digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

quinta-feira, março 24, 2016

Quando te despi e fotografei e não o fiz

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Agarrei numas fotografias que estavam num daqueles sacos de papel e vieram-me memórias. Ou foi o oposto, uma lembrança inútil que puxou outra e finalmente acudi àqueles papéis.
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Não fiz de propósito e os acasos inexistem. No topo estavam as ampliações dos nus. De que serve a nudez com vinte anos de atraso? Nem para socorrer aflições. Sei do tempo, vários afectos e, além do mais, és tu – que te despiste sabendo que seria arte e só foi, ainda segredo.
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Esses nus ainda não estão documentos – se o fossem estariam mortos. Continuam arte e pudor. Nem me lembro quanto aqueci ao ver-te entrar pela câmara.
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De tudo o que quis, quase tudo deixei. Dispensava as dores dos afectos, suas cicatrizes, memórias e Narciso em queda.
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Mas sem erros e sem memória não se aprende, não é?!
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Não é! A mesma tendência para o coração partido, fractura exposta, e alma amarfanhada em bafio – noites de insónias em dormências, tanta vergonha e arrependimento. Despojando-me à miséria e tão tarde, sempre tardiamente consciente.
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Por que te deixaste fotografar nua? Tinhas-me. Por que te deixaste fotografar nua? Querias-me. Por que te deixaste fotografar nua? Queria-te. Por que nos fotografamos nus? Por que não te despiste?
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Já reparaste que te escrevo não só. Aliás, esta fotografia nem é tua. Por que te despiste? Por que não te despiste?
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Por que fizemos amor? Por que fizemos sexo? Por que fizemos amizade? Por que fizemos engano? Por que não fizemos nada?
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Cada nu é um espelho onde estamos separados mais pelo tempo do que pela dimensão ou situação.
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Hoje talvez apares a púbis… não penso nisso. Pensei agora. Sim, pensei. Pensei, porque nesses nus és bosque.
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E tu, que te nunca te fotografei nem vi nua, como tinhas, jardim ou natureza?
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Ia perguntar-te como tens, mas… não quero inventar fantasmas nem criar feitiço.
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Por que fizemos amor? Por que não nos saboreámos?
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Sem inventar feitiços nem criar fantasmas, penso cientificamente, na pureza da chatice do pensamento vácuo, no que aconteceria se fosse hoje, agora, neste instante, com todas as pessoas e dias do meio entre nós deixadas à porta.
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Como então, a roupa descendo e o espelho subindo e repousando.
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Tirarias a roupa? Fotografava-te? Faríamos cama?
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Repara, não és tu quem está na foto.

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