digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

segunda-feira, outubro 16, 2017

O Citroën

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Contudo, o dia não aquecia nem arrefecia. Pudesse o tempo ser verde como as sebes e sê-lo-ia. Pudessem as sebes serem azuis e sê-lo-iam. Pudesse o céu… A vida complica-se, apesar dos olhares.
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– Não irei começar aquilo para o qual não tendes paciência para tempo nem pensamento.
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– Por que não?
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– Porque vivemos o nosso tempo e não outro. A comichão devida à picada dum insecto dói mais do que o pé partido de alguém.
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– Isso é cobardemente falso! Porque se sabe relativizar. Porque se sabe retórica. Porque a preguiça é conhecida há milénios e se vê a olho desarmado.
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– Isso da preguiça… é verdade. Custa dizer. Custa mais quando se sabe da natureza, somos preguiçosos. Se a falar, ainda mais a ouvir. Já julgar é simples. Justificar é complicado. Por isso, o juiz preguiçoso, mas inteligente, sentencia para si e cala-se. Antes malcriado, pelo silêncio, do que maçar-se em dar importância.
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– Vê aquele pardal?
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– Vejo.
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– …
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– Porquê?
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– Por nada… por isso mesmo. Pensa que se importa além do sobreviver, seduzir, procriar e alimentar?
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– Então?!
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– Redutor ou tolo… talvez errando por paralaxe… Não é essa a nossa vida?
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– Simplório… se me permite. Não o senhor, claro, mas o raciocínio.
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– Acha?
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– …
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– O que faz na vida depois de nascer? Sobrevive, e graças a Deus não sabemos de fome, na puberdade aprende a seduzir e há-de casar-se, ter filhos.
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O Jaguar tornar-se-á numa monótona viatura com espaço para cadeiras para bebés. Dirá adeus aos seus higiénicos luxos.
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Quando crescerem irão sair com os amigos e no ano novo talvez estejam consigo à meia-noite.
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Será velho quando quiserem saber novamente de si.
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Talvez na meia-idade se divorcie… talvez encontre um novo amor, ou dois ou o verdadeiro, quinze anos mais jovem… possivelmente comprará, se puder, um descapotável … mas o Jaguar, ah… ainda que o tenha, esse não o terá a si.
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– Isso é tão redutor quanto patético.
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– Evidentemente! Mas verdadeiro. Pode acontecer antes ou depois – ou para confirmar estatisticamente não acontecer – com ou sem Jaguar… irrelevante! A meia-idade!...
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– Isso não acontece na natureza. Extrapola, sentencia, especula, ajuíza, prevê, determina…
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– Pode ser. Mas em que, exceptuando a tecnologia e as coisas, somos diferentes aos animais?
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– Os bichos não conduzem Jaguares!...
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– Vê como percebe? Vê como a derrota – há-que dize-lo – lhe calha bem. O humor é milagroso.
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– Anestesia. Queima. Calcina e reconcilia,
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– Por isso, nada me preocupa.
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– Mas meditabunda.
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– É verdade. Mas isso… sabe… bem sabe, claro que sabe, da diferença entre ser e parecer. Ainda há o ser e o ter. Ainda mais a confusão de ser-se o que se tem.
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Ser-se triste e ser-se triste não é o mesmo. Estar triste é ainda uma esperança… há uma outra tristeza, quem nem um sorriso disfarça e só a intimidade permite.
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Mais do que um superlativo, uma essência.
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Pode estar-se triste, ainda sendo triste, mesmo rindo, há um sítio – não consigo agora explicar melhor, mas já o pude, estou distraído ou cansado – onde o amargor impermite o doce, o escuro anula a sombra e a graça da alegria, ainda que breve, é dádiva impossível de merecimento – assim se o sente.
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– …
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– É isso.
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– Não seio que dizer…
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– Não diga. É tão absoluto quanto inexistente. Não acontece um quase ou um assim-assim. É-se. É-se num local ou num tempo – ou dois, talvez. Sente quem sente e poucos o compreendem, até quem sente.
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– Absoluto e inexistente?…
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– Não acontece assim-assim.
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– …
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O que se faz?
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– …
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Não sei.
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– Não sabe?
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Não o vive? Não sente?
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– Não sei explicar.
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Sabe por que os meus carros são pretos?
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Porque não podem ter outra cor. Nem serem feios.
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– …
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– Só o Corniche.
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– …
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– Sabe, detesto pavões. Os bichos. Não por se exibirem. Metem-me medo. Aquele leque de plumas… as fêmeas, não sei… são pavoas. São horríveis!
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– Então, por que os tem?
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– Acho que é obrigatório, em jardins destes.
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– Isso é tão… burguês! Se mo permite… uma aparência, uma exibição.
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– Nem mais. Pequeno como um burguês.
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– …
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Então…?...
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– Então, é isso. Em algumas coisas temos que ser pequenos e burgueses.
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– O que é diferente de pequeno-burgueses…
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– Essa é uma gente diferente, nem é carne nem…
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– Nem peixe!
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– Nem legume.
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Não quero ser arrogante – fica mal a qualquer um e mais ainda a mim, porque sou eu e me julgo – ser-se burguês é ser-se, de alguma forma, ratazana. Mais do que o ratinho, a quem lhe devora a ração, mas menos do que o gato doméstico, a quem lhe serve presas ocasionais para lhe poupar a vida. O pequeno-burguês é um rato sujo e andrajoso – ratazana – pequenino em índole, disposto a ser uma ratazana sem escrúpulos.
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Resumidamente – banalizando e abusando na falta de rigor. Sem a simplicidade do ratinho nem a nobreza do gato, o pequeno-burguês e o burguês.
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– Então, e os pavões?
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– Maça-me… maçam-me, mas não sei explicar. Fazem parte do parecer.
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Ter pavões no jardim é uma obrigação inquestionável. Como a das vedetas, que têm de pousar, fazendo carinhas, boquinhas, escolhendo posturas corporais impraticáveis, quando lhes apontam uma câmara fotográfica.
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– Não esperava isso de si.
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– Não sei o que esperava nem espera de mim… não querendo ser desagradável.
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Não querendo ser desagradável nem presunçoso nem falso nem cómico, não sei o que esperar de mim. Limito-me a estar.
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– Estar, é o quê?
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– É. É simplesmente. Nem bem nem mal nem outra coisa. Apenas estar. E esperar que o estar e a necessidade de estar coincidam. E óptimo é se o ser também o for.
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– Complexo ou complicado.
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– Complexo e difícil. Tento contextualizar, condescender – comigo, com o mundo e com as situações – e aceitar. É difícil, mas tem de ser.
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É como este jardim. Nem perguntou a esta vida se o deve ser. É assim e é o que é.
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– É fácil. Nasceu rico e pouco lhe exigem.
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– Mas aí está estão as dificuldades!...
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Embora difícil, é possível entender o peso de se ter nascido rico – Príncipe. Não o disse, mas é esse o foco.
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Complicado é nada lhe exigirem. Nem que seja pousar a coroa.
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Nada! Ter tudo e ser pouco.
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Não sei se entende.
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– Tentarei. Irei pensar.
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– Conhece o Boca-de-Sapo?
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– ...
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– É um carro formidável. É mais do que belo, é uma obra de arte e de engenho.
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Os carros permitem-nos ir e levam-nos ou lavam-nos a cabeça.
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Vem comigo?
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– Se o puder conduzir.
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– Irão reparar, mas não verão um pavão.

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