digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

domingo, novembro 22, 2015

Lioz – 24 de Março de 2004 – 21 de Novembro de 2015

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Não sei se foi ontem ou hoje, mas hoje não está, nem veio, nem quando assobiei. Um abraço frio ao corpo que tanto calor me deu e levou. Deixou-me o corpo, o que não quero. Terei sempre os olhos muito grandes e azuis, muito espantados, a olharem-me sem receio.
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Confiou-me tudo. Nem com as minhas aselhices se zangou ou amuou.
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Disse-me:
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– A Lioz é a tua favorita!
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Não é. Mas a Lioz é a mais frágil. Saiu muito cedo da mãe, por estupidez minha, e nos primeiros dias amamentei-a à força, por se estranhar longe. Sobreviveu e durante anos, no miminho, mamava-me as cabeças dos dedos da mão.
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Sempre meiga e dócil. Só duas vezes a vi zangada. Numa para me defender da Granita – coitadinha sofria e soprava por infecção em duas patas – que renhaunhou. A pachorrenta cuidou ver-me necessitado de ajuda. Jogou-se à mana, que protegi como pude. Outra vez, o brincalhão do Chuqui fez um ruído na brincadeira, à Lioz, gorducha e pacata, soou-lhe a maldade; agarrei-a para que não se atirasse ao outro bicho.
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A Lioz adora a minha mãe. Na minha casa anterior, punha-se sobre o frigorífico quando percebia que estava de saída, enquanto passava dava-lhe festinhas com as patas.
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Sempre em sobressalto num ansiedade e, contudo, tão doce e cordata. Nunca se arreliou por a ter deixado cair (aleijou-se), não sabia cair como fazem os gatos. Tive de a ensinar a cair. Não me ferrou nem mesmo quando este idiota achou que poderia limpar-lhe um olho com água-oxigenada.
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Gorda e rápida. Um dia esgueirou-se, numa madrugada, para dentro dum armário. Estava escuro, não vi. Voltei três dias depois e ouvi-a miar aflita. Descobri-a e saltou a correr para ir beber água e comer. Sem que a chamasse veio mimar-me, agradecendo tê-la libertado… eu que a fechara.
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A Lioz é, mas não terei a sua cabeça para dar e receber marradas nem os longos, longos, longos, muito longos abraços e que ronronava infinitamente. E se dormindo comigo, junto ao peito, fossem que horas fossem que eu abrisse um olho ou despertasse invisível, a Lioz ronronava.
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E agora, quem vai abrir as gavetas, os armários, o frigorífico (!) ? Quem vai fazer o ninho entre a minha roupa. A «Mãozinhas»... olhava com atenção para o micro-ondas, único cofre que não abriu...
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«A minha gatinha gorda», sussurrava-lhe nos imensos e longos mimos. A mais brincalhona, sempre menina quando via um cordel a passear, com coisinhas de nada, com amigos invisíveis. Corria de vagar, não gostava e não temia o Chuqui e era tão veloz a caçar qualquer brinquedo.
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Respondo:
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– Não é a preferida. É a especial.
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Salvou-me a vida.
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Nota: Saber da morte não é insentir a dor. Saber da chegada não antecipa, mas prepara. Foi como um gato. O meu pai suspirou suave e seguiu para onde se esperava. A Lioz fez-me chorar antes de a encontrar, porque o meu coração de mãe. Sim, existe coração de mãe. O meu coração de mãe deve tê-la ouvido miar no sítio dos gatos.

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