Fazer da vida o quê? Não me custa envelhecer, custa-me
perder a paciência, que, aliás, nunca tive. Faltou drogar-me, e drogar-me até o
vício ser um túnel sugador e psicadélico. Faltam-me danças por seduzir e muitas
vodkas para enganar a luz do dia.
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Nunca tendo tido paciência nem medo da morte, pergunto-me se
ao falhar a morte não falhei a vida. Devo ter tido medo de arreliar a mãe e
alguns amigos.
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Faltam-me beijos. Sobram-me asneiras no jogo com as
mulheres. Contudo, triste não me sentiria agora... devia ter feito pior. Cair fundo
até ao suicídio involuntário. Até à guerra. A cocaína ou merda mais abjecta que
satisfaz a vontade do Diabo, pessoa que não existe.
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Fazer ou não sentido? Hoje como à noite, como todos os dias.
De excitante tenho as unhas das mãos para cortar. As dos pés precisam de tempo
que me tira o tesão para o fazer.
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Vale a pena? Valerá como toda a alienação inútil, só que em
mais chato.
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Nunca tive coragem para chegar perto do bordo. Sonhei com a
espiral multicor, sentindo mais nojo da droga do que medo. Mais medo do sermão
da mãe do que das suas lágrimas.
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Morra agora ou daqui por cem anos, não deixo nada. Nem genes,
não valem nada.
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A amizade é tudo, menos a morte. Porém morre e às vezes
consome-se depressa. Morre-se por amizade.
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Devia ter tido todas as mulheres que quis, além daquelas de
que me arrependo ter acordado ao lado ou fugido numa distracção. Devia tê-las
tido todas. Até daquelas cuja tentativa me teriam valido um estalo.
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Seria uma vitória de espuma, que não daria valor à vida. Tenho
pena de ter perdido tantas, mas as que deixei, ou deixaram-me, deram-me tempo
para outras que consumi e algumas dores para me queixar, alimento calórico para
quem quer engordar as hortas das campas.
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Sim, estúpido. Vazio e oco. Inútil e indeciso, nem consigo que
esta seja uma carta de despedida.
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A minha tristeza tem felicidade a mais para que salte. A minha
vida tem tempo a mais para que queira ficar.
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Digo: a luz da luz, a flor de luz da flor de luz, brilha com
sorriso de anjo. Só isso prova que transmitir os genes vale tanto quanto uma
fatia de torrada barrada com manteiga virada caída no chão.
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A vida é tão bela como o tédio angustiante do cheiro do
galão claro, num cubículo feio, de azulejos, alumínio e mediocridade.
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Sem isso... talvez conseguisse escrever essa carta que faria
com que a minha vida tivesse um sentido.
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Consumo ar e corto as unhas das mãos uma vez por semana,
julgo eu.
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O resto é respirar. Andar por aí não conta. Nunca estou
sozinho. Só a respiração faço sem aquelas sombras.
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Contenta-me respirar o vento, ter as orelhas e o nariz frio.
E isso serve para quê?
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Dentro o tédio e a aridez duma floresta de dores, muitas por
conhecer.
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Viver dói. Não pelos desgostos, mas por viver.
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Sem mais nada para fazer, faço qualquer coisa. Respiro e
corto as unhas. Durmo o que posso e me deixam, porque sonho que cá não ando.
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A alegria, sobretudo a alegria contagiante, deprime-me. Não de
inveja, porque não quero isso para mim. Entristece-me saber que alguém possa
estar contente num mundo em que existe tudo e do qual não quero saber.
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Até digo que acredito em Deus para ocupar tempo. Calo-me a
respeito para não ter de mostrar que acredito. Sobretudo que a minha fé é de
lógica, não de amor de coração nem de desinteresse de alma.
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Vale a pena? Tudo isto? Nem um texto de comiseração, de
justificação dum não acontecimento.
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Respiro e isso mantém-me vivo. Respiro contra o vento e
gosto.
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Preferia ser mais leve e só sentir o vento. Não preciso de
nada do que tenho para ser feliz. Nem infeliz. As unhas são apenas dez.
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As linhas da mão desaguam no mesmo mar vazio. Sem iodo, nem
cheiro a peixe nem nada de que me queixar.
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Quem me dera ter a sorte de ter razão para ir, determinação
sem remorso e uma saudade para morrer novamente.
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