digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

sexta-feira, novembro 25, 2022

Tributo a José Ruy – 1930-2022

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A verdade, não o conheci. Soube como alguém que vê os reflexos deixados por quem o viveu e saboreou a amizade. Se boca genuína e desobrigada mo disse foi por sinceridade.

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A verdade, só me lembro de estar por três vezes –  foram mais – e em todas elas percebi a exactidão do diagnóstico do meu pai e seu grande amigo. Dito cristalino e puro:

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– O José Ruy é muito bom rapazinho.

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A diferença de seis anos permitia, ao meu pai, chamar-lhe rapazinho. Ou talvez fosse também pelo olhar e o sorriso. «O meu melhor amigo», afirmava sempre antes da sentença acerca da bondade.

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A primeira vez que vi o José Ruy foi numa gráfica – penso que em Alcântara – em 1982. Ofereceu-me o seu livro mais recente, «Fernão Mendes Pinto e a sua peregrinação». Por acrescento de felicidade, calhou-me um horário escolar, para o ano lectivo de 1983/84, evocativo das façanhas desse explorador português, desenhado por ele e editado pela Câmara Municipal de Almada – o aventureiro morreu no Pragal, em 1583.

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Volta e meia, nas conversas familiares, vinha a propósito o José Ruy e as virtudes que o abraçavam ao meu pai. Invariavelmente vinha o mesmo acórdão:

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– O José Ruy é muito bom rapazinho.

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Quando o meu pai morreu, em Fevereiro de 2015, liguei-lhe a informar. Nas poucas palavras, por nós faladas, senti-lhe a natural tristeza. No dia da despedida do corpo, o José Ruy foi ter comigo à capela mortuária.

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Não esperava. Num momento levei os olhos a um lugar na sala, onde floria o olhar doce de José Ruy e o seu sorriso de quem está triste e com vontade de confortar.

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Depois desse nosso segundo momento, fui-lhe ligando de meses a meses e conversando por email. A propósito de amizade e arte fomos – eu, a minha mulher e o miúdo – visitá-lo e à Fernanda, sua mulher. O meu filho recebeu, como não podia deixar de ser, livros autografados.

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Acho muito bonita a celebração, em vida, que a Câmara Municipal da Amadora lhe fez. Enterneci-me por José Ruy ter amigos que lhe copiaram a caligrafia e criaram a sua fonte pessoal para computador. Muito mais do que facilitação do trabalho e dum elogio, é expressão de amizade e gratidão.

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A banda-desenhada esteve sempre nas nossas conversas. Enviei-lhe – precisamente há um ano – uma imagem que atribui a Enki Bilal, uma homenagem a Hergé. Nestes últimos dias andava para lhe telefonar para conversar, além de saber da saúde e da vida, sobre essa vinheta que ele desconhecia e que afinal não era de quem eu julgara e o induzira em erro, pois é obra de Pascal Somon.

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Ontem recebi a notícia que José Ruy partiu para a Pátria Espiritual. Em mim fica a memória dum homem bom, doce, delicado e amigo. Agora, por ele, tenho-me lembrado muito do meu pai e sinto-me, como num dever da memória, no múnus do citar:

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– O José Ruy é muito bom rapazinho.

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Certeza, assim o sinto. Perdi o conto às vezes que, ontem e hoje, tenho pronunciado o dito.

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Saber mais:

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https://www.infopedia.pt/apoio/artigos/$jose-ruy

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https://www.cm-amadora.pt/6736-jose-ruy-1930-2022.html

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https://www.dn.pt/cultura/morreu-o-autor-de-banda-desenhada-jose-ruy-aos-92-anos-15383378.html



segunda-feira, outubro 10, 2022

Renânia do Norte-Vestfália

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Se hoje esta luz-chuva-cheiro-terra-e-verde chegou não é memória que ma faça amar é ainda assim amor que me lembra.

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Era miúdo-excessivo de amor-verdade e ela miúda de amor- excessivo-verdade-ainda.

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Não deverei chorar por saudade que não tenho e todavia dava para voltar a estar naqueles verdes e sentir como era a inocência e a descoberta.

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Não a amo. Amo a miúda que amava quando vou aos sentimentos antigos.

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Arrependimentos, muitos. Voltar não quero porque não sou.

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Fui.

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Não estão escondidos, os sentimentos. São arrumados na caixa bonita do arrumo do que se gosta.

