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A maioria dos suspiros não tem força para rasgar a carne e medrar na liberdade possível duma tristeza. A maioria morre triste e ignorante de que a vida, lá fora, é mais triste. Suspiros com esperança e, porém, tão tristes.
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Os olhos quando se fecham não é para dormir, mas para ver o que dentro se recusa a sair. É como o arfar soluçado num choro que vai longo. Há sempre gotas de água e sal que não chegam à fonte e nunca serão rio.
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Os banhos de corpo mergulhado em câmara sobreaquecida não acalmam os dias de inquieta quietude. Iluminam as dores, para que os dedos da cabeça possam melhor infectar as feridas com o seu escarafunchar.
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Há dias que não olhava para esta vida toda. Há dias em que uma lucidez indesejada vem afirmar o quanto se é infeliz. Não vale a pena sonhar. Há sempre um dia em que o Diabo vem cobrar os momentos de paz concedida.
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Há dias em que se percebe que os amores que julgávamos são mesmo sonhos. Há dias em que percebe que os amores que sonhámos não chegam a ser sonhos. Retratos de casais que só na casa cómica dos espelhos se formam. O que dentro é cómico é na verdade deformação e fora da casa não é mais do que banalidade e triste distância de vontades.
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Talvez ainda seja capaz de amar. Talvez não queira. Talvez seja capaz. Sei, porque sei – não porque tenha percebido, mas porque vivi – que as vidas a dois nunca são uma… e tanto que se desejou, prometeu, garantiu e jurou. E tantas vezes se mentiu e se foi enganado. Não no corpo. Não no amor. Não na convicção. Enganado pela vontade e imagem que se colocaram diante dos olhos.
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Talvez nas relações haja sempre um que goste mais do outro. Por vezes, um doentiamente mais do que outro. Por vezes, um mais cruel do que o outro. Talvez. E quando não há relação? Quando quem se deseja amar não seja amável. Quando a pessoa desejada exista apenas numa vontade ou numa imagem, num desejo filho da solidão e da tristeza.
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Fui mexer na minha caixinha de musas… umas estão preservadas ainda com os aromas das flores que trocámos. Umas desapareceram, esfumadas, porque nunca o foram, apenas exercícios de retórica e massagem de sedução infantil e egoísta da adolescência. Há musas tristes e molhadas das lágrimas. Há musas enternecedoras por toda a ingenuidade. Há musas de loucura com pedidos lancinantes para que largassem o noivo no altar e mergulhassem loucamente num desconhecido desequilibrado. Há musas que não mereceram. Há musas que não mereci. Há musas que nunca o foram, porque nem olhei ou nem percebi ou nem quis. Estão todas guardadas na caixinha das musas. Onde fui remexer.
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Há musas que desejei serem musas. Musas a quem sussurrei palavras que se gritam e declamam em gritos sonoros nas praças. E há musas que tendo tudo isso, levadas em andor, por devoção e esperança, esmagaram, indiferentes, os sentimentos crédulos do amante.
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Há musas que leram as palavras que lhes escreveram, coraram e silenciaram. Há musas que se afastaram zangadas. Há musas que não as leram ou, se as leram, desprezaram toda a energia que há numa semente e faz vingar uma planta, empurrando-a para além do solo em direcção ao Sol.
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Há musas que não são ingratas. São apenas elas próprias. Os poetas vestem as musas. Escovam-lhes o cabelo. Levam-lhes morangos à boca na sua época e descascam-lhes romãs. Aromas frescos de citrinos, vinho generoso e conversas de segredo.
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Há musas que só por engano se cruzaram com o seu poeta. O poeta sabe que não há enganos, porque o artificie de sentimentos sabe da sua matéria-prima, que trabalha com as ferramentas de letras.
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Com efeito. Enganos. Não são desencontros. São cumplicidades deformadas na casa cómica dos espelhos. Lá fora tudo volta a ser o que deve ser. As musas não existem e os poetas continuam poetas.
