digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

quinta-feira, março 24, 2016

O escritório de Terezín

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Tenho um problema com a memória. Por isso, tenho um problema com a culpa.
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Tenho um problema porque inactivo e até mesmo tendo deixado, quase por completo, de ser cínico – adjectivo ou substantivo que infantilmente desejei e cultivei. Porém, centrando o assunto, o dilema é a memória.
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Ser-se culpado é menos chato do que se reconhecer culpado. A memória existe também para isso, e se castiga também por ela se pede o perdão.
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Lembro-me mais vezes de mil novecentos e quarenta e três dos que de dois mil e quinze.
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Em mil novecentos e quarenta e três, eu era um anónimo ariano, conveniente Obersturmführer da Schutzstaffel sem perguntas, poucas respostas para dizer e sem falar à consciência. Dois anos depois a culpa não era minha, eu não era nada, não tinha feito nada, cumprira ordens, só isso e até morrera.
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Se era anónimo, por que me lembro mais de mil novecentos e quarenta e três do que de qualquer outro ano recente? Porque sou verdadeiramente nulo, os meus actos inalcançam.
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Lembro-me agora. Dói-me de vergonha, queixo-me de mim, dos silêncios, da cobardia e do desamor. Conto agora porque vi a metáfora de vidas. Na distância entre a carne e o sítio não há cheiro, apesar do pó dos anos a pesarem nos arquivos.
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Em cada compartimento ficava uma pessoa – os papéis que a tornavam coisa, justificando a sentença.
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O arquivo está em Terezín, na Boémia. Uma fantasia macabra, a cidade encenada, com lojas, dinheiro e posto dos correios. A cidadela fechou-se num forte, uma judiaria exemplar.
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Como se a fome e as doenças fossem incompetentes, havia transportes para os campos de Auschwitz, onde morrer era menos prosaico.
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É sabido que nos prendemos às coisas tal como as memórias se agarram a nós. Quantos não renasceram e estão numa espera de dor – de remorso, de rancor ou de incapacidades. Quantos não regressaram e pelas mesmas razões? E os que sempre estiveram.
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Posso ter estado ali. Em mil novecentos e quarenta e três ou antes ou depois, não sei precisar a data da minha morte.
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Posso ter estado ali. Pelo menos alguém esteve, confortavelmente anónimo e inculpável, como eu, servindo como amanuense. Que disse e diz à consciência e à memória?
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Dirk Reinartz fixou a hora e a função, logo depois de esvaziado o teatro. Os olhos de W. G. Sebald escreveram Austerlitz e Daniel Blaufuks foi ver e trouxe a cor, um modo de mostrar o cheiro, deixou o relógio.
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Duas fotografias da mesma coisa mostram, da mesma forma, a mesma coisa, de modo diferente. A verdade é uma e muito grande para uma só boca – só há uma.
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Nota: Decidi escrever este texto porque me fiz tropeçar no passado ao pensar no drama dos refugiados. Caí na fotografia de Daniel Blaufuks e subi o rio. No sítio da RTP, uma hora de entrevista com Ana Sousa Dias esclareceu ainda mais do que informou. Não as contei, mas desta vez o cliché, de que uma imagem vale como mil palavras, é retrato de corpo inteiro e sobra. Não há uma palavra a mais nem nada a menos nas fotos, na de Reinartz e na de Blaufuks.

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