digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

sexta-feira, setembro 19, 2014

Dois belos vinhos da casa da terra dos gaios

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Há vinhos com história ou que puxam as palavras para a conversa. São os que prefiro, seja a parlação só centrada no elixir ou vá solta por onde se deixar. Os dois que agora comento puseram-me a falar com as palavras.
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Quem só quiser ler sobre o vinho... faça o favor de saltar até onde o parágrafo começa com outra cor.
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Contaram-me que até à década de 70 do século XX o branco das Gaeiras (Quintas das Gaeiras) era especial, um sucesso de contentamento. Lamento, mas como nasci em 1970... lá em casa não havia sopas-de-cavalo-cansado.
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Ainda assim conhecia-o de nome. Mais na memória tenho o tinto. Não por que o tivesse bebido, mas porque consta dos versos do Fado das Caldas. Não sei se se refere ao vinho daquela freguesia de Óbidos ou se é relativo ao da Quinta das Gaeiras.
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Aqui confesso – possivelmente pela enésima vez – que sei que estou contentinho quando ao vinho me apetece juntar o fado e montar um cavalo... marialvismos... Ora, o Fado das Caldas tem aquele picadinho que pede mesmo... portanto, com a garganta molhada, vêm-me à alma as palavras e as notas.
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Uma coisa gira é que há um fado gastronómico que se diferencia desse apenas pelo poema, é o Fado das Iscas. Coincidentemente, quer um quer outro são interpretados por dois dos meus fadistas preferidos: Hermínia Silva e Dom Vicente da Câmara – ela tempera as iscas e ele conduz até às Caldas.
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Quem acredita no destino tem aqui uma estória que o comprova – salvo seja, que nada houve entre quem cito. O fidalgo fadista e a mulher do povo de sangue e alma na voz. Afirmo: Hermínia Silva é a maior fadista portuguesa desde a Severa – mulher da vida, de que não há registo sonoro, e que na História de juntou ao marquês de Valença.
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Baseado no romance «A Severa», de Júlio Dantas, o primeiro filme sonoro português, de 1930, centra-se nesse amor impossível do fidalgo e da rameira. No filme «A Severa, de José Leitão de Barros, as personagens são inspiradas nesse casal de circunstância. Há uma razão lógica, do ponto de vista do argumento, em fazer coincidir o título do fidalgo ao adjectivo de nobre boémio.
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No filme, a actriz Dina Teresa representa uma prostituta cigana, que se envolve amorosamente com o conde de Marialva, representado António Luís Lopes. O realizador contornou os factos, de modo a não juntar os seus contemporâneos marquês de Marialva e conde de Vimioso. No entanto, o título de Marialva foi inicialmente constituído como condado, em 1440, por Dom Afonso V, para agraciar Vasco Fernandes Coutinho. O título foi extinto, em 1534, após a morte de Guiomar Coutinho, quinta condessa de Marialva, que não deixou descendência.
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Hoje, estes cuidados parecem tolos, mas há que contextualizar. A sociedade portuguesa do início do século XX era muito conservadora e fechada, existindo um largo e fundo fosso entre o povo e as elites. Note-se que «A Severa» foi rodado apenas 20 anos após a implantação da República – que não extinguiu os títulos nobiliárquicos, considerando-os como património da nação.
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O primeiro marquês de Marialva foi Dom António Luís de Meneses, que era já o terceiro conde de Cantanhede. A honraria foi-lhe conferida, em 1661, pelo mérito militar na Guerra da Restauração (1640 a 1668), pelo Rei Dom Afonso VI.
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Há homens que marcam uma vida-tempo de tal modo que todos os outros que lhe sucedem ou antecederam deixam de existir; ninguém acredita que houve mais do que o primeiro marquês de Pombal ou que marquês de Marialva foi só o que deu nome ao conceito de homem dos prazeres mundanos, das mulheres, cavalos, toiros e dado ao vinho.
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Ao que parece, o responsável terá sido Dom Pedro José de Alcântara de Menezes Noronha Coutinho, quarto marquês de Marialva, sexto conde de Cantanhede e estribeiro-mor do Rei Dom José, considerado como o melhor cavaleiro e mestre de equitação da sua época.
