digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

quinta-feira, outubro 08, 2015

Os Ford do caminho

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A minha mãe levava-me, de mão dada, até ao jardim infantil.
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É doce, a mãe.
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Pel’a paciência das mães, chegava todos os dias atrasada ao serviço. Se não trabalhasse tão bem nunca teria vencido todos os concursos de progressão na carreira. Chegava sempre fora da hora. Ia ansiosa e aflita.
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A Dona Ricardina era doce e sorria-lhe, nunca a criticou pelos atrasos de mãe.
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Na rua directa até ao edifício da Junta de Freguesia, onde estava e está o infantário, ficava e está o café Paquito. Era do senhor Francisco, que por alguma respondia pelo diminutivo em castelhano. O estabelecimento mudou tantas vezes de dono… mas nunca de nome. Porque não foi café central, estrela da rua, cova funda, toca do urso, estrela do bairro, o casapiano ou o arganilense.
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A mãe é doce. Tão doce que todos os dias me comprava uma pastilha-elástica Pirata, no Paquito. Apesar das cáries e da conta dos arranjos.
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Havia cigarros de chocolate, arrumados em pacotes iguais aos de tabaco e com as mesmas marcas. As crianças tinham nestas chuchas um incentivo ao tabagismo. Docemente a mãe não me comprava.
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A mãe é doce. Todos os dias lhe perguntava a marca dos automóveis estacionados junto ao passeio. Com paciência repetia dia após dia – naquele tempo, os carros saíam pouco dos sítios. À mesma hora voltava a satisfazer-me o pedido e também contávamos as marcas.
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Lembro-me de muitos Ford e Opel. O Ford Taunus era tão estranho tal como hoje o olhamos incrédulos. O Ford Anglia era maravilhoso. Bem adulto soube que o alcunharam de «ora bolas»! Porque era lindo até o tejadilho recuar e a janela ser inclinada.
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Aos seis anos, a três meses dos sete, entrei na escola primária. A mãe levava-me, de mão dada, até ao fim da rua, onde parava a carrinha. Sempre a tempo, porque a Mercedes não se demorava em frente à padaria.
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A mãe é doce. Tão doce que todos os dias me comprava um suspiro. Apesar das cáries e da conta dos arranjos.
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Chegava atrasada ao serviço. A Dona Ricardina era doce e sorria-lhe, nunca a criticou pelos atrasos de mãe.
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