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Quemedera que amanhã não seja soalheiro.

quinta-feira, julho 21, 2022

Amêijoas à Bulhão Pato

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Há uns anos, antes da internet, muitas pessoas acreditavam que os livros só continham verdades. Podiam admitir a hipótese de estarem desactualizados, mas criam que só a verdade, apenas ela, era publicada. Portanto, a boa-fé e a sabedoria, a do momento da impressão, imperavam. A literatura é doutro reino.

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Um dia, num grupo do Facebook, alguém, enlevado, floreava a sua paixão pela escrita publicada. Escreveu dos livros e das verdades – um poeta intalentoso, simultaneamente rococó e romântico – colhendo muitos aplausos, vivas e hurras. Não fui malcriado, nem tampouco brusco, quis somente ser um generoso contribuinte para a conversa. Disse que sempre houve erros, equívocos e mentiras. Exemplifiquei com o «Grande livro de São Cipriano» – tratado que possuo e que, por sortilégios, não sei onde pára. Por esta heresia, fui expulso da agremiação. Antes isso do que queimado na fogueira... seja o livro ou euzinho.

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Apareceu a internet e muito mais coisas surgiram escritas e publicadas – conteúdos, dizem alguns, o que me lembra os chouriços e os seus recheios. Se a publicação em livro não significa verdade, no ciberespaço acontece o mesmo e até para lá de. Só que agora publicar é rápido, barato, fácil e de muito difícil punição pelos abusos de ordem diversa.

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A democratização da publicação criou problemas. Não por acaso, Umberto Eco disse que as redes sociais deram voz aos imbecis – cito a ideia e não rigorizo o texto. As complicações com a sabedoria escrita e publicada em papel, ou noutro suporte físico, passaram para o ciberespaço. Portanto, a cautela tem de ser ampliada muitas vezes.

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O plágio também aumentou e aconteceu-me duas vezes ser confrontado com tal delito. Não digo isto só com tristeza, mas também com orgulho. Este crime tem encanto, porque é simultaneamente roubo e elogio. Tive a sorte e o azar.

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Claro que posso cair em inocência. Já me aconteceu mais do que uma vez. Diz-se que é bom haver cautelas e caldos de galinha. Se tombei por donzelice é, provavelmente, porque não gosto de canja.

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Os jornalistas são julgados bocadamente à parte. Alguns são cândidos e outros piratas. É bom ter presente que a notícia, publicada ou nada-morta, costuma agradar a alguém: um ganha porque se soube e outro vence porque não se revelou. Compete ao jornalista ter isso presente e usar uniformemente princípios justos. Acrescento que isentas têm de ser as novas e não o seu autor. Corneteiros feitos bombos, em todas as festas, mas as marteladas não fazem doer o lombo de quem tem a consciência asseada.

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Um dos meus bichos fabulosos preferidos é o Monstro do Lago Ness, sítio da landa mágica das Terras Altas da Escócia. Gostava muito que existisse – ainda além dos extraterrestres que se despenharam na Área 51 – e quero muito mais que não exista, porque o mito e a imaginação costumam estar encantadoramente à frente da verdade. Frequentemente olho-me nos espelhos, nos de vidro e no dos olhos fechados, sonhando-me o Barão de Münchausen, aventureiro avesso à verdade da ciência.

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Quem mente, Dorian Gray ou a pintura? Sei dum antigo jornalista que se tornou artista porque a realidade é muito desinteressante. Dizem que supera a ficção e talvez seja verdade, não criando nem trazendo ganho e inversamente, resultando igual, porque a imaginação faz o que quer. José Afonso cantou: «Só não mente quem não sente que o mistério não tem fundo».

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Não gosto de mentiras e a realidade é-me frequentemente desinteressante, até enfadonha e entediante. Gosto da arte, onde é e acredito estar. A fantasia permite tudo, vive discutindo com a verdade e amando-a.

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Perguntou Pilatos a Cristo: O que é a verdade?

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Na verdade, o plesiossauro escocês existe e não. Na década de 1930, depois de anos de polémicas, o The Daily Mirror – ou o The Daily Mail – prometeu uma pequena fortuna a quem conseguisse fotografar o Nessie. A obra de arte emergiu em 1934, pligrafada pelo cirurgião Robert Kenneth Wilson. Tornou-se no seu mais célebre clichê, o oficial e provavelmente foi emoldurado e ficou pendente em todas as paredes – ou pousado nas secretárias – das instituições públicas nessianas, empresas da zona, lojas de qualquer tralha e famílias empenhadas no bem-estar da sociedade local. Muitos anos depois, o resgatante do tesouro assumiu a autoria do retrato mentiroso. Ao que me constou – não investiguei, preguiçando-me e interpretando uma irrelevância, vi num documentário de televisão – passou o prazo para um processo judicial por fraude… mas a internet está cheia de informações confusas e contraditórias, todas elas apetitosas quanto amêijoas.

