digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

terça-feira, agosto 26, 2014

Uma estória de maminhas e bolhinhas

Consta que Luís XIV, Rei de França, terá dito que o Champanhe era «o Rei dos Vinhos e o Vinho dos Reis». Li isto tantas vezes que acreditei... Não fosse a lenda, com o mesmo monarca, repetida e relativa ao Vinho do Porto e pelos produtores húngaros e eslovacos de Tokay (agora adoptou-se a grafia húngara Tokji – na Eslováquia escrevem Tokaj – mas prefiro a forma antiga).
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O Rei Henrique IV de França (Henrique III de Navarra) era apreciador dos néctares desta região setentrional do hexágono, sendo servida na Real Mesa. O seu filho Luís XIII (Luís II de Navarra) também só provou como vinho tranquilo.
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O Rei Sol terá sido o primeiro monarca a saborear o vinho de Champanhe na forma como hoje o conhecemos. Já agora refira-se que Luís XIV se marimbou para Navarra e passou a usar apenas como brasão as armas de França.
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Ao certo não se sabe quando foi produzido o primeiro vinho de Champanhe «moderno», sabe-se que Dom Pérignon andava a fazer avarias nas caves, da Abadia beneditina de Hautvilliers, em 1670. Jean Godinot, escreveu, em 1718, que há vinte anos que os franceses podiam apreciar este vinho espumante – em francês é mais bonito... mousseux.
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Já que se fala neste religioso há que dizer quem foi: nasceu em Reims, onde foi cónego da Catedral. Foi chamado para Paris, onde foi grande vigário da Santa Capela (Sainte-Chapelle du Palais), onde está a suposta coroa de espinhos do martírio de Jesus Cristo. Regressou a Champanhe para ser vigário geral da Abadia de São Nicásio.
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Dom Pérignon não trabalhou sozinho, teve como colaborador Dom Thierry Ruinart, cujo sobrinho Nicolas Irénée fundou, em 1729 em Épernay, a primeira casa vitivinícola de vinho espumante de Champanhe. Nascia uma das mais carismáticas marcas da região, a Ruinart.
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Bem, casa Gosset, com sede em Aÿ, reivindica para si o estatuto de marca mais antiga de vinho espumante de Champanhe. O facto de ter sido criada em 1584 não prova nada, sendo que as relações entre o monge beneditino Ruinart e o seu sobrinho me parecem melhor fundamento. A favor desta empresa há a afirmação britânica que já antes da Ruinart se bebia do espumante em Londres.
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É mais do que normal as dinastias extinguirem-se. Pelo que apurei, a última Ruinart foi Marie Cécile Cordélia Pauline Antoinette de Brimont, falecida em 1938. Ao tempo da fundação da empresa, os Ruinart eram uma família burguesa, mas com importância local. O tempo encarregou-se de os fazer ascender socialmente, quer em funções, quer em honrarias. Pelo que se percebeu, os Ruinart subiram na vida. O bisneto de Nicolas, Jean Irénée Ruinart foi o primeiro visconde de Brimont – título usado por mais oito pessoas.
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Não descobri o que se passou a seguir; ou um Ruinart vendeu a empresa ou um parente o fez. Hoje a Ruinart pertence ao grupo de marcas de luxo LVMH (Moët Hennessy Louis Vuitton).
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Quem lê o blogue joaoamesa.blogspot.com sabe – julgo – que se pode fazer vinho branco a partir de uvas tintas. Como este texto vai sair no infotocopiável eu explico. A cor do vinho é dada pelo pigmento das cascas das uvas. Se a fruta tinta for espremida e não estiver em contacto com as peles o suco é branco. Em Champanhe baptizaram esses vinhos como «blanc de noirs».
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Um contacto pouco prolongado oferece os tons rosados. Não se sabe bem por que alguém decidiu fazer um vinho rosado em Champanhe ou se a criação foi acidental. A lenda conta que foi Barbe-Nicole Clicquot-Ponsardin quem «inventou».
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Tinha 27 anos quando o seu marido morreu de febre, em 1805. O estabelecimento tinha apenas 33 anos de existência e já produzia anualmente mais de cem mil garrafas. A viúva tomou a seu cargo a gestão da empresa e com tanta garra e sucesso que a alcunharam de «la Grande Damme» – «a Grande Senhora». Nascia assim a mítica marca Veuve Clicquot.
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No filme «O Leão da Estrela», realizado em 1947 por Arthur Duarte, o anfitrião burguês e abastado do Porto, o senhor Barata (Erico Braga), leva Anastácio (António Silva), o pelintra armado em ricaço lisboeta, a uma casa (de homens). Com inconfundível sotaque portuense pede ao criado: «Uma biuba Clicote».
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O Champanhe é um vinho tão fantástico que foi imitado por todo o mundo. Ainda hoje comummente se apelida de Champanhe vinhos que não têm essa proveniência francesa. Acontece o mesmo com o Vinho do Porto. A força da diplomacia francesa e a dimensão do negócio garantem uma defesa muito mais eficaz da região francesa.
