digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

terça-feira, janeiro 20, 2009

A intimidade - Manifesto pessoal e algumas loucuras e inconfidências cirurgicamente reveladas - A entrevista improvável - Abaixo de cão

- Bom dia.
- Boa dia.
- Faça o favor de se sentar.
- Obrigado...
- Nome?
- João.
- João quê?
- O nome todo?
- Basta o primeiro e o último.
- Barbosa. Ainda bem que só quer esse, é que é tão grande que ficávamos aqui até amanhã para o dizer...
- Ai sim?! Está pronto para começar?
- Começar o quê?
- A responder às perguntas que tenho para si.
- Acho que sim, mas isto é para quê?
- A seu tempo saberá.
- Se o diz. Está bem...
- O que vê aqui?
- Vejo e sei o que é, mas não digo agora, digo-o depois, à parte.
- Ouve?
- O que lhe parece?
- Faro?
- Tenho.
- Paladar?
- Exigente (acho).
- Tacto?
- Algum, mas há situações em que sou desastrado.
- Cabelo?
- Preto e liso.
- Pele?
- Morena.
- Nacionalidade?
- Qual? A desta vida? Bem, portuguesa.
- Idade?
- Trinta e nove acabadinhos de fazer.
- Estado civil?
- Solteiro.
- Tem compromissos com mais de seis meses?
- Não.
- E com menos de seis meses?
- Não.
- Heterossexual?
- Claro! Por quem me toma?
- Altura?
- Um metro e setenta e seis.
- Peso?
- Bastante mais do que devia... muito. Não digo, prefiro não lhe dizer.
- Não o acho gordo...
- Ninguém acha, acham-me rechoncho, mas não gordo. Eu acho-me. Sou pesado. Mas não estou preocupado com isso.
- Desporto, faz?
- Nem pensar! Credo! Fazer esforço?! Safa!
- Olhe que há ginásios muito bons, onde até é divertido.
- O quê? Pagar para fazer esforço? Safa!
- Nunca fez desporto?
- Fiz. Natação.
- Durante muito tempo?
- Ufa! Comecei era muito miúdo, depois saí, depois voltei, voltei a sair... já não sei bem, mas foram umas quatro ou cinco vezes. Mas quando fiz foi por algum tempo, bastante. Fiz muitas piscinas. Era bom. Sobretudo em crawl.
- Estou a ver. Fuma?
- Não. Bem, uns charutos de vez em quando... mas só cubanos, de Vuelta Abajo, ou dominicanos. E também dou umas cachimbadas - tenho dois cachimbos ingleses - quando me quero armar em intelectual só para mim, mas só fumo tabaco inglês.
- Café, toma?
- Entre quatro e seis, mas nunca em jejum nem depois das seis da tarde.
- O que bebe normalmente?
- Assim, por dia? Dois litros de água, mais uma ou duas Coca Cola... vinho, mas não todos os dias, só uma ou duas ou três vezes por semana. Uísque dispenso, embora não desgoste dum Scotch, mas não ganho para o bom... e se pudesse (ai ai) Conhaque e Armanhaque.
- Falou-me em ganhar... valores?
- Isso não revelo mesmo. Por princípio. Nem o padre que me confessa o sabe.
- É católico?
- Não.
- Estou a ver... mas falou-me em padre...
- Pois foi. Falei por falar. Às vezes gosto de dizer coisas.... assim sem sentido.
- Mas acredita em Deus?
- Acredito, sim senhora.
- Em qual Deus?
- Há mais do que um?
- Há quem diga que sim.
- Estão enganados.
- Mas em que Deus? Quero dizer, que religião?
- Espírita. Sou cristão verdadeiro.
- Está a brincar novamente?!
- Não.
- Bem falávamos de dinheiro. Não vai mesmo dizer-me quanto ganha?
- Não!
- E posses? Bens...
- De relevo só um apartamento e um automóvel. Mas na verdade, a casa é do banco. Estou a pagá-la.
- Foi cara?
- Não.
- Onde fica?
- Em Lisboa, ali para os lados da Alameda.
- É grande?
- Não, é normal. Cinco assoalhadas não muito grandes.
- Nada mau... E o carro foi caro?
- Foi muito dinheiro, mas é dos mais baratos.
- Pode-se saber qual é?
- Um Peugeot 206, preto. Gosto muito dele. Chamo-lhe Sílvia. Sabe, os meus carros têm todos nomes de mulher. Primeiro foi a Joana, um Renault 5, e a seguir a Gigi, um Fiat Punto.
- Porquê nomes de mulheres?
- Porque de vez em quando gosto de pensar que mando numa.
- Que faz na vida?
- Quando faço alguma coisa de útil sou jornalista.
- Em algum jornal importante?
- Não. Numa pequena empresa produtora de audiovisuais, importante.
- Importante?!
- Sim. Não quero dizer conhecida.
- Ah bom! Já lhe perguntei quanto ganha?
- Acho que sim.
- E respondeu-me?
- Não.
- Hã hã, estou a ver. Trabalha muitas horas?
- As necessárias, mas tenho o dia preenchido. Suponho que me pergunta isso, porque estava a pensar convidar-me para um cafezinho... ou vai oferecer-me emprego?
- Nem uma coisa nem outra. Não era bem isso, mas não faz mal. Gosta do que faz?
- Muito. Muitíssimo.
- As pessoas são simpáticas?
- São. Há um ou dois malucos, mas nada de especial. Nesse aspecto também não tenho muita moral para falar.
- Já me disse que não diz quanto ganha? Mas está satisfeito com o seu ordenado, ganha bem?
- Não ganho muito. Já ganhei, em tempos. Há muito tempo, para aí há uns seis anos... mas depois veio a crise e uma pessoa tomba.
- Então não está satisfeito?
- Nunca se está satisfeito com o ordenado. Se nem os ricos estão satisfeitos com as suas fortunas, acha que são os assalariados que vão estar com os salários? Francamente... Mas não me queixo. Disso não me queixo.