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Da vistoria à caixinha das musas soube o que sabia antes. Cinco musas de verdade, que nasceram de terramotos e se foram em maremotos. Uma viva. Uma morta. Três arrumadas no quarto do lado. Das cinco, a sexta é a que nunca existiu.
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A sexta de cinco musas nunca quis o seu poeta. Toda a poesia foi prado de papoilas pisadas em danças pueris e inconscientes. A musa não tem culpa, apenas não reparou.
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Nos dias de tédio, que são todos, a Dulcineia era a alegria que levava as lágrimas para fora do rosto. Não se pode apagar o que não existe. Está mais vazio o vazio que habita dentro dum homem triste.
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Se sou capaz de amar? Serei, mas não quero. Deixei o meu coração numa cidade que digo saber qual é. Não me lembro onde, dentro dela, o recolhi. Nem me lembro dele, sei que tive.
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Quando esperei voltar a tê-lo… Os olhos molhados pelo orvalho fresco da musa ficaram lacrimosos e quentes.
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A tristeza escalda. Escalda tanto que o coração, que já não tenho, não sente, numa dormência, numa fuga. A alma contorce-se com a dor, como a que sente um heroinómano na ressaca.
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O que se pode dizer? O que se diz todos os dias, do acordar ao dormir: tédio e marasmo. Dias de infelicidade precisa. Não reconheço a vida. Não reconheço o lugar. Descubro que com quem me cruzo quase não conheço ninguém. Confundo amigos com conhecidos e lamento todo o sentimento de desamor para comigo. Transbordo afectos. Transbordo porque excessivo. Desperdício e desajuste. O mal não está nos outros, está na fonte de lágrimas que tenho para amar.
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Sim, queria ser amado. Sim, mas preferi ser poeta, antes de nascer. O que faço com as musas? Uma está morta e nem fede. Três são memória de odor suave das flores secas. Não mereço cantar a viva. Das cinco, a sexta é a que me dói. Com todos os pregos do acordar para a realidade que sempre se soube e sempre se negou.
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Das cinco, a sexta é a única que nunca mereceu ser cantada. Toda ilusória, que só uma vez não se esqueceu de me dizer baixinho que gostara das palavras saídas das minhas mãos. Os espelhos da casa cómica dos espelhos tornaram-se, de repente, lisos e concretos.
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As luzes suaves da noite estrelada soçobraram na incandescência aflitiva dum holofote. Acordar, que já é noite, meio da noite, e é tempo de sofrer.
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Em sofrimento disse, uma vez, à sexta das cinco musas, que sofria. Esperei e recebi silêncio ou nem isso, mas silêncio de indiferença. Silêncio negligente, talvez egoísta de quem nunca se tocou pela dor. Sim, os poetas devem sofrer. Sem sofrimento não há palavras. Sim, mas sofrer por uma musa que exista!... Pois a sexta de cinco musas nem na verdade o foi, porque nunca se aceitou, nem tampouco me consolou quando lhe disse que sofria. Sofria não de amor, mas de morte. Da morte lenta da alma.
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Em saltos suaves de correria pueril, a sexta de cinco musas pisou-me, o prado verde e de papoilas. Os espelhos da casa cómica não se partiram. A luz dos holofotes revelou a crueldade grotesca do não existente.
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O tédio e o marasmo acalmados pela doce esperança numa não esperança, são agora simples e crus tédio e marasmo. O Diabo cobra sempre os seus silêncios.
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O coração esquecido algures mantém-se na caixa de veludo escarlate que não sei onde guardei. A alma chora-se em auto-comiseração. O corpo? Não me reconheço no espelho. Nem mesmo quando mais gordo me descubro mais magro.
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Mato-me. Mato-me matando. Mato assim, aqui e agora, a musa, que não me matando matou. Que não me amando não me deixou ama-la. A sexta de cinco!
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