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A aura do Champanhe não se ilustra apenas com a afirmação atribuída a Luís XIV. Reza a lenda que as taças de Champanhe foram moldadas no seio duma senhora de alta linhagem.
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Consorte de Luís XVI, a rainha Maria Antonieta, até pelo seu trágico destino, tem várias historietas. A rainha decapitada pouco antes de completar trinta e nove anos de vida é a mais citada. Mas teria uma rainha descido do seu trono e dado a mama esquerda para molde?
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Maria Antónia Josefa Joana de Habsburgo-Lorena não era apenas rainha de França e de Navarra. Era filha do poderoso Francisco I, Imperador do Sacro Império Romano-Germânico – um país que em 1806, quando foi extinto por força de Napoleão Bonaparte, era formado por mais de quatrocentos Estados – que abrangia a actual Alemanha, Áustria, Liechtenstein, República Checa (Boémia e Morávia), partes de França, Itália e Polónia, tendo em tempos mais recuado abrangido os Países Baixos, Bélgica, Luxemburgo e partes da Suíça... além de que ser-se monarca na Áustria implicava ser Rei da Hungria e seus territórios... Eslováquia, Eslovénia, Croácia, partes da Ucrânia (Bucovina) e Roménia (Transilvânia e Banato).
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Tenho ternura pela trágica Maria Antonieta, que não sei se vivia, de facto, num mundo à parte ou se foi a má-língua da corte de Paris e a paródia tradicional do povo contra os ricos e poderosos que lhe traçaram o retrato.
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As senhoras da corte parodiavam-na usando o seu país de nascimento, a Áustria. Era «autrichienne», austríaca, mas pronunciavam «L'Autre-chienne», «a outra cadela». Diz-se que ao subir ao cadafalso, em 1793, para ser guilhotinada, terá pisado o carrasco. A sua educação não se desfez pela gravidade solene do momento:
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– Perdoe-me, senhor. Foi sem querer.
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A mais célebre anedota que se conta desta Rainha de França é a que terá ouvido tumultos e perguntado o que se passava na rua.
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– Majestade é o povo que protesta por não ter pão para comer.
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– Então, por que não come brioche?
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Brioche e Champanhe... gosto!
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Outra suspeita de ter dado o peito ao gesso que seria o molde para a taça de Champanhe é Maria Josefa Rosa Tascher de La Pagerie, primeira mulher do Imperador Napoleão Bonaparte. Fala-se de mau génio e alguma depravação – provavelmente parte o preço a pagar pelo poder – mas o forte e tormentoso relacionamento com o general nascido corso, homem perigoso e ciumento... hummmm... hummmm.
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A terceira suspeita é a que mais me agrada. Era a mulher do Rei e não era Rainha – para quem não sabe, casamento e amor é coisa recente, talvez com pouco mais de cento e cinquenta anos – era invejada pela influência e por ser a amante; era conselheira do monarca, despachava assuntos do Estado e manteve uma longa relação amorosa com Luís XV. Muito bonita, o que cria muitas invejas. Já era rica quando entrou na Corte. Era culta e gostava da vida e dos seus prazeres e da arte, e na política diz-se que era fria e implacável.
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Joana Antonieta Poisson, pelo estatuto de amante do Rei, precisava dum título de nobreza – o pai e a família frequentavam o palácio real, mas eram burgueses ricos, de banca e comércio vário – aliás o próprio apelido indica a origem plebeia, «Peixe». Luís XV coroou-a marquesa de Pompadour.
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O escândalo era a sua vida. Tinha tudo para dar o peito esquerdo para molde, até a impunidade. Ser-se cortesã não é ser-se Rainha.
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Portanto, a taça de Champanhe tem entre 250 e 200 anos. Renasce!
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Com a Monarquia francesa terminada em 1870 – Segundo Império, da dinastia Bonaparte – França conhece, desde 1946, a Quarta República. O Champanhe mantém-se no trono e a corte republicana também tem as suas rainhas e celebridades.
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Enganam-se se pensam que França e os franceses são republicanos. Além de muitas dinastias, burguesas ou de nobres de pouca monta, que tomaram a administração do país, em diferentes patamares, o regime presidencialista é herdeiro dos modos de governar dos Reis. A pompa e a circunstância, o fausto e solenidade mostram que se hoje reinasse Henrique de Orleães (nascido em 1933 – conde Paris), João d’Orleães (nascido em 1965 – delfim de França) ou João Cristóvão Napoleão (nascido em 1986 – príncipe Napoleão) a Casa Real Inglesa pareceria um bocado provinciana.
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A modelo londrina Kate Moss é uma rainha da moda, das passarelas, do mundo do brilho. «Morta» por diversas vezes, é a manequim que mais tempo tem reinado. Passou por escândalos e toxicodependência e sempre renasceu. É a supermodelo que resta.