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Já a Severa – Maria Severa Onofriana – não era de etnia cigana, embora o seu pai o fosse. Chamava-se, pelo primeiro nome, Severo e assim o passou por alcunha à mulher, Ana Gertrudes, e à filha. A mãe da figura histórica era natural de Ovar, talvez tivesse vindo para Lisboa para vender peixe, pois as peixeiras de rua, de canastra à cabeça, eram originárias dessa terra da Beira Litoral – o falar do povo mudou ovarinas para varinas.
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A Severa passou a vida (1820 a 1846) por quase toda a Lisboa popular, da Madragoa onde nasceu até à Mouraria, onde morreu. A mãe era taberneira e prostituta e seguiu-a na vida de cama – morreu jovem, vítima de tuberculose, no bordel que a acolhia.
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Vivia no meio da pobreza, miséria, falta de higiene, doenças, sujidade, certamente violência física, psicológica e verbal, alcoolismo, boçalidade, entre tantas desgraçadas e homens de faca, estivadores, contrabandistas, embarcadiços e gatunos... e ratazanas, percevejos, piolhos e chatos.
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Os testemunhos dão conta que teria uma beleza invulgar e exótica e grandes dotes como cantadeira... além de ter pêlos na cara em quantidade suficiente para ganhar a alcunha de «a Barbuda». Argumentos que terão enfeitiçado Dom Francisco de Paula de Portugal e Castro, segundo marquês de Valença e décimo conde de Vimioso.
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É fado!
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Isto tudo por causa do verso do tinto das Gaeiras... Já agora, o que são gaeiras? Não fazia a mínima ideia. Podia ficar sete anos a mandar bitaites que nunca chegaria lá. De acordo com o «Dicionário Onomástico Etimológico» de José Pedro Machado, é um local onde há muitos gaios.
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Giro!... gaio é um pássaro, não é?! Perguntei-me a medo – é que sou homem do campo... mas do Campo Grande, em Lisboa. Nasci ali, mas não sou dali nem do Sporting Clube de Portugal; sou de Belém, por causa do Clube de Futebol «Os Belenenses», e da Graça ou São Vicente ou Santa Engrácia ou São João ou Penha de França por vivência, e por isso simpatizante do popular Clube Oriental de Lisboa.
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Sim, tinha na ideia, pelas minhas idas ao campo, ao rural, que gaio é ave. Mas também – segundo a Infopédia – «cabo que se fixa na cabeça dos paus de carga dos navios»; gaivota juvenil; alegre; jovial – «Do latim gaudiu – alegre». Já o Priberam informa que é sinónimo de jovial e alegre; «varinha de pau flexível, terminada por laçadas feitas da própria vara»; «nome da gaivota que não tem mais de um ano»; cavalo; e «braço de uma espécie de antena que serve para amarrar à embarcação».
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De tudo isto retiro duas palavras: alegre e jovial.
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Pois que estamos diante dum local rico em gaios, ave de penas azuis e que não gosta de campo aberto. Prefere as florestas e os bosques, é uma espécie residente e vive em todo o país. Mede entre 33 centímetros e 36 centímetros, não pesa mais de 190 gramas e pode viver até aos 18 anos. Pertence à família dos corvídeos e do assentamento de baptismo consta o nome Garrulus glandarius. Se fosse gente seria artista de variedades, pois é um grande imitador de sons.
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A Quinta das Gaeiras tem uns belos jardins e floresta à volta. Fui lá conhecer os novos vinhos – produzidos em parceria com o Grupo Parras, que detém, entre outras marcas, a Quinta do Gradil – e vim maravilhado.
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Foi dito à mesa que o branco agora apresentado tem a alma desses antigos que tiveram fama. Acredito no elogio que um conviva teceu ao enólogo (António Ventura) e equipa, pois é pessoa de saber e respeito.