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A imagem é igual para todos. As gentes acreditam no que querem crer – hoje, tanto quanto sempre. Uns verificam e confirmam a ausência de pontos de referência e de escala, o que só pode significar a mentira, pela arte, alimentando o gozo e, provavelmente, a ganância. Outros observam o que sempre viram: um animal passeando-se, indiferente ao Homo sapiens sapiens que o observa indiscreto, na água doce do Ness. Se a luz iluminou e alguém insiste em ver é porque existe algures.

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Pela facilidade de publicação, abundam escrituras. Por natureza, há sabedoria, erramento e dolo. Na internet há sítios onde a mentira é sabiamente cultivada – agora chamam-lhes fake news, antigamente designavam-se notícias falsas. O engano mais eficiente é aquele que está num mar de verdades. Conheço pessoas sérias, inteligentes e cultas que tombaram pelas balas da realidade inventada e maliciosa. Refiro, novamente e sem favor, a popular recomendação de que a cautela e os caldos de galinha são bondosos.

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Como gosto de cautela, contrariamente a caldos de galinha, sou chato e não gosto de motores de deslealdades, teimo em verificar o que não creio… ainda assim volta-e-meia descubro ilusões por mim cultivadas e manjadas. Perante uma patranha, que tresandava a cabeça de pescada cozida, fui tentar pescar a verdade. Agarrada ao anzol veio, sem surpresa, a aldrabice. Escrevi, ao supostamente inocente proprietário da página onde tinha assoprado o logro, a contar a verdade. A resposta:

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– Não é verdade, mas podia ser.

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Não tirou a bestialidade. Acreditava na mentira, queria crer ou era tão mentiroso quanto os prosadores?

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A verdade existe, e embuste e o engano também. Escolher a verdade é um direito como, para tudo, optar pelo oposto. Há clarividentes, crentes e militantes. «Dois olhinhos tem o cego, quando anda a fazer que é manco», canta o Sérgio Godinho.

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Tudo isto por causa das amêijoas à Bulhão Pato. A receita é do chefe João da Matta, que a dedicou ao poeta, e seu amigo, Raimundo Bulhão Pato. Leva, além dos bivalves, alho, azeite e coentros. Só. Só e basta. A genialidade – raridade que abunda nos considerandos da multidão – mora muitas vezes na simplicidade, e acontece nisto. Exagero? Poderá não ser genialidade, mas é, pelo menos, uma jóia.

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Há quem queira acreditar que a poção leva uma data de coisas inexistentes na formulação verdadeira e assinada por homem conhecido.

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Incrédulos, cépticos, infiéis, ateus e crentes, por vocação e missão, admitem os ingredientes genuínos – nos relatos todos que li, valha isso. Os iconoclastas acrescentam e não subtraem. Que sejam temperados com uma expressão culinária: verdade q/b.

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Por ser de água doce, mais depressa o Ness tem um monstro do que uma amêijoa – digo eu, assumido inocente zoólogo. Um peixinho é um peixinho, um passarinho é um passarinho, um cão é um cão e o gato é uma pessoa. Fantasio? Só desmente quem não foi servo de felino ou perdeu a lembrança. Que coma a dita cabeça de pescada cozida, incluindo os olhos, se não falo verdade. Uma clareza válida para alguns – não minto!

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Contrariamente a pescados e canja, gosto do monstro do Ness, do chupa-cabras, dos grey, do lobisomem e do sasquatch, cujo tamanho de pé coincide com o meu… doutros e muitos. Acredita quem quer e eu era menino quando vi um extraterrestre com um dedo que acendia uma luz.

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A verdade é a verdade. Não serve crer ou querer para desmentir. Não há metade nem ilusão. Pode a curgete parecer um pepino, nunca será um pepino. Um gémeo verdadeiro não é verdadeiramente o irmão.

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De qualquer outra maneira, chamem-lhe «Bolhão Pato».

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À Bulhão Pato: Amêijoas, azeite, alho e coentros. Só e basta!

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Como se percebe, se leu o texto até ao fim, nem todas as palavras, deste texto, existem. Ou passaram a viver, porque alguém as inventou.

quarta-feira, abril 27, 2022

A culpa é do México


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Basicamente, a culpa da Guerra Russo-Ucraniana é do México. Ou doutro país qualquer que seja berço de malaguetas. Explico:

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Vlodimir Zelensky passou mal a noite, com pesadelos e dores de barriga. Ao jantar abusara da «galinha à Kiev» e entusiasmou-se, incauto, com o Paladin Sacana, que a sua prima Irina, que vive em Lisboa, lhe levara na véspera. Acordou incomodado e exausto, e pensou:

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– Apetece–me partir a porcaria deste país e dar cabo desta gente toda.

