Consta que Luís XIV, Rei de França, terá dito que o Champanhe era «o Rei
dos Vinhos e o Vinho dos Reis». Li isto tantas vezes que acreditei... Não fosse
a lenda, com o mesmo monarca, repetida e relativa ao Vinho do Porto e pelos
produtores húngaros e eslovacos de Tokay (agora adoptou-se a grafia húngara
Tokji – na Eslováquia escrevem Tokaj – mas prefiro a forma antiga).
.
.
O Rei Henrique IV de França (Henrique III de Navarra) era apreciador dos
néctares desta região setentrional do hexágono, sendo servida na Real Mesa. O
seu filho Luís XIII (Luís II de Navarra) também só provou como vinho tranquilo.
.
O Rei Sol terá sido o primeiro monarca a saborear o vinho de Champanhe
na forma como hoje o conhecemos. Já agora refira-se que Luís XIV se marimbou
para Navarra e passou a usar apenas como brasão as armas de França.
.
.
Ao certo não se sabe quando foi produzido o primeiro vinho de Champanhe
«moderno», sabe-se que Dom Pérignon andava a fazer avarias nas caves, da Abadia
beneditina de Hautvilliers, em 1670. Jean Godinot, escreveu, em 1718, que há vinte
anos que os franceses podiam apreciar este vinho espumante – em francês é mais
bonito... mousseux.
.
.
Já que se fala neste religioso há que dizer quem foi: nasceu em Reims,
onde foi cónego da Catedral. Foi chamado para Paris, onde foi grande vigário da
Santa Capela (Sainte-Chapelle du Palais), onde está a suposta coroa de espinhos
do martírio de Jesus Cristo. Regressou a Champanhe para ser vigário geral da
Abadia de São Nicásio.
.
Dom Pérignon não trabalhou sozinho, teve como colaborador Dom Thierry
Ruinart, cujo sobrinho Nicolas Irénée fundou, em 1729 em Épernay, a primeira
casa vitivinícola de vinho espumante de Champanhe. Nascia uma das mais
carismáticas marcas da região, a Ruinart.
.
.
Bem, casa Gosset, com sede em Aÿ, reivindica para si o estatuto de marca
mais antiga de vinho espumante de Champanhe. O facto de ter sido criada em 1584
não prova nada, sendo que as relações entre o monge beneditino Ruinart e o seu
sobrinho me parecem melhor fundamento. A favor desta empresa há a afirmação
britânica que já antes da Ruinart se bebia do espumante em Londres.
.
É mais do que normal as dinastias extinguirem-se. Pelo que apurei, a
última Ruinart foi Marie Cécile Cordélia Pauline Antoinette de Brimont,
falecida em 1938. Ao tempo da fundação da empresa, os Ruinart eram uma família
burguesa, mas com importância local. O tempo encarregou-se de os fazer ascender
socialmente, quer em funções, quer em honrarias. Pelo que se percebeu, os
Ruinart subiram na vida. O bisneto de Nicolas, Jean Irénée Ruinart foi o
primeiro visconde de Brimont – título usado por mais oito pessoas.
.
Não descobri o que se passou a seguir; ou um Ruinart vendeu a empresa ou
um parente o fez. Hoje a Ruinart pertence ao grupo de marcas de luxo LVMH (Moët
Hennessy Louis Vuitton).
.
Quem lê o blogue joaoamesa.blogspot.com sabe – julgo – que se pode fazer
vinho branco a partir de uvas tintas. Como este texto vai sair no
infotocopiável eu explico. A cor do vinho é dada pelo pigmento das cascas das
uvas. Se a fruta tinta for espremida e não estiver em contacto com as peles o
suco é branco. Em Champanhe baptizaram esses vinhos como «blanc de noirs».
.
Um contacto pouco prolongado oferece os tons rosados. Não se sabe bem por
que alguém decidiu fazer um vinho rosado em Champanhe ou se a criação foi
acidental. A lenda conta que foi Barbe-Nicole Clicquot-Ponsardin quem
«inventou».
