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Havia um perfume num frasco verde que imitava uma pinha. Não
sei bem como definir o aroma, mas se me chegasse às cegas diria. Havia tapetes
grossos e almofadas de fronha áspera e o soalho de tábuas madeira crua. Havia
cartazes de concertos e nas paredes algumas palavras escritas a negro por
marcador de bico grosso, desabafos adolescentes em inglês e versos de canções
simbólicas. Um cachimbo de água e o gira-discos a tocar os mesmos discos. Havia
penumbra. Havia um mundo qualquer lá fora. Havia absinto com sumo artificial de
laranja e gelo. Havia haxixe e um sentimento de amor e a namorada do outro lado
do quarto e alguns amigos. Havia uma coisa maluca a passear-se entre o escalpe
e o cérebro. Havia uma viola com falta de cordas. Diziam-se profundidades que
faziam rir. Faziam-se silêncios que se quebravam no riso. Havia certezas.
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Tanto sonhei, nesse momento agora recriado, mistura de
momentos, em que era poderoso e sensível. Queria ser como os da Renascença, fazia
tanta coisa e acreditava que chegaria o meu dia de luz.
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Abriram-se estores e portadas, afastaram-se cortinas. A luz apagou
o quarto – esvaziou-se. A luz banal da vida dos comuns.
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Ainda sonhei com uma centelha e os anos escureceram os dias
e diluíram-me. Não sei onde falhei nem como regressar ao quarto do fumo para
nele procurar indício para cumprir nem que fosse um só desejo.
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Não há caminho de volta e para a frente não o é, mas o único
que me deixam, obrigam. Se pudesse ficava e fumava haxixe e beberia absinto com
sumo de laranja artificial, esperando magia.
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Vivo num corredor estreito e opressivo, iluminado pela
triste e feia luz das lâmpadas fluorescentes de tom esverdeado... num relâmpago
mental evoco a descoberta da fotografia e da brincadeira com os filmes ORWO. A frustração,
fraquejo e quase tombo de joelhos.
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Uma parede avança atrás de mim, sem empurrar fecha-me a
retirada. Como é feio este corredor de tédio e desalento. Ladrilhado pelas
vontades que me foram caindo e que piso avançando para onde não quero ir. As paredes
apenas úteis e sem folgas.
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Andando como um equino preso à carroça e a passos tantos.
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E cheguei a um lugar onde passei a noite, porque a luz se
sossegara. Tomei uma das pedras daquele lugar e a pus como meu travesseiro e
deitei-me naquele lugar. E sonhei: e eis uma escada posta na Terra, cujo topo
tocava nos Céus; e eis que os anjos de Deus subiam e desciam por ela.
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Acordei sentado e assim fiquei por tempo indeterminado,
pensando na escada e no caminho do tédio.
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No final desse tempo, que passei sem dormir, voltei a andar
e quando me deitei sonhei que subira a escada para Deus e me sentara a pensar,
consolado pelos anjos. Levantei-me e desci os degraus para caminhar no tédio,
desejando desexistir...
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Caí-me consciente e hiperventilei-me, arrefeci no chão e
nele bati várias vezes com a cabeça, com força também. Embriaguei-me na dor que
me lembrei e repousei exausto, ao acordar arrastei-me e desmaiei.
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Não quero seguir o meu caminho nem o de Deus nem outro
qualquer.
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Vivo num lugar que não quero.
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Quero desexistir. Deus não deixa e o Diabo não existe. O
Inferno é um estado da alma.
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A minha sobre de tédio.
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Nota: Parte inspirada no Livro do Génesis (28 – 11:12):
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– E chegou a um lugar onde passou a noite, porque já o sol era
posto; e tomou uma das pedras daquele lugar, e a pôs por seu travesseiro, e
deitou-se naquele lugar.
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E
sonhou: e eis uma escada posta na terra, cujo topo tocava nos céus; e eis que
os anjos de Deus subiam e desciam por ela;
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