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Para celebrar o seu quadragésimo aniversário e vigésimo quinto no mundo da moda , o restaurante londrino Mayfair 34 e a Dom Pérignon pediram à escultora britânica Jane McFadden que tirasse um molde dum seio da modelo, para com ele se criar uma nova taça de Champanhe.
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Parece que a Dom Pérignon e o Mayfair 34 apontam para o seio de Josefina, pois a sua morte aconteceu há duzentos anos. Talvez não. Certos são os quarenta de Kate Moss.
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Kate Moss é uma mulher bonita e se singrou na selva durante tantos anos é porque tem talento e inteligência. É bonita, mas acho-a com cara de osga e corpo de louva-a-deus... a apresentação négligée soigné dá-lhe o ar altivo que se permite à grande nobreza – Kate Moss aparenta ser uma menina má duma família bem.
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A Dom Pérignon – que pertence à Möet & Chandon – alia-se com o vinho P2 ou «Dom Pérignon Second Plenitude 1998»... Numa busca pouco rigorosa, até porque os preços variam de país para país, o vinho irá custar cerca de duzentos e noventa euros. Já a taça... dois mil e setecentos euros.
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Nota 1: Não me falem de funcionalidade, é muito melhor beber Champanhe numa taça do que numa «flauta», por melhor que possa ser na manutenção dos fios de bolhinhas. À «flauta» prefiro um bom copo para vinho branco. Pode dizer-se que as bolhinhas duram mais, mas quem numa festa sedutora está preocupado com a borbulhagem e quanto tempo dura o néctar no copo ?
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Nota 2: Não sei se em Champanhe fazem espumante tinto. Nem em França nem noutro lugar. Em Portugal faz-se e tradicionalmente na Bairrada, com a casta baga. Devo dizer que taninos e bolhinhas é coisa que não me agrada.
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Nota 3: Há um ritual, injustamente acusado de ser romântico, em que o homem bebe Champanhe pelo sapato da mulher que quer conquistar. É nojento, primeiro estádio para sexo escatológico, cuja hierarquia vou poupar os leitores. Nojento, mesmo que o pé estivesse lavado e o sapato imaculado. Quem terá sido o tarado que inventou este feitiço.
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Nota 4: Todas as culturas têm formas próprias de representação pessoal, colectiva e nacional, nomeadamente guerreiras. Na Europa, a heráldica – um proto-design medieval – ainda hoje é usada. Os japoneses têm a sua própria heráldica, muito limpa, sintética, com a grandeza da simplicidade. No período de Napoleão I a heráldica conheceu transformações, com licenças e proibições próprias. A mais significativa é a aceitação de objectos em pose naturalista, no caso a águia.
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Nota 5: O vinho tem quase vinte anos... ainda hoje gozo com a parolada dum produtor, a querer endrominar-me...
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– Quando pensa que poderá ser o apogeu deste vinho? – perguntei.
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Responderam-me com uma arrogante e displicente sentença:
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– Como qualquer vinho espumante deve ser bebido nos dois primeiros anos.
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Mais coisa, menos coisa... o produtor faz excelentes vinhos, mas não gostei que me tentassem fazer passar por parvo. «Qualquer» vinho espumante... «qualquer»... Na Dom Pérignon não sabem nada de espumantes.
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Nota 6: Se fosse legal... em vez de Champanhe alguma marca de prestígio criaria um kit cocaína Kate Moss.
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Nota 7: Devido ao limite de caracteres disponível para os rodapés, faço a atribuição e explicação das imagens na continuação do texto.
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Nota 8: Por manifesta falta de espaço entre parágrafos e de assunto que justifique, no final estão quatro fotografias do fotógrafo James Bort.
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1 – Rei de França Luís XIV pintado por Hyacinthe Rigaud.
2 – Armas de Henrique IV de França e Henrique III de Navarra.
3 – Armas de Luís XIV de França
4 – Dom Pérignon retratado por artista não identificado.
5 – Cartaz da casa Gasset – autoria não apurada.
6 – Cartaz da casa Veuve Clicquot da autoria de Florence Deygas.
7 – Veuve Clicquot por Pascal Garnier, a partir do retrato pintado por Léon Cogniet.
8 – Imperador Germânico Francisco I por Jan Mytens (atribuído).
9 – Armas do Imperador Germânico Francisco I.
10 – Maria Antonieta por Martin van Meytens.
11 – Josefina por Andrea Appiani.
12 – Madame de Pompadour pintada por Jean-Marc_Nattier.
13 - Armas do Imperador de França.
14 – Armas do Delfim de França.
15 – Sala do restaurante Mayfair 34 – fotografia sem autor identificado e retirado do blogue da revista Vogue.
16 – Taça da escultora Jane McFadden a partir dum seio de Kate Moss – fotografia promocional da Dom Pérignon e sem menção ao seu autor.
17 – Kate Moss fotografada por Glenn O’brien.
18 – Kate Moss fotografado por Mert Alas e Marcus Piggott.
19 – Fotografias de James Bort (em baixo).

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