.
.
Tinha 27 anos quando o seu marido morreu de febre, em 1805. O
estabelecimento tinha apenas 33 anos de existência e já produzia anualmente mais
de cem mil garrafas. A viúva tomou a seu cargo a gestão da empresa e com tanta
garra e sucesso que a alcunharam de «la Grande Damme» – «a Grande Senhora».
Nascia assim a mítica marca Veuve Clicquot.
.
.
No filme «O Leão da Estrela», realizado em 1947 por Arthur Duarte, o
anfitrião burguês e abastado do Porto, o senhor Barata (Erico Braga), leva Anastácio
(António Silva), o pelintra armado em ricaço lisboeta, a uma casa (de homens). Com
inconfundível sotaque portuense pede ao criado: «Uma biuba Clicote».
.
O Champanhe é um vinho tão fantástico que foi imitado por todo o mundo.
Ainda hoje comummente se apelida de Champanhe vinhos que não têm essa proveniência
francesa. Acontece o mesmo com o Vinho do Porto. A força da diplomacia francesa
e a dimensão do negócio garantem uma defesa muito mais eficaz da região
francesa.
.
A aura do Champanhe não se ilustra apenas com a afirmação atribuída a Luís
XIV. Reza a lenda que as taças de Champanhe foram moldadas no seio duma senhora
de alta linhagem.
.
Consorte de Luís XVI, a rainha Maria Antonieta, até pelo seu trágico
destino, tem várias historietas. A rainha decapitada pouco antes de completar
trinta e nove anos de vida é a mais citada. Mas teria uma rainha descido do seu
trono e dado a mama esquerda para molde?
.
.
Maria Antónia Josefa Joana de Habsburgo-Lorena não era apenas rainha de
França e de Navarra. Era filha do poderoso Francisco I, Imperador do Sacro Império
Romano-Germânico – um país que em 1806, quando foi extinto por força de
Napoleão Bonaparte, era formado por mais de quatrocentos Estados – que abrangia
a actual Alemanha, Áustria, Liechtenstein, República Checa (Boémia e Morávia),
partes de França, Itália e Polónia, tendo em tempos mais recuado abrangido os
Países Baixos, Bélgica, Luxemburgo e partes da Suíça... além de que ser-se
monarca na Áustria implicava ser Rei da Hungria e seus territórios... Eslováquia,
Eslovénia, Croácia, partes da Ucrânia (Bucovina) e Roménia (Transilvânia e
Banato).
.
.
Tenho ternura pela trágica Maria Antonieta, que não sei se vivia, de
facto, num mundo à parte ou se foi a má-língua da corte de Paris e a paródia
tradicional do povo contra os ricos e poderosos que lhe traçaram o retrato.
.
As senhoras da corte parodiavam-na usando o seu país de nascimento, a
Áustria. Era «autrichienne», austríaca, mas pronunciavam «L'Autre-chienne»,
«a outra cadela». Diz-se que ao subir ao cadafalso, em 1793, para ser
guilhotinada, terá pisado o carrasco. A sua educação não se desfez pela
gravidade solene do momento:
.
– Perdoe-me, senhor.
Foi sem querer.
.
.
A mais célebre anedota
que se conta desta Rainha de França é a que terá ouvido tumultos e perguntado o
que se passava na rua.
.
– Majestade é o povo
que protesta por não ter pão para comer.
.
– Então, por que não
come brioche?
.
Brioche e Champanhe...
gosto!
.
Outra suspeita de ter
dado o peito ao gesso que seria o molde para a taça de Champanhe é Maria Josefa
Rosa Tascher de La Pagerie, primeira mulher do Imperador Napoleão Bonaparte.