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Pensou, pensou e pensou e teve uma revelação:

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– Vou distribuir armas pelos civis, incluindo velhos e adolescentes… aliás, e crianças.

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Zelensky pediu a opinião aos psicopatas do governo, aos sociopatas das autoridades regionais e aos celerados dos autarcas. Todos, sem pestanejar aprovaram alegremente, batendo palmas e dando vivas e hurras.

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Porém, o presidente ucraniano não tinha um pretexto. Isto de partir tudo e pôr toda a gente a matar–se tem de ter, para melhorar a estória, um vilão. Mas, já agora, um vilão amigo. Agarrou no telefone e marcou um número.

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– Estou sim?

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– Oh Putin, tás bom?

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– Bons ouvidos te oiçam, Zelensky. Que me contas?

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– Estou a pensar partir o meu país e pôr esta malta toda a matar–se toda uma a outra. Pensei que me podes dar uma ajuda.

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– Estou a ouvir–te. Explica isso melhor. Bem sabes que estou sempre pronto a ajudar–te, amigo. Do que precisas?

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– Preciso que invadas a Ucrânia. Entras por aqui a dentro aos tiros e a partir tudo. Depois mando os civis, incluindo velhos e crianças, matarem–se uns aos outros. Bombardeio teatros, escolas, museus, hospitais… e digo que foste tu. O teatro talvez não, afinal sou um palhaço. Que se lixe! Bombardeio também os teatros.

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– Oh pá… mas isso é guerra. Não me apetece nada começar uma guerra. Já viste o que o mundo vai pensar de mim?...

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– Não te preocupes, já pensei como te vais safar. Dizes que é uma operação especial. Falas no Donbass e que vens resgatar os russos, porque os odiamos e tratamos mal.

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– Boa!... Depois acuso–te de teres tropas nazis. Tropas e mais uma data de nazis à paisana… e digo que vou desnazificar a Ucrânia. A propósito, tenho andado com crises de nostalgia da URSS… fui tão feliz no KGB!... Bons tempos!

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– Opá… sou judeu. A minha família foi vítima dos nazis. Não pode ser.

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– Ninguém vai querer saber disso.

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– Mas isso vai ficar na história… é melhor não.

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– Confia em mim. Esquece lá isso da história. Tudo passa. Achas que alguém se lembra do holomodor? Achas que alguém sabe do Pacto Molotov–Ribbentrop? É como dizíamos quando éramos miúdos: «caga, isso não sai no teste».

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– Achas?!

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– Acho, não. Tenho a certeza.

– Se tu o dizes… Olha, pensando bem, isso dos nazis é uma belíssima ideia. Tu acusas–nos e nós dizemos que até temos para a troca. Tu dizes do Batalhão Azov e eu falo no Grupo Wagner.

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– Epá, não te desbronques… tu bem sabes que sim, mas... nem digas nada que estiveram na anexação da Crimeia. Não toques nesse assunto. Peço–te.

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– Dizes que não sabes de nada. Mas tenho de dizer umas larachas… para dar crédito. Temos de manter as aparências.

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– Combinado. Sim, mas não te estiques com essa cena do Grupo Wagner.

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– Olha lá… e se fosse a Ucrânia a invadir a Rússia?

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– Não. O plano é bom. Mais vale não mexer. Sabes que podes contar comigo. Quando queres?

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– Vem no dia 24. A malta ainda não recebeu os ordenados. Poupo esse dinheiro para comprar armas para estes gajos se matarem todos… e ainda fico a rir, sou tão mauzinho...

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– A que horas me queres aí?

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– Vem cedo, pela noite ou de madrugada. Os gajos são apanhados ainda com sono. Assim ainda podes tomar o pequeno–almoço connosco.

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– Durante a noite não dá. Ainda vou ter de meter gasolina. Estes carrinhos bebem que se fartam, tu nem sabes. Vou pela manhã, é melhor. Ligo–te quando estiver a chegar. Mas à hora de almoço já aí estou de certezinha.

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– Não te esqueças de fazer o cartão frota. Poupas uns cobres.

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– Mas, almoçamos?

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– Não. Se viesses mais cedo ainda dava, mas a essa hora iria dar uma grande bandeira.

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– Bem, estamos combinados. Manda um beijinho meu à Olena.

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– Ela está aqui comigo e também está mandar–te um beijinho, e outro para Ludmila.

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– Tchau.

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– Tchau.