digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

domingo, abril 16, 2006

Última conversa

Hoje partiu-se um espelho cá em casa. Parti-me nele. Primeiro chorei ao ver-me reflectido. Depois chorei por ver-me espelhado em mil pedaços no chão. Sem dúvida que era eu e estava despedaçado. Descuidara-me e ao deixá-lo cair parti-me também.
Hoje li algures palavras bem medidas. Letra a letra percebi que me assentavam bem e vestiam-me como um agasalho cómodo e macio. Estava lá tudo aquilo que sei de mim e imaginei na cabeça e boca doutra pessoa, porque sei que é verdade. Porque só pode ser verdade, quando se conhece o passado e o afecto e se conhece a outra pessoa. Chorei, juro que chorei, ao ler as palavras bem medidas, bem escritas e bonitas. Vesti-as, porque eram para mim.
Hoje apresentei-me aprumado com as minhas palavras novas vestidas. Feliz por ter umas palavras novas para vestir. Mandaram-me despi-las. Disseram-me que não eram minhas, as palavras. As palavras que sei que eram e são minhas, porque conheço e sei o passado e o afecto. Não sei tudo, mas sei o passado e o afecto. Ainda tentei justificar-me. mas com um rosnar arrancaram-me as palavras novas que eu tinha vestido tão feliz e comovido.
Hoje ajoelhei-me a rezar. Rezo para não ter mais passado e para saber perdoar a ingratidão, a indiferença, a maldade, a injúria e a injustiça. Mesmo que não tenham sido para mim as palavras, aquele fato de letras servia-me. Servia-me todo, porque todo ele era verdade para mim. Porque sei o passado, o afecto e sei da espécie humana. Servia-me todo, porque todo ele é verdade sobre mim para quem o riscou, cortou e coseu.
Hoje cortaram-me as veias com brusquidão e atiraram-me ao chão. Hoje humilharam-me. Peço a Deus que saiba perdoar se tiver razão e se a não tiver. Parti-me o coração, porque o entreguei feliz e solidário, não querendo outra coisa se não o bem. Parti-o porque dei-o em troca dumas palavras novas. Dei-o por amizade. Jogaram-mo ao chão.
Hoje vi-me ao espelho... e estava bonito e feliz. Depois, de me desnudarem à força vi-me no espelho de costas. Sei que era eu. Depois voltei-me e imagino que o meu rosto tenha surgido. Voltei-me depressa e só me vi novamente de costas. A minha oferta generosa de dar-me ao espelho não resultou. O espelho não me quer ver. Porquê? Não sei. Deus me dê força para lhe perdoar. Segurei o espelho, para ver se via o meu rosto no seu verso... deixei-o cair. Partiu-se. Parti-me. Aí, sim, vi-me nos olhos, mas chorava. Chorava de raiva, emoção, tristeza, desapontamento, humilhação e desorientação.
Hoje vesti umas letras novas que senti que eram minhas, o passado e o afecto assim mo disseram. Outras verdades disseram que não.

5 comentários:

Anónimo disse...

Fabuloso!

sa.ra disse...

ficção?
não, pois não?


beijo
obrigada pela visita,volto.
um dia feliz

João Barbosa disse...

ficção? a vida é feita de ficção e a ficção está cheia de vida. infelizmente esta ficção baseia-se em factos reais.

Anónimo disse...

Baseia-se, sim. Talvez por isso seja tão real e toque tanto a quem lê. Temos inúmeras formas de não nos olharmos ao espelho, de irmos soltando sorrisos e escondendo buracos negros que temos cá dentro. Eu só sei - sem acreditar não se sonha - que um dia acabamos por fazer as pazes com o espelho. Às vezes o espelho já tem muitas rugas, mas aceita-nos sempre de volta. Um beijo enorme.

Anónimo disse...

A vida em muito ultrapassa a ficção, mas é bom que assim seja...ás vezes! O que vimos no reflexo de um espelho, pode ser logo á partida a maior ficção da nossa vida.