Fala-se de mau génio e alguma depravação – provavelmente parte o preço a pagar
pelo poder – mas o forte e tormentoso relacionamento com o general nascido
corso, homem perigoso e ciumento... hummmm... hummmm.
.
.
A terceira suspeita é
a que mais me agrada. Era a mulher do Rei e não era Rainha – para quem não
sabe, casamento e amor é coisa recente, talvez com pouco mais de cento e
cinquenta anos – era invejada pela influência e por ser a amante; era
conselheira do monarca, despachava assuntos do Estado e manteve uma longa
relação amorosa com Luís XV. Muito bonita, o que cria muitas invejas. Já era
rica quando entrou na Corte. Era culta e gostava da vida e dos seus prazeres e
da arte, e na política diz-se que era fria e implacável.
.
.
Joana Antonieta
Poisson, pelo estatuto de amante do Rei, precisava dum título de nobreza – o pai
e a família frequentavam o palácio real, mas eram burgueses ricos, de banca e
comércio vário – aliás o próprio apelido indica a origem plebeia, «Peixe». Luís
XV coroou-a marquesa de Pompadour.
.
O escândalo era a sua
vida. Tinha tudo para dar o peito esquerdo para molde, até a impunidade. Ser-se
cortesã não é ser-se Rainha.
.
Portanto, a taça de
Champanhe tem entre 250 e 200 anos. Renasce!
.
.
Com a
Monarquia francesa terminada em 1870 – Segundo Império, da dinastia Bonaparte –
França conhece, desde 1946, a Quarta República. O Champanhe mantém-se no trono
e a corte republicana também tem as suas rainhas e celebridades.
.
.
Enganam-se se
pensam que França e os franceses são republicanos. Além de muitas dinastias,
burguesas ou de nobres de pouca monta, que tomaram a administração do país, em
diferentes patamares, o regime presidencialista é herdeiro dos modos de
governar dos Reis. A pompa e a circunstância, o fausto e solenidade mostram que
se hoje reinasse Henrique de Orleães (nascido em 1933 – conde Paris), João d’Orleães
(nascido em 1965 – delfim de França) ou João Cristóvão Napoleão (nascido em
1986 – príncipe Napoleão) a Casa Real Inglesa pareceria um bocado provinciana.
.
A modelo londrina
Kate Moss é uma rainha da moda, das passarelas, do mundo do brilho. «Morta» por
diversas vezes, é a manequim que mais tempo tem reinado. Passou por escândalos
e toxicodependência e sempre renasceu. É a supermodelo que resta.
.
.
Para celebrar
o seu quadragésimo aniversário e vigésimo quinto no mundo da moda , o
restaurante londrino Mayfair 34 e a Dom Pérignon pediram à escultora britânica
Jane McFadden que tirasse um molde dum seio da modelo, para com ele se criar
uma nova taça de Champanhe.
.
.
Parece que a
Dom Pérignon e o Mayfair 34 apontam para o seio de Josefina, pois a sua morte
aconteceu há duzentos anos. Talvez não. Certos são os quarenta de Kate Moss.
.
.
Kate Moss é
uma mulher bonita e se singrou na selva durante tantos anos é porque tem
talento e inteligência. É bonita, mas acho-a com cara de osga e corpo de
louva-a-deus... a apresentação négligée soigné dá-lhe o ar altivo que se permite
à grande nobreza – Kate Moss aparenta ser uma menina má duma família bem.
.
.
A Dom
Pérignon – que pertence à Möet & Chandon – alia-se com o vinho P2 ou «Dom
Pérignon Second Plenitude 1998»... Numa busca pouco rigorosa, até porque os
preços variam de país para país, o vinho irá custar cerca de duzentos e noventa
euros. Já a taça... dois mil e setecentos euros.
.
.
.