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Os antigos Gaeiras brancos eram monovarietais de vital. Queixou-se a equipa técnica do temperamento da casta, que cria dificuldades na vinha e chatices na adega. Muita parra, muito cacho, muita uva, muita sensibilidade ao calor, muita sensibilidade à chuva, excessivamente produtiva – basicamente uma casta com um estado de humor dum agiota com um ataque de gota (esta pertence ao jornalista João Gonçalo Pereira). Porém, capaz de dar do melhor. Ora: bom somado com muito resulta em casta predilecta na sub-região de Óbidos.
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Os agrónomos intervieram podando folhas para criar clareiras que permitissem uma maior insolação dos cachos e assassinando novelos de uvas, para que não fosse tão generosa, a videira. Tudo correu bem com o vinho de 2013 e com o anterior, que não chegou ao mercado.
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É um grande vinho! Naturalmente fresco – prometi nunca falar de pH – pelo grau e pelo temperamento, que ilude para mais frescura. Com uma doçura natural nada óbvia nem enjoativa, que não cansa a boca. Untuoso, envolvente, sedutor e elegante. Cresce no copo com os minutos. Consegue ter feminilidade, pela complexidade de aromas entrelaçados sem domínios, indicando delicadeza. Mas também masculinidade, pelo modo de se comportar na boca.
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Bebi-o alegremente a solo, mas ganha muitíssimo mais se lhe derem comida. É muito perigoso, tem 13 graus de álcool que voam como faixa de seda sobre mármore.
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O tinto é divertidíssimo. É porque com ele se pode conversar e conviver e também acompanhar com comida. Inicialmente austero de aromas, revela-se com arejamento. Se me pedissem para dizer as castas do seu lote, não acertava uma. Nem uma! Todavia, diante dos «olhos».
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Tudo o que se pode esperar da syrah (50%), da touriga nacional (30%) e da touriga franca (20%) está à vista. A soma das três não dá três. As características olfactivas esperadas estão lá, mas o todo pareceu-me outra coisa. Ondulam, escondem-se e revelam-se, evoluem, regressam.
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Mostra-se firme na boca, mas sem brutalidade. Envolve, sacia e pede que o reponham. Fundo ao ir-se, longo no ficar. Na prova oral tem também as características de não revelar o mesmo em todas as vezes que se bebe.
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O tinto é um truque de ilusionismo. Contentíssimo.
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Além da inegável qualidade, são vinhos muito interessantes e didácticos. Cansam-me os vinhos perfeitinhos, com tudo no sítio – como a Barbie e o Ken. Estes são perfeitos (a perfeição só Deus sabe e conhece), mas mais do que filhos da técnica.
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O maestro é António Ventura. Aplaudo de pé!
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Nota 1: Devido à limitação de caracteres da caixa das etiquetas, seguem abaixo as referências às obras publicadas.
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Nota2: Gaio, pelo pintor Nigel John Shaw.
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Nota 3: Vídeo do Fado das Caldas  versos de Arnaldo Forte e música de Raúl Ferrão. Interprete: Dom Vicente da Câmara. Os dados relativos à autoria são nebulosos, havendo referências como sendo de outros criadores. Esta informação foi retirada duma partitura que consta do acervo do Museu do Fado. Porém, a mesma instituição possui partituras em que surgem outros nomes. Contactei um etnomusicólogo, que esteve envolvido no trabalho de candidatura do fado a Património Cultural Imaterial da Humanidade, que me referiu que é comum, no início do século XX, haver discrepâncias quanto aos autores.
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Nota 4: Diaporama do Fado das Iscas  versos de José Cosme e música de Raúl Ferrão. Interprete: Hermínia Silva. A situação face à autoria mantém-se.
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Nota 5: Exerto do filme «A Severa», de Leitão de Barros, com Dina Teresa (Severa) e António Luís Lopes (conde de Marialva).
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Nota 6: Estátua do quarto marquês de Marialva, do escultor Celestino Alves André.
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Nota 7: Quadro «O Fado», pintado por José Malhoa.
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Nota 8: Diaporama sobre o gaio, realizado Dom Sobreiro e acessível em www.youtube.com, onde consta o contacto do autor.

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