- Mas ganha bem ou mal?
- Oiça! Já lhe disse que não digo quanto ganho. Já lhe disse o que penso acerca do meu ordenado. Não me obrigue a ser mal educado consigo.
- Ai sim?! É politicamente activo?
- Como assim? Se voto? Sempre.
- Em quem?
- Não revelo.
- Esquerda ou centro ou direita?
- Não sei.
- Não sabe?! Como não sabe?!
- Não sei.
- Não sabe ou não quer dizer?
- As duas coisas.
- Não sabe?!
- Sou conservador, logo de direita. Tenho preocupações sociais, diria que de esquerda. Sou democrata-cristão, mas não vejo nenhum partido democrata-cristão em Portugal. Mas há coisas em que sou de esquerda, como em relação à situação na Palestina ou em relação ao casamento entre pessoas do mesmo sexo...
- É a favor? Porquê?
- Porque acho que toda a gente deve ter o direito de viver em liberdade e com quem quiser, com quem ama. Ninguém mais tem a ver com isso. Se o casamento existe, então deve ser para todos os que o queiram.
- Quanto ao aborto?
- Votei contra a liberalização do aborto. Não aprovo a legalização duma pena de morte, além do mais de alguém que nem sequer tem a sua opinião auscultada.
- O pai?
- Não! A criança.
- Sim, tem razão. Percebi mal, estava desatenta. Desculpe. Em relação à pena de morte. O que pensa?
- Sou contra. Pelas mesmas razões das do aborto. Ninguém tem o direito de decidir sobre a vida dos outros.
- Eutanásia?
- Não aprovo. Mas se for um acto consciente e voluntário... se houver quem queira fazer de carrasco... é um negócio entre eles. Prestarão contas mais tarde a quem de direito, não falo de pessoas nem da justiça dos homens.
- De Deus?
- Responderá e será confrontado à luz da lei de Deus. Contudo, isso não compete aos homens.
- E o suicídio?
- Exactamente a mesma coisa. A vida é sagrada, mas o próprio é dono dela e faz dela o que quiser, até asneiras que, mais tarde ou mais cedo, se arrependerá e que terá de prestar contas.
- Mudando de assunto para algo mais ligeiro. Hobbies, tem?
- Tenho alguns. Desenho e pinto, já fiz fotografia, mas agora é raro. Depois tenho esta mania de escrever... armo-me em escritor no infotocopiável e em crítico de vínhos e gastronomia no joaoamesa. Mas é tudo na boa. Sem stresses, sem pretensões. Tenho outros, mas estão meio a marinar.
- Porquê?
- Porque não tenho tempo nem cabeça.
- Não lê? Não vai ao teatro e ao cinema?
- Claro. Mas isso não são hobbies.
- Não?! Enfim, adiante.
- Animais, tem?
- Três gatas, todas irmãs, mas uma é duma outra ninhada, um ano mais nova.
- São de raça?
- Acho que os gatos não têm raça. Diria que a Lioz e a Paraquedas são siamesas. A Granita é preta com três manchinhas brancas.
- Nomes curiosos... Adiante. Gajas, há?... Perdão! Já lhe perguntei se tem relações?
- Já e já lhe respondi. Solteirinho.
- Doenças sexualmente transmissíveis, tem?
- Credo! Não! Que eu saiba...
- E das outras?
- Tenho uma depressão.
- É grave?
- Para a maioria das pessoas não é, que é assim tipo hobby, que gosto de me chatear e andar triste.
- E não é isso?
- Se quiser, é. É o que quiser. Tanto me faz. Só me custa quando são os amigos que não compreendem...
- Não sou sua amiga?
- Não. Nem a conheço. Nem sei por que estamos a ter esta conversa tão íntima... mas a minha vida também é um livro aberto, não tenho nada a esconder... e o que tiver, não digo, escondo. Percebe?
- Percebo. Com que então é jornalista e tem trinta e nove anos. Já me disse que gosta do que faz e não revela quanto ganha. Penso que tenho tudo o que preciso acerca de si.
- Então estou despachado?
- Está.
- Então?
- Então o quê?
- Então agora? O que faço? Vou-me embora?
- Acho que sim. Não tenho mais nada para lhe dizer nem perguntar. Há alguma coisa que me queira contar?
- Bem, não. Mas... gostava de saber qual é o veredicto depois desta nossa conversa, cujo objectivo não sei.
- Não se preocupe. Nunca compreenderá por que tivemos esta conversa. Nem saberá para que servirá.
- Não acho justo.
- Aqui não tem de achar justo. Fiz-lhe as perguntas que tinha de fazer e o senhor respondeu como quis.
- Mas afinal qual é o veredicto?
- Quer mesmo saber?
- Quero.
- O senhor é banal onde se quer excepcional. É excêntrico quando se quer normal. É conservador quando se deseja contemporâneo, e vanguardista quando se devia resguardar. Além do mais está fora de moda. O que é isso da heterossexualidade? Cafona, né?!
- E então? Não estou aprovado?
- Não! Não presta. O senhor é abaixo de cão.
- Esta entrevista serviu para quê, afinal?
- Não é crente em Deus? Entenda como um dos seus mistérios ou então pergunte-lhe.
- Sou abaixo de cão?
- É!
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.
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Não refilei e fui-me embora com o meu destino.

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