
Tenho uma teima com um amigo que termina sempre em galhofa. Conheço-o vai para 20 anos e é sempre a mesma coisa. Quando nos conhecemos a teima era a fotografia, os ângulos, o obturador, o diafragma e as exposições. Mais tarde passou a ser a política. Agora é o vinho.
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Para falar verdade, nós nunca estamos nem estivemos de desacordo. Gostamos mesmo é de discutir. Uma das teimas recorrentes é sobre os perfis dos vinhos do Douro e do Alentejo, sendo que as preferências vão variando de modo a contradizer o outro. Na última discussão estranhamente estivemos de acordo. Gostamos do mesmo vinho e não entendemos a «perseguição» da lei ao chamado vinho de mesa.
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Ora, chegando aqui é preciso dar um salto e explicar seriamente uma coisa:
Há uma certa mania, nos países antigos, de que o vinho como deve de ser provém duma região determinada. Isto, no passado já distante, traduzia uma certa garantia de qualidade e é válido não apenas para o vinho, mas também para outros produtos alimentares. Nos novos países produtores o fascínio começou por vir das castas. Uns anos depois da instalação e depois do embate, os países do Velho Mundo repararam nas castas e os do Novo Mundo demarcaram regiões. Contudo, há um mistério: o vinho de mesa.
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O vinho de mesa é, regra geral, o mais rasca que há. Este tipo de vinho não tem direito a ostentar proveniência das uvas nem o ano da safra. Não tem direito a quase nada. Porém, há quem o faça com muito brio e empenho. Aliás, isto acontece não apenas em Portugal.
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O vinho que aqui trago é um desses casos. Chama-se Uvas Castas ALDO 04 e o rótulo não pode explicitar o que vou adiantar a seguir. Este vinho faz-se com uvas do Douro e do Alentejo e a colheita é referente ao ano de 2004. Já se percebe que para bom entendedor uma cifra basta... o AL indica uma proveniência, o DO aponta outra e o zero-quatro esclarece o ano. Quando a lei está ultrapassada ou é tonta...
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Quanto ao Uvas Castas na boca... O resultado é um vinho curioso, complexo, com personalidade e elegância.
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Voltando às discussões com o meu amigo, não acredito que este vinho tenha o poder de acabar com elas. Assim espero. Tal como não irá solucionar as que opõem os apreciadores dos vinhos do Alentejo e os do Douro... mas talvez dê uma trégua.
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Memória fotográfica
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Só outro dia descobri que a minha casa tem uma particularidade… e já cá moro vai fazer nove anos. Na verdade, a particularidade não está na físionomia do imóvel, mas no seu recheio e, aí, o facto curioso é ainda mais insólito, pois o prazo dilata. A que me refiro? Um momento! Foi preciso alguém ter chegado e exclamado pasmado para, finalmente, entrar pelos meus olhos a dentro a mais completa evidência. A que me refiro? Explico finalmente:
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Fotografias. Não tenho fotografias da parentela. Nem da mãe nem do pai nem dos avós nem dos manos nem do cão nem do gato nem do piriquito nem do défice. Ninguém, e nunca tinha dado por nada ou pela ausência.
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A memória basta-me para lembrar-me de quem gosto e tenho mecanismos de obliteração da banalidade. Recordo os perigos e os sinistros, os dissabores envergonham-me ainda, as lições importantes existem e não preciso de fotografias.
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Hoje lembrei-me dum vinho que provei uma só vez. E uma só vez encantou-me. Terei de o repetir se voltar a apanhar uma das mil garrafas irmãs. Chama-se Casa de Mouraz Tinto 2004 Private Selection e vem do Dão, feito com uvas provenientes de agricultura biológica. Tem boa complexidade, feita de frutos silvestres, minério, chocolate e fumo. Para que se visualize o que digo, deixo a fotografia da garrafa.
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Consolo na Fronha
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É pela almofada que entro pelos sonhos dentro. No dia em que me confrontaram com a ausência de retratos fotográficos em casa, abracei-me ao objecto confessor em busca de consolo e esperei adormecer. Diz-se que o travesseiro é um bom conselheiro. Em vão!
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No dia seguinte acordei tão incomodado quanto estava na véspera, questionando-me:
- Será que não amo a minha família?
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Levei dias a digerir a ausência de retratos da família pela casa. Pensei em encomendar milhares de ampliações de todos os parentes, claro que pensei. Porém, a solução pareceu-me tão forçada quanto inestética.
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Foi, então, que procurei conselho numa loja da especialidade. Não numa loja de almofadas, mas na garrafeira que me costuma abastecer a casa, saciar a sede e reprimir a ansiedade. O conselho foi para um tinto do Dão acessível e bem disposto: Porta Fronha 2005.
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O nome deste vinho é inspirado nas portas do gado nas casas agrícolas da região do Dão. Com um nome tradicional, as castas são, elas também, de tradição: touriga nacional e tinta roriz. É um vinho com bom vigor e onde se nota bem a fruta.
Depois de consolado perdi a memória ao meu problema de não ter fotografias dos parentes em casa. Pode ser que um dia a casa se transforme num museu: a casa do homem sem parentes nas paredes.
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