digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

sábado, fevereiro 08, 2014

O sacrifício dos «Outros»





















A primeira vez que enfrentei a palavra utilizada por quem se farta fiquei com um vazio de inteligência para perceber o que pensaria a família, matemática doutras contas. Não senti dor, nem uma comichão sem nome que afecta quando o falecido é jovem e aparenta saúde. Não falo no assunto, a menos que o tragam. É lâmina comprida.

.
Um dia vi uma tia deitada. Ouvira-a entrar pouco antes. Ela preparou o almoço e deitou-se. O meu pai chegou uns minutos mais tarde, perguntou por ela e tocou-lhe à porta; e ninguém respondeu. Enquanto pôs ao lume um cozido à portuguesa, sussurra-me a memória, deitou-se beijando comprimidos.
.
Descobri-a deitada e serena, tranquila por nada esperar, porque se cansou de esperar. Depois, no tempo, espaçadamente, alternava entre a bênção à salvação e a praga pelo contra-golpe.
.
Uma prima tentou e encolhi os ombros. Gostava e gosto muito dela. Uma outra consegui-o e nutro por ela equivalente afecto.
.
Um dia foi o «Outro» e uns anos mais tarde um «Outro». Em 2013 juntou-se-lhes «Outro». Sento-me a pensar e pergunto-me se não faz todo o sentido.
.
Não posso afirmar que a morte não dói nem que as saudades não ferem... nunca tive medo da morte. Respeito-a. Gosto tanto dela quanto da vida, sem desrespeito por nenhuma. Tenho os instintos de sobrevivência alertados e prontos, protejo-me, evito riscos, mas viver não me assusta. Atormenta-me. Quantas vezes?
.
Talvez nem goste da morte. Abomino tanto a vida que não quero morrer, quero deixar de existir... mas sobre as dores: sim, comovo-me, com os que ficam e choram. Converso com quem parte e assisto, bastas vezes, ao momento em que despem os últimos liames de união entre os planos. Sim, chorei em funerais, talvez mais por histeria juvenil ou para disfarçar a pouca apoquentação... não sei.
.
Hoje que creio, rezo. E rezo todos os dias. Mais do que uma vez ao dia. Orgulhoso ou distraído, julgando-me diferente, esqueço-me de orar por mim. Alguém o fará. Mas os «Outros» têm sempre o meu sopro de palavra, para que. Seja.
.
Isto de ir pode ser curiosidade, o que é parvo ou infantil. Mas é, quase sempre, a dor de alma, que às vezes são dores no corpo, alterações fisiológicas... chatices que acabam por pesar à volta, como esfera de aço em lençol de seda quase solto.
.
Pensei muitas vezes. Suficientes para não ter medo e ganhar respeito. Ah! Mas há uma grande diferença: o querer ir e o mandarem-nos ir. Uma vez entornei um copo de cerveja sobre um amigo, porque me dirigiu essa zanga; sabendo ele que sofria.
.
Quando namorada quis deixar de ser, foi-se sem zanga, sem loiça partida nem casa desarrumada. Uma casa como uma campânula de museu: baça, triste, esquecida, sombria e esquecida. Esquecida assim, só numa sala por arrumar. Um jazigo.
.
Os dias puxaram a vontade e cada dia enleou mais determinação ao novelo do queixume. Quanto mais pensava escuro, mais claro via. Porém, o «Outro» fê-lo primeiro. Doeu-me muito, incomodou-me e incomoda-me.
.
Não quero enumerar personagens, avaliar afectos e importâncias. A morte deste «Outro» é uma das três que mais me custou. No entanto... a outra, que me esqueço tantas vezes nem se pôde defender. No entanto... dizia...
.
Não porque fosse meu amigo, mas por ser o maior amigo dum grande amigo. O vazio que deixou levou-me a oportunidade. Uma dor clara, de claridade. O «Outro» fez o que ninguém podia fazer por ele quando o que precisava lhe era vedado – tenha sido o que se quiser.
.
Entre saltinhos de anos-minutos... perdi um amigo, que queria, quero e quererei como um bom irmão mais velho. Para quem não tem coração que se emocione com as perdas de morte, o seixo é a definição mais exacta para relicário. Dizem-me as relíquias aí guardadas que a maior razão para alguém se matar é a perda dum amigo.
