Pensei muitas vezes. Suficientes para não ter medo e ganhar
respeito. Ah! Mas há uma grande diferença: o querer ir e o mandarem-nos ir. Uma
vez entornei um copo de cerveja sobre um amigo, porque me dirigiu essa zanga;
sabendo ele que sofria.
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Quando namorada quis deixar de ser, foi-se sem zanga, sem
loiça partida nem casa desarrumada. Uma casa como uma campânula de museu: baça,
triste, esquecida, sombria e esquecida. Esquecida assim, só numa sala por
arrumar. Um jazigo.
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Os dias puxaram a vontade e cada dia enleou mais
determinação ao novelo do queixume. Quanto mais pensava escuro, mais claro via.
Porém, o «Outro» fê-lo primeiro. Doeu-me muito, incomodou-me e incomoda-me.
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Não quero enumerar personagens, avaliar afectos e
importâncias. A morte deste «Outro» é uma das três que mais me custou. No
entanto... a outra, que me esqueço tantas vezes nem se pôde defender. No
entanto... dizia...
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Não porque fosse meu amigo, mas por ser o maior amigo dum
grande amigo. O vazio que deixou levou-me a oportunidade. Uma dor clara, de
claridade. O «Outro» fez o que ninguém podia fazer por ele quando o que
precisava lhe era vedado – tenha sido o que se quiser.
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Entre saltinhos de anos-minutos... perdi um amigo, que
queria, quero e quererei como um bom irmão mais velho. Para quem não tem
coração que se emocione com as perdas de morte, o seixo é a definição mais
exacta para relicário. Dizem-me as relíquias aí guardadas que a maior razão
para alguém se matar é a perda dum amigo.
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Esse suicidou-me a amizade, brusco, inexplicável, súbito...
mulheres (homens) há muitas e o dinheiro deve-se. As perdas que dão solidão são
de trato áspero. Por vezes, passa-se a linha entre o que sei e não gosto e o
que não sei se gosto, mas prefiro sentir.
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Tantas coisas cabem na palavra amigo. Uma palavra tão boa
que até nos esquecemos que nela cabem também os nossos disparates. Nem a
traição a mata; essa dá raiva, gana de matar, mas remorso de perda. Amigo é um
amor escolhido antes de nascer.
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Não muitos dias de luto sem cadáver, cismava em encontrar a
porta para. Aninhado na cama, fantasiava com as formas, escolhera e projectava
de esperança e leveza a que chegaria. Falsamente alegre, recebi a chamada
triste. Mais «Outro». Jogou-se, deixando Natal e Ano Novo vazios depois de
cheios.
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Em vez de ir, fiquei. No que pude amparei o amigo que mais o
chorou.
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Quando o amigo me deixou de mal feita no cais a ver o
comboio partir, como uma noiva patética dum romance de meados do século (dum
qualquer) nunca parei de engendrar, nem mesmo o amigo que tanto padecia pela
partida do «Outro».
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Faltando apenas a data certa, descobria-a numa manhã de
tédio e silêncio. Tomei e arrependi-me, voltei a tomar e arrepender-me, e outra
vez, e outra... mais de dez. Na inconstância foi para as urgências. Sozinho e
porque fiz tudo sem ajuda de ninguém. Nas dificuldades da entubagem pedia a
médicos e enfermeiros que não se maçassem e me deixassem ir. Se o tubo não
entrava e me fazia engasgar, não valia a pena insistir... até porque até no
hospital continuava indeciso.
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Não sei se foram oito ou doze horas que estive entubado,
deitado numa maca, partilhando o ar com gemidos de doentes a sério. Todos tão
indiferentes quanto o tempo. Não dei por nada, entrei de manhã e saí. Pedi ao
senhor doutor que me deixasse ir ao bar comer uma sandes e fez-me prometer que
voltaria.
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Voltei e fui-me embora. Pedi a ajuda daquela a que, por
isso, desse dia, será sempre a amiga maior do que o Terreiro do Paço. Voltei a
casa, tive mimo e dormi.
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Acordei com as mesmas dores. Em desespero, parti vidros com
murros, esmurrei paredes e pregos, cabeceei azulejos, arranhei-me esperando
tirar carne, bati muito e com força com os punhos na cabeça, encarnicei-me nos
três lados de mim. Comi menos, enjoei.
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Fizeram-me uma festa de anos e fingimos todos ter um ar
feliz.
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Desde então, a morte convida-me mais vezes, mais cordata,
discreta, rara e suave
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A nostalgia do
macambúzio encontra consolo no escuro-todo do manto da velha-esqueletada que
anda de gadanha a ceifar almas. Taciturno, obrigado a rir. Forçado a explicar
tudo, enquanto dizem que não é assim, que não pode ser, que é psicológico, que
preciso de sexo, que o Sol faz bem (matam-se mais no Verão), que preciso de
amigos, de sair, de espairecer. Comprimidos não são precisos, pois há uns chás
fantásticos no Celeiro ou na casa da tribo urbana que construiu uma sociedade
alternativa baseada em nada e assente em tudo o que dizem pretender combater. Há
remédio para tudo! E depois há os outros, os que simpáticos e ingénuos que dizem:
– Não há nenhum comprimido para isso?