Nota 1: Não
me falem de funcionalidade, é muito melhor beber Champanhe numa taça do que
numa «flauta», por melhor que possa ser na manutenção dos fios de bolhinhas. À
«flauta» prefiro um bom copo para vinho branco. Pode dizer-se que as bolhinhas
duram mais, mas quem numa festa sedutora está preocupado com a borbulhagem e
quanto tempo dura o néctar no copo ?
.
.
Nota 2: Não sei se em
Champanhe fazem espumante tinto. Nem em França nem noutro lugar. Em Portugal
faz-se e tradicionalmente na Bairrada, com a casta baga. Devo dizer que taninos
e bolhinhas é coisa que não me agrada.
.
Nota 3: Há um ritual, injustamente acusado de ser romântico, em que o homem
bebe Champanhe pelo sapato da mulher que quer conquistar. É nojento, primeiro estádio para
sexo escatológico, cuja hierarquia vou poupar os leitores. Nojento, mesmo que o
pé estivesse lavado e o sapato imaculado. Quem terá sido o tarado que inventou
este feitiço.
.
.
Nota 4:
Todas as culturas têm formas próprias de representação pessoal, colectiva e
nacional, nomeadamente guerreiras. Na Europa, a heráldica – um proto-design
medieval – ainda hoje é usada. Os japoneses têm a sua própria heráldica, muito
limpa, sintética, com a grandeza da simplicidade. No período de Napoleão I a
heráldica conheceu transformações, com licenças e proibições próprias. A mais
significativa é a aceitação de objectos em pose naturalista, no caso a águia.
.
.
Nota 5: O vinho tem quase vinte anos... ainda hoje gozo com a parolada
dum produtor, a querer endrominar-me...
.
– Quando pensa que poderá ser o apogeu deste vinho? – perguntei.
.
Responderam-me com uma arrogante e displicente sentença:
.
– Como qualquer vinho espumante deve ser bebido nos dois primeiros anos.
.
Mais coisa, menos coisa... o produtor faz excelentes vinhos, mas não
gostei que me tentassem fazer passar por parvo. «Qualquer» vinho espumante...
«qualquer»... Na Dom Pérignon não sabem nada de espumantes.
.
Nota 6: Se fosse legal... em vez de Champanhe alguma marca de prestígio criaria um kit cocaína Kate Moss.
.
.
Nota 7: Devido ao limite de caracteres disponível para os rodapés, faço
a atribuição e explicação das imagens na continuação do texto.
.
Nota 8: Por manifesta falta de espaço entre parágrafos e de assunto que justifique, no final estão quatro fotografias do fotógrafo James Bort.
.
.
1 – Rei de França Luís XIV pintado por Hyacinthe Rigaud.
2 – Armas de Henrique IV de França e Henrique III de Navarra.
3 – Armas de Luís XIV de França
4 – Dom Pérignon retratado por artista não identificado.
5 – Cartaz da casa Gasset – autoria não apurada.
6 – Cartaz da casa Veuve Clicquot da autoria de Florence Deygas.
7 – Veuve Clicquot por Pascal Garnier, a partir do retrato pintado por Léon Cogniet.
7 – Veuve Clicquot por Pascal Garnier, a partir do retrato pintado por Léon Cogniet.
8 – Imperador Germânico Francisco I por Jan Mytens (atribuído).
9 – Armas do Imperador Germânico Francisco I.
10 – Maria Antonieta por Martin van Meytens.
11 – Josefina por Andrea Appiani.
12 – Madame de Pompadour pintada por Jean-Marc_Nattier.
13 - Armas do Imperador de França.
14 – Armas do Delfim de França.
15 – Sala do restaurante Mayfair 34 – fotografia sem autor identificado e retirado do blogue da revista Vogue.
16 – Taça da escultora Jane McFadden a partir dum seio de Kate Moss – fotografia promocional da Dom Pérignon e sem menção ao seu autor.
17 – Kate Moss fotografada por Glenn O’brien.
18 – Kate Moss fotografado por Mert Alas e Marcus Piggott.
Sem comentários:
Enviar um comentário