.
Esse suicidou-me a amizade, brusco, inexplicável, súbito... mulheres (homens) há muitas e o dinheiro deve-se. As perdas que dão solidão são de trato áspero. Por vezes, passa-se a linha entre o que sei e não gosto e o que não sei se gosto, mas prefiro sentir.
.
Tantas coisas cabem na palavra amigo. Uma palavra tão boa que até nos esquecemos que nela cabem também os nossos disparates. Nem a traição a mata; essa dá raiva, gana de matar, mas remorso de perda. Amigo é um amor escolhido antes de nascer.
.
Não muitos dias de luto sem cadáver, cismava em encontrar a porta para. Aninhado na cama, fantasiava com as formas, escolhera e projectava de esperança e leveza a que chegaria. Falsamente alegre, recebi a chamada triste. Mais «Outro». Jogou-se, deixando Natal e Ano Novo vazios depois de cheios.
.
Em vez de ir, fiquei. No que pude amparei o amigo que mais o chorou.
.
Quando o amigo me deixou de mal feita no cais a ver o comboio partir, como uma noiva patética dum romance de meados do século (dum qualquer) nunca parei de engendrar, nem mesmo o amigo que tanto padecia pela partida do «Outro».
.
Faltando apenas a data certa, descobria-a numa manhã de tédio e silêncio. Tomei e arrependi-me, voltei a tomar e arrepender-me, e outra vez, e outra... mais de dez. Na inconstância foi para as urgências. Sozinho e porque fiz tudo sem ajuda de ninguém. Nas dificuldades da entubagem pedia a médicos e enfermeiros que não se maçassem e me deixassem ir. Se o tubo não entrava e me fazia engasgar, não valia a pena insistir... até porque até no hospital continuava indeciso.
.
Não sei se foram oito ou doze horas que estive entubado, deitado numa maca, partilhando o ar com gemidos de doentes a sério. Todos tão indiferentes quanto o tempo. Não dei por nada, entrei de manhã e saí. Pedi ao senhor doutor que me deixasse ir ao bar comer uma sandes e fez-me prometer que voltaria.
.
Voltei e fui-me embora. Pedi a ajuda daquela a que, por isso, desse dia, será sempre a amiga maior do que o Terreiro do Paço. Voltei a casa, tive mimo e dormi.
.
Acordei com as mesmas dores. Em desespero, parti vidros com murros, esmurrei paredes e pregos, cabeceei azulejos, arranhei-me esperando tirar carne, bati muito e com força com os punhos na cabeça, encarnicei-me nos três lados de mim. Comi menos, enjoei.
.
Fizeram-me uma festa de anos e fingimos todos ter um ar feliz.
.
Desde então, a morte convida-me mais vezes, mais cordata, discreta, rara e suave
.
 A nostalgia do macambúzio encontra consolo no escuro-todo do manto da velha-esqueletada que anda de gadanha a ceifar almas. Taciturno, obrigado a rir. Forçado a explicar tudo, enquanto dizem que não é assim, que não pode ser, que é psicológico, que preciso de sexo, que o Sol faz bem (matam-se mais no Verão), que preciso de amigos, de sair, de espairecer. Comprimidos não são precisos, pois há uns chás fantásticos no Celeiro ou na casa da tribo urbana que construiu uma sociedade alternativa baseada em nada e assente em tudo o que dizem pretender combater. Há remédio para tudo! E depois há os outros, os que simpáticos e ingénuos que dizem:
– Não há nenhum comprimido para isso?
.
Há! E se tomados em versão festa de do Viagra ou da espuma, preferencialmente com um álcool forte... ui, a diversão é tão fixe, que o remédio fez aquilo para o qual estava destinado a não servir.
.
Há isso. Há o 605 Forte. Há os detergentes para a casa de banho, a electrocutado, há a injecção de ar numa veia, o clássico número dos pulsos serrados ou do tiro na cabeça. Tubinhos com cianeto são difíceis de encontrar.
.