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Há! E se tomados em versão festa de do Viagra ou da espuma,
preferencialmente com um álcool forte... ui, a diversão é tão fixe, que o
remédio fez aquilo para o qual estava destinado a não servir.
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Há isso. Há o 605 Forte. Há os detergentes para a casa de
banho, a electrocutado, há a injecção de ar numa veia, o clássico número dos
pulsos serrados ou do tiro na cabeça. Tubinhos com cianeto são difíceis de
encontrar.
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Qualquer coisa serve. O lençol onde se faz amor, onde o
casal engendrou serve para acabar com o abafo quente e escuro da colónia de
bicheza feia que come o ânimo. E sempre assim foi. Enquanto escrevo este textos
sobre mim e os «Outros».
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Dos meus «Outros» falta-ma falar daquele que ria e tinha piada,
sempre uma graçola, um apontamento, boa disposição com o Alka Seltzer e a quem
prometia, olhando-o enquanto ele me sorria, que haveríamos de ir almoçar. Um
dia, num sonho repreendi-o, por se ter ido embora sem se despedir de mim.
Riu-se e disse:
– Estavas à espera de quê?
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Certamente lançou os seus avisos, deu os seus sinais. Há quem
se esconda e os que se agitam náufragos, esperando ser içados para o mundo onde
a alma não dói.
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Este «Outro» teve razão: Eu estava à espera de quê? Gostei
de o ver ir. Estava feliz. Deixou saudades? Certamente. Agora vai seguir para
onde tiver de ser. Tal como cá... reconheço que é uma hipótese.
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Na verdade, não sei. O suicídio é um sacrifício. Uma oferenda
para formulação dum pedido
– Leva-me esta dor ou
leva-me.
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Na soberba dos mortais ameaçamos:
– Se não me tirares o peso nem me levares, vou sozinho.
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O suicídio é última esperança. De todas as coisas que lhe
podem pôr em cima como significado, só há uma que é certa: a derradeira
esperança.
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Ando mais calmo, vendo comprimidos onde estão apenas
comprimidos. Vejo-os pouco e até os tenho amado como remédios.
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É a cair. Depressa é o mínimo e pesado é pouco. Irrespirável
e angustiante. A Ida... o que se escreveu e diz sobre a ida... Não é coragem
nem falta dela, espera-se por um momento de surdez, num ruído zangado, e de
cegueira, para não os ouvir dizer: mãe, filho, animal, amigo. É um instante e
decide-se a vida
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Um dia, já adulto, comprei uma pista de comboios. Acrescentei-a
e ficou tão grande e complexa que ninguém a consegue montar ou tem espaço para
a pôr a trabalhar. Comprei catálogos das marcas que fazem as miniaturas... não
são baratos. Os comboios que gosto mais são os mais feios.
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Trabalhava junto à estação de Santos e tantas vezes me
sentei a pensar no mergulho. Nem todos param ali, pelo que o embate é
fulminante. Pensei tantas vezes. Espero a passagem do comboio com o mesmo
desejo de quando me atirei para a piscina da prancha, com não sei quantos
metros, para impressionar as miúdas.
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Não se pense nem em coragem nem em falta dela. Há
determinação sem oportunidade e hesitação por distracção ou palavra. No fundo é
como na selva: entre arbustos, lianas árvores de grande porte, calor e
humidade, bicheza vária... ninguém pede licença para passar ou autorização para
sair da mesa.
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Creio por razões lógicas – oro com fé de pensamento e pouco de
coração, ofereço da alma, que é onde tenho mais de dar, mas é de pouco valor...
Sei que os «Outros», estes e outros têm abrigo e bom conselho. Deus só pode
amar, porque é essa a perfeição: ama os «Outros», aos que querem sair e aos que
não são, foram nem serão «Outros».
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Eu, que creio por razões lógicas, garanto a existência de
anjos. Homens sem asas nem resplendores, amigos das horas e companheiro, irmão
e professores de todos. Dum qualquer modo, agarram, antes que se torne n’«Outro».
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Uma dor sem remédio e medicamento para outra dor. Fui despido,
só de pijama para o Rossio, figuradamente, atarantar-me, com os pés a
puxarem-me para Santos e seu apeadeiro. Faltavam cinco segundos para a
bilheteira fechar. Cinco segundos para saltar ou perder a viagem. Atrasei o
passo e fui às urgências.
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Vim de lá como entrei: indiferente à vida. Mas prometi, que
cuidaria de mim e não abrace o mudo dos «Outros». Tomo os remédios e a
retroescavadora está sossegada.
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Não há pessoas perfeitas. Nem nós nem os «Outros»...
nem quem gosta de nós. Pudesse agora e abraçaria alguma gente.
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