Qualquer coisa serve. O lençol onde se faz amor, onde o casal engendrou serve para acabar com o abafo quente e escuro da colónia de bicheza feia que come o ânimo. E sempre assim foi. Enquanto escrevo este textos sobre mim e os «Outros».
.
Dos meus «Outros» falta-ma falar daquele que ria e tinha piada, sempre uma graçola, um apontamento, boa disposição com o Alka Seltzer e a quem prometia, olhando-o enquanto ele me sorria, que haveríamos de ir almoçar. Um dia, num sonho repreendi-o, por se ter ido embora sem se despedir de mim. Riu-se e disse:
– Estavas à espera de quê?
.
Certamente lançou os seus avisos, deu os seus sinais. Há quem se esconda e os que se agitam náufragos, esperando ser içados para o mundo onde a alma não dói.
.
Este «Outro» teve razão: Eu estava à espera de quê? Gostei de o ver ir. Estava feliz. Deixou saudades? Certamente. Agora vai seguir para onde tiver de ser. Tal como cá... reconheço que é uma hipótese.
.
Na verdade, não sei. O suicídio é um sacrifício. Uma oferenda para formulação dum pedido
 – Leva-me esta dor ou leva-me.
.
Na soberba dos mortais ameaçamos:
– Se não me tirares o peso nem me levares, vou sozinho.
.
O suicídio é última esperança. De todas as coisas que lhe podem pôr em cima como significado, só há uma que é certa: a derradeira esperança.
.
Ando mais calmo, vendo comprimidos onde estão apenas comprimidos. Vejo-os pouco e até os tenho amado como remédios.
.
É a cair. Depressa é o mínimo e pesado é pouco. Irrespirável e angustiante. A Ida... o que se escreveu e diz sobre a ida... Não é coragem nem falta dela, espera-se por um momento de surdez, num ruído zangado, e de cegueira, para não os ouvir dizer: mãe, filho, animal, amigo. É um instante e decide-se a vida
.
Um dia, já adulto, comprei uma pista de comboios. Acrescentei-a e ficou tão grande e complexa que ninguém a consegue montar ou tem espaço para a pôr a trabalhar. Comprei catálogos das marcas que fazem as miniaturas... não são baratos. Os comboios que gosto mais são os mais feios.
.
Trabalhava junto à estação de Santos e tantas vezes me sentei a pensar no mergulho. Nem todos param ali, pelo que o embate é fulminante. Pensei tantas vezes. Espero a passagem do comboio com o mesmo desejo de quando me atirei para a piscina da prancha, com não sei quantos metros, para impressionar as miúdas.
.
Não se pense nem em coragem nem em falta dela. Há determinação sem oportunidade e hesitação por distracção ou palavra. No fundo é como na selva: entre arbustos, lianas árvores de grande porte, calor e humidade, bicheza vária... ninguém pede licença para passar ou autorização para sair da mesa.
.
Creio por razões lógicas – oro com fé de pensamento e pouco de coração, ofereço da alma, que é onde tenho mais de dar, mas é de pouco valor... Sei que os «Outros», estes e outros têm abrigo e bom conselho. Deus só pode amar, porque é essa a perfeição: ama os «Outros», aos que querem sair e aos que não são, foram nem serão «Outros».
.
Eu, que creio por razões lógicas, garanto a existência de anjos. Homens sem asas nem resplendores, amigos das horas e companheiro, irmão e professores de todos. Dum qualquer modo, agarram, antes que se torne n’«Outro».
.
Uma dor sem remédio e medicamento para outra dor. Fui despido, só de pijama para o Rossio, figuradamente, atarantar-me, com os pés a puxarem-me para Santos e seu apeadeiro. Faltavam cinco segundos para a bilheteira fechar. Cinco segundos para saltar ou perder a viagem. Atrasei o passo e fui às urgências.
.
Vim de lá como entrei: indiferente à vida. Mas prometi, que cuidaria de mim e não abrace o mudo dos «Outros». Tomo os remédios e a retroescavadora está sossegada.
.
Não há pessoas perfeitas. Nem nós nem os «Outros»... nem quem gosta de nós. Pudesse agora e abraçaria alguma gente.